Quinta do Vale D. Maria

Fotografia: Daniel Luciano
Luís Costa

Luís Costa

Situada no vale do Rio Torto, a poucos quilómetros da margem esquerda do Douro, na estrada que nos leva até Ervedosa e S. João da Pesqueira, a Quinta do Vale D. Maria tem uma história ancestral com mais de dois séculos, fez parte da revolução contemporânea dos vinhos da região – protagonizada pelos Douro Boys – e está agora numa fase nova com o negócio estabelecido em 2017 entre Cristiano van Zeller e os seus primos Guedes, os donos da Aveleda.

 

Depois de ter comprado 45 hectares de vinha no vale do rio Sabor, defronte da Quinta do Vale Meão, a Aveleda reforçou a sua posição no Douro com o negócio da Quinta do Vale D. Maria, em 2017 – e passou a integrar Cristiano van Zeller na sua estrutura acionista. Trata-se de um negócio com uma dimensão próxima da simbiose: a Quinta do Vale D. Maria, produtor de referência de DOC Douro, ganha uma dimensão de negócio e uma escala de gestão superior; e a Aveleda entra pela “porta grande” na região do Douro, conquistando portfólio na gama dos vinhos “premium” e “super-premium”.


Curiosamente, o próprio Cristiano van Zeller não partilha inteiramente a ideia de que a Aveleda ganhou singularidade e que a Quinta do Vale D. Maria ganhou escala, preferindo dizer que foi uma “uma mistura das duas coisas”.
E porquê? Porque, de alguma forma, a Aveleda já andou pelo Douro a fazer Vinho do Porto, como o próprio nos explica, mergulhando na história e nas memórias da família: “Este negócio foi verdadeiramente um reencontro de ramos da família que se separaram naturalmente, desde os tempos do nosso trisavô. Na altura, os seus filhos, um irmão e uma irmã, seguiram as suas vidas, um ligado ao Vinho do Porto e a irmã – porque casou, ficando pelo matrimónio sem ligação ao Vinho do Porto – deixou o irmão, que era meu bisavô, com tudo o que era Vinho do Porto. E depois a minha tia Helena, que era bisavó do António e do Martim [a geração contemporânea da família que lidera atualmente a Aveleda] casou com o Fernando Guedes da Silva da Fonseca, dono da Aveleda. De alguma forma, agora unimos de novo o Vinho do Porto a esse ramo da família [com o negócio da Quinta do Vale D. Maria].”


Um ano volvido sobre a entrada da Aveleda nos domínios do Vale D. Maria, Cristiano van Zeller tem já uma dimensão mais clara das vantagens obtidas: “Ganhámos estrutura, organização, flexibilidade, capacidade de aceder ao mercado de outra maneira, e foco, sobretudo foco. Porque num negócio pequenino a gente faz tudo, mas se calhar faz sempre pouco. Há uma dimensão a partir da qual não conseguimos fazer mais. Agora é muito diferente.”
Momentos antes, durante uma visita às vinhas do CV – o mais icónico dos vinhos produzidos na Quinta do Vale D. Maria – já a filha de Cristiano e “front woman” da quinta, Francisca van Zeller, tinha partilhado connosco uma visão similar: “É quase irónico dizer isto desta forma, mas nós – para nos mantermos pequenos, ou seja, especializados – entrámos numa empresa que já tem o seu foco e a sua dimensão. De outra maneira, mais tarde ou mais cedo teríamos de oferecer produtos de maior volume. Com a entrada na Aveleda podemos manter a nossa especialização e a nossa aposta nas pequenas vinhas, nos pequenos engarrafamentos, nas pequenas coisas. É uma outra forma de nos tornarmos ainda melhores naquilo que queremos fazer.”
Ao volante do jipe do seu pai, carregado do pó característico das vinhas do Douro, percebe-se que Francisca – cujo nome batizou uma das vinhas novas do Vale D. Maria, onde podemos encontrar Sousão, Tinta Francisca, Rufete, Touriga Nacional e Touriga Franca – fez do vinho e deste “terroir” muito particular que agora calcorreamos o seu projeto de vida, depois de ter feito uma licenciatura em História, um mestrado em Jornalismo e, finalmente, uma pós-graduação em Enologia e Viticultura na Universidade Católica.
À medida que nos conduz às vinhas do CV, por caminhos sinuosos, íngremes e quase inacessíveis – típicos das vinhas de montanha durienses – Francisca van Zeller fala com paixão e conhecimento de causa da vida que abraçou na plenitude. Francisca herdou claramente os genes de seu pai e mostra-se entusiasmada com os 45 hectares da quinta do vale do Sabor que, graças ao negócio com a Aveleda, se juntaram aos 45 hectares da quinta do vale D. Maria: “Lá temos Baga, Alicante Bouschet, e principalmente Touriga Franca, uvas que vão ser a base dos vinhos Rufo e do VVV. No Douro, temos agora 45 hectares em cada uma das quintas. Já é alguma fruta…”.


A dada altura, vemos finalmente a vinha do CV lá ao longe, três hectares e meio verdadeiramente únicos de vinhas antiquíssimas, algumas com mais de 100 anos, todas elas viradas a Norte: “Dá-se pouco foco ao local específico de cada quinta e de como isso influencia o resultado dos vinhos. Por isso fiz questão de mostrar-vos a dimensão do vale do rio Torto. E de como este vale tem diversas parcelas que se diferenciam umas das outras. Esta vinha do CV é o melhor exemplo disso”, observa Francisca – e tem toda a razão, como iríamos constatar na prova que faríamos de seguida.

Um vinho que fica bem no CV… de Cristiano van Zeller

Depois conta-nos a história curiosa (e bem-humorada) deste vinho que integra, por direito próprio, a lista dos grandes vinhos DOC que o Douro tem produzido nos últimos 30 anos: “Esta vinha foi comprada em 2003. Até então fazíamos apenas o Quinta Vale D. Maria e Vinho do Porto. Pela vinha em si, o meu pai achou logo que valia a pena fazer a fermentação em separado, que esta vinha podia dar algo especial. Depois, já na sala de provas, o meu pai disse: “Uau, este vinho fica bem no meu currículo…”. E assim nasceu a marca CV”.
De regresso à adega e aos escritórios da Quinta do Vale D. Maria, depois da nossa visita às vinhas velhas do CV, reencontramos Cristiano van Zeller, mais atarefado do que é costume em tempo final de vindimas, pois Joana Pinhão, enóloga da casa desde 2010, acabou de ter uma criança e está de licença de parto. Faltava-nos falar com ele de um aspeto fundamental do negócio do vinho – e da vida de Cristiano: o papel determinante que a amizade pode ter em tudo isto e na própria história da Quinta do Vale D. Maria:
“Em setembro de 1996, quando fizemos o acordo com o meu sogro e com a avó da Joana [mulher de Cristiano e coproprietária da Quinta do Vale D. Maria] para comprar a quinta, fiz logo a vindima desse ano, para a qual tive o apoio brutal dos meus primos Symington, especialmente do Peter e do Paul, pois a quinta estava arrendada à Graham’s por um prazo de 30 anos. Eles disseram-me: “No dia que tu quiseres a gente entrega-te a quinta”. Já estávamos em setembro e eu disse-lhes que a vindima era deles, mas eles insistiram: “Para arrancares como deve ser, a vindima é tua”. Ao que acedi, agradecido, mas dizendo-lhes que ficaria com as uvas pelo valor de compra. Mas eles não aceitaram e disseram-me: “Não, só nos vais pagar o preço de custo que tivemos”. Isto é muito bonito de fazer e nunca mais me esquecerei deste início.


A segunda coisa que guardo na memória tem a ver com o Dirk [Niepoort] e com os meus amigos dos Douro Boys. Eu estava a trabalhar na Quinta do Crasto e a arrancar com o projeto da Quinta do Valado e o Dirk ofereceu-me a adega dele para fazer o meu vinho. E assim foi. O primeiro vinho da Quinta do Vale D. Maria foi pisado em 1996 e a primeira pessoa a entrar no lagar foi a minha filha Francisca, que tinha 10 anos, vestida com um fato de banho amarelo. O vinho de 1996 foi feito na Quinta de Nápoles e o Dirk diz, com alguma propriedade, que é o melhor vinho da Quinta do Vale D. Maria – e é verdade, está absolutamente fantástico, é um vinho extraordinário.”
Por instantes, voltamos ao assunto da compra da Quinta do Vale D. Maria pela Aveleda para perceber que, afinal, o negócio estava desenhado há muito, muito tempo: “Quando comprei a quinta em 1996 não se podia ficar aqui a dormir, estava tudo em ruínas. Por isso continuei a viver no Porto. Ora, nas minhas idas e vindas constantes ao Porto farta-me de passar na Aveleda e, vezes sem conta, agarrava no telefone e ligava ao António e ao Luís – pai e tio do António e do Martim – a perguntar-lhes se não queriam convidar-me para almoçar… até que, no fim da vindima, passei uma vez mais por lá e perguntei-lhes: “Como sabem, comprei a Quinta do Vale D. Maria. Porque é que não fazemos alguma coisa juntos?”. Isto foi há 22 anos, quatro semanas depois de eu ter comprado a quinta. Na verdade, este acordo que fizemos agora em 2017 não é uma coisa surgida do nada, não resultou unicamente de uma necessidade absoluta seja do que for, mas é fruto de alguma coisa que vinha a ser pensada – embora sem nunca ter sido concretizada anteriormente – desde há 22 anos”.


A fechar a nossa conversa e a visita que fizemos à Quinta do Vale D. Maria, onde se respira otimismo e uma crença profunda no futuro do projeto, agora no universo da Aveleda, Cristiano van Zeller não deixou de falar dos Douro Boys, de que é parte integrante, e num grupo de amigos seus que foi decisivo na sustentabilidade do projeto do Vale D. Maria nos anos mais recentes:
“Os Douro Boys são a prova de que as parcerias – quando são bem-feitas e bem estruturadas – criam e acrescentam valor. No fundo, o vinho é para partilhar, seja com os amigos à mesa seja no negócio. Eu fui ajudado quando vivi algumas dificuldades, graças aos meus amigos António Lobo Xavier, Carlos Moreira da Silva, Paulo Azevedo, Dick Magalhães, Ângelo Paupério, Valdemar Pereira da Silva. Eles ajudaram-me quando foi preciso e o vinho é isto, é partilha. Essa ideia de que as coisas acontecem porque há um génio brilhante que faz as coisas todas sozinho é uma ideia que não existe.”