Revolução em Champagne

Fotografia: Arquivo

Uma nova geração de pequenos produtores, motivada como nunca a fazer vinhos de terroir, está a agitar as mais célebres garrafas de espumantes do mundo.

 

Textos Guilherme Corrêa e Igor Beron . fotos Arquivo

Desde que, nos idos de 17 de dezembro de 1662, o inglês Christopher Merrett publicou “Some observations concerning the ordering of wines” em ‘The mysterie of vintners’ para a Royal Society, em Londres – a prova cabal de que seis anos antes da chegada e nomeação do famoso Dom Pierre Pérignon como chefe de cave da Abbaye d’Hautvillers, os comerciantes de vinho britânicos já faziam deliberadamente o vinho da região de Champagne borbulhar – muita água, vinho e sangue passaram debaixo da ponte na mais célebre região de vinhos espumantes do mundo.


Efetivamente, como já é do conhecimento de boa parte dos apaixonados pela história e pelo vinho, os ingleses elaboravam vinho espumante no séc. XVII, com a adição de açúcar ou melaço aos vinhos que chegavam aos barris daquela região do outro lado do Canal da Mancha, mesmo antes dos franceses. O facto de terem desenvolvido garrafas de vidro mais resistentes, em fornos mais quentes alimentados por carvão mineral, ao invés de lenha, e redescoberto as rolhas de cortiça, tradição dos romanos desaparecida em França, foi determinante para as primeiras bolhas intencionais de Champagne serem consumidas nas tabernas londrinas.


As casas de Champagne espumante, do outro lado do canal, começaram a aparecer no séc. XVIII, sendo a mais antiga delas a Ruinart, de 1729 (a Gosset de 1584 elaborava vinho sem bolhas até então). Enquanto o séc. XIX foi marcado pela prosperidade das vendas e o surgimento de muitas casas importantes, como a Bollinger em 1829 e a Krug em 1843, o séc. XX registou um gigantesco desenvolvimento no savoir faire da elaboração dos espumantes que reconhecemos como os melhores do mundo e a criação da AOC em 1936. Apesar de duas Grandes Guerras - a região, na encruzilhada geográfica, foi terrivelmente afetada - e crises económicas, assistiu-se ao incremento de 33 milhões de garrafas produzidas em 1950 para 327 milhões em 1999.


Esse brevíssimo histórico serve apenas para dizer que, em tantos anos de vida, dificuldades e comemorações, foi no séc. XXI que se verificou a maior revolução, alegadamente, na forma de trabalhar a vinha, na adega, nas vendas e no consumo de champanhe. Enquanto no século passado o foco foi na adega, no savoir faire, temos a sorte de assistir nestes anos uma mudança de foco para as vinhas, para o espectacular e único terroir de Champagne. Essa bebida mágica é cada vez mais “vinho”, com todos os parâmetros de qualidade de um grande vinho tranquilo, e a espuma passa de protagonista para um papel secundário. Vinhas mal tratadas com excesso de produtos químicos e até lixo de Paris, rendimentos altíssimos, desconhecimento das origens e das características de cada “cru”, e um “assemblage” corretor, do tipo compensador de deficiências, na adega, já não são o hábito na região. A mudança das “flutes” para copos tipo Borgonha ilustra essa tendência de champanhe como vinho de terroir: a espuma continua lá a torná-la singular, mas agora temos um grande vinho com características únicas à frente, e não apenas uma marca forte a girar fora da órbita dos “crus” tão distintivos da região, um mero espumante circunscrito para comemorações.
E quem está à frente desta revolução, as grandes e famosas “maisons”, aproximadamente 360 casas que detêm 72% da produção do champanhe? Ou uma leva de pequenos produtores independentes que cultivam 90% das uvas da região, uma classe de 16.000 “growers” que entregam a produção às famosas “maisons”, às cooperativas e, cada vez mais, transformam a sua fruta em champanhes próprios de imenso carácter? Para ter certeza da resposta, nem é preciso consultar estatísticas de venda. Basta abrir as cartas de vinhos dos melhores restaurantes do mundo, entrar numa loja em Londres, Milão, Nova Iorque ou Tóquio, ou seguir os Instagrams dos principais críticos ou influencers de todos os continentes. Há uma avalanche de “grower champagnes” por todos os lados. E outro sinal do gigantesco sucesso, que advém de uma autoregulação inexorável do mercado, os preços das suas “cuvées”, antes reconhecidas por oferecerem melhor relação qualidade/preço do que das “maisons”, explodiram como uma rolha retirada com muita agitação. Vejam a Pierre Péters Heritage, a Georges Laval Les Longues Violes e a Jacques Selosse Millésime, para citar apenas algumas cuja barreira dos 500,00€ foi rompida na Europa.


Muitos destes “growers”, inspirados por figuras iluminadas e seminais como Anselme Selosse, lutaram e recuperaram as suas vinhas ligadas a contratos de fornecimento de longo prazo com as grandes casas e passaram a elaborar vinhos cheios de alma e, muito importante neste contexto, repletos de “gosto do lugar”, dos “crus” de onde provêm. Um deles foi Oliver Collin, um obstinado “vigneron” da agora ebuliente sub-região de Côteaux du Petit Morin, que estudou direito e enologia para ter os vinhedos familiares de volta, primeiramente, e depois para saber cultivá-los respeitosamente, elevando os seus champanhes Ulysse Collin ao nível máximo de excelência. Não que as grandes nunca tivessem focado em revelar alguns vinhedos muito especiais da região: a Philipponat elaborou o seu fabuloso Clos des Goisses a primeira vez em 1935, a Cattier o Clos du Moulin em 1952, e a Salon, hoje do grupo Laurent-Perrier, vendeu a primeira mágica expressão específica de Le Mesnil-sur-Oger em 1921. Contudo, esse foco dos “growers” nas suas vinhas específicas, ao invés da lógica centenária dos lotes regionais que sempre reinou nas grandes “maisons”, mudou radicamelmente e para sempre a visão que o mundo tem de Champagne; bem como e a forma de apreciá-la, não somente para celebrar um acontecimento, mas também em momentos de profunda reflexão sobre o poder e as matizes dos diferentes terroirs. 

Região em mudança

Apesar de 99,7% da área cultivada em Champagne ser dominada pelas variedades Pinot Noir (aproximadamente 38%), Chardonnay (aproximadamente 31%) e Meunier (aproximadamente 30%) e, em toda a sua história, pelos “assemblages” entre elas, com a revolução dos “growers” assiste-se agora também um notável crescimento dos espumantes 100% Pinot Noir e 100% Meunier. Embora na sub-região da Côte des Blancs grandes champanhes de puro Chardonnay – Salon, Les Chétillons de Pierre Péters, Clos du Mesnil da Krug – coexistissem com os lotes tradicionais, o facto de os pequenos produtores trabalharem praticamente vinhas próprias, e em crus específicos, significou um substancial crescimento dos Champanhes varietais de castas cultivadas em vinhas singulares. O grande exemplo é o 100% Meunier de outro amigo inspirado por Selosse, Jérôme Prévost, com o seu disputadíssimo La Closerie Les Béguines, um “single-vineyard” do vilarejo de Gueux, na Petite Montagne (Montagne de Reims). Champanhes elaborados com as outras castas ancestrais, como a Arbane, apresentada em carreira “solo” pelo “grower” Olivier Horiot, e com a Petit Meslier, começam a despontar também neste novo cenário de muita experimentação.


É indiscutível que o aquecimento global impactou contundentemente a região e deu novas armas aos revolucionários “growers” para fazerem a sua guerra e impor um novo reinado de estilo. Enquanto as colheitas até a década de 1970 eram em outubro, com uvas de baixíssimo álcool potencial (7°GL) e acidez nas nuvens, corolários de um clima continental muito frio e marginal, desde o final da década de 80 que apenas em 1991 e em 2013 vindimou-se naquele mês. Hoje as uvas estão muito mais maduras (9°GL e mais) e mais contidas na acidez, já colhidas no mês de agosto. Com 0,5°C de temperatura média a mais registada por década, segundo o Comité Interprofessionnel du Vin de Champagne, o clima mais quente da região implica vinhos mais estruturados e algumas “maisons” e muitos “growers” têm evitado levar a cabo a fermentação malolática, objetivando manter mais nervo e tensão nos vinhos. Com mais estrutura e profundidade, os produtores têm trabalhado os seus vinhos base ou “vin clair” com mais madeira, ainda que sempre de forma judiciosa, em formatos maiores, tostas precisas e madeira velha. Sem falar nas alternativas mais radicais como ovos de cimento ou ânforas - a Argilité do desafiador “grower” Tarlant é um belo exemplo de vinificação nestes recipientes milenares.
A revolução dos “growers” nas vinhas passa por uma profunda atenção com formas de cultivo mais sustentáveis, as quais, numa região com menos pressão de doença devido às alterações climáticas, tornaram-se mais viáveis e condizentes com os novos valores do mundo atual. O primeiro produtor biodinâmico certificado foi o “grower” Fleury, em 1992. Outros vieram na sua senda, como Larmandier-Bernier ou a nova sensação Vouette & Sorbée, ainda que seja importante mencionar que a maior área plantada em biodinâmica em Champagne seja da gloriosa “maison” Louis Roederer. As grandes casas também estão, definitivamente, a redefinir as suas práticas agrícolas.


Com uvas mais maduras pelo aquecimento global e pela viticultura muito mais respeitadora e qualitativa, os champanhes da revolução, verdadeiros vinhos de terroir, estão a sair para o mercado com menor pressão atmosférica, a espuma mais integrada e cremosa e, principalmente, com dosagens de açúcar mais comedidas. O que vale, no fim de contas, é o equilíbrio, que tem sido obtido sem a austeridade e a acidez estridente do passado, com dosagens abaixo dos 8gr./lt. de açúcar nos Bruts, e mesmo em categorias mais secas como nos Extra-Bruts (0 a 6gr./lt.) ou Brut Nature (sem dosagem, máximo de 3gr./lt.). Não é de estranhar, neste contexto, o interesse flamejante pelos cada vez mais incríveis vinhos tranquilos de Champagne, os Coteaux Champenois.
Por fim, cabe relativizar a questão dos “growers” e das “maisons”. Hoje há uma tendência compulsiva de endeusar qualquer champanhe que venha de um pequeno produtor - melhor ainda se descobrir algum que só o leitor conheça - em detrimento das grandes casas, algo totalmente sem sentido, pois estas estão a reagir vivamente e a aproveitar o que a revolução dos “growers” trouxe de melhor para a região. Não é porque o produtor é um RM (récoltant-manipulant, 100% dos Champanhes de uvas próprias) ou porque faz menos que 100 mil garrafas/ano que o seu champanhe é excelente: há mesmo alguns muito inconstantes e rústicos, sem a finesse e clareza da expressão do terroir extremamente calcário, apanágio dos grandes rótulos da mais fabulosa e singular região para espumantização do mundo. Estivemos em algumas feiras e eventos exclusivos dos melhores “growers” na França, provamos exaustivamente os seus champanhes nos últimos anos e dedicamos-lhes um guia, para brindarmos a uma revolução que apenas começou!

 

Montagne de Reims:

EGLY-OURIET 
Por gerações, a família constituiu um legado de vinhedos invejáveis nos “grand crus” de Bouzy, Verzenay e, especialmente, de Ambonnay. Chardonnay e Meunier são plantadas com sucesso, porém é aqui que a Pinot Noir atinge a sua maior glória. Os baixíssimos rendimentos praticados não encontram rivais na vizinhança, além de uma colheita arriscada que sacrifica produção para atingir qualidade e maturação. O “rei de Ambonnay” Francis Egly está à frente da enologia dessa imponente casa, e mesmo optando por não seguir receitas, algumas práticas são costumeiras na conceção da impressionante gama da Égly-Ouriet, como o uso de barris, longuíssimo período de contato com as leveduras, e o bloqueio da malolática, com o qual Francis acredita enaltecer a pureza e frescor de seus grandiosos terroirs. São vinhos de seriedade, expressam-se com imensa amplitude, força e descomunal estrutura, não deixando, todavia, que estas características se sobreponham à finesse. O Brut Rosé não é diferente. A cor é delicada, mas não se engane, a espinha dorsal é firme e rígida, edificando uma estrutura invulgar. Extremamente seco, vinoso e flertando com a austeridade, esse é um rosé intelectual, para iniciados. 

JÉRÔME PRÉVOST (LA CLOSERIE)
“Vigneron”, poeta e artista plástico, Jérôme faz arte vínica no seu micro domaine chamado La Closerie. À frente da “Meunier Renaissance”, alcançou um status inimaginável com uma variedade em que poucos viam encanto. No vilarejo de Gueux, num “single vineyard” de apenas 2 hectares, Les Béguines, nascem vinhos de culto. Herdado da avó, é plantado quase totalmente com Meunier, além de abrigar a adega e a casa do “vigneron”. “Protégée” de Anselme Selosse, com quem trabalhou e aprendeu a refletir profundamente sobre todas as reações das ações no vinhedo e na adega, impulsionando-o para trilhar o próprio caminho. Hoje, esses champanhes transcendem o que técnicas enológicas podem criar, pois são frutos de um terroir único, rico em fósseis marítimos deixados pelo oceano há milhões de anos,  formando uma composição rara de areia, calcário e giz no magnífico Les Béguines. Sublimemente, esses fósseis, mesmo que a ciência não prove ainda, transportam-se para os copos. Para ressaltar o terroir, rendimentos extremamente baixos e precisão na data de colheita são norma. Na adega, mínima intervenção. Inclusive das borras, com as quais Jérôme prefere o mínimo contato possível, apostando numa evolução mais interessante no período “post-degorge”. Tudo isso dá luz, magicamente, a um champanhe poderoso, de impressionante “savouriness”, marcado pela presença do oceano e sua salinidade. Les Béguines 2008, verdadeiro unicórnio, é um vinho de drama, personalidade e absurda energia.

BÉRÊCHE & FILS 
Os irmãos Raphaël e Vincent defendem com contumaz paixão e precisão uma tradição familiar que vai desde 1847 no “premier cru” de Ludes, no norte da Grande Montagne. Nessa área, a Pinot Noir não reina sozinha, a Chardonnay e a Meunier prosperam também. Trabalham a biodinâmica da melhor forma possível, e apenas parcelas de vinhas com mais de 30 anos de idade, em Ludes e na vizinha Rilly-la-Montagne, mas também em Mareuil le Port no Vallé de la Marne e no terroir de “graves” de Ormes, bem como nos “grand crus” de Ambonnay e Mailly-Champagne. Propõem lentas fermentações em madeira, com leveduras selvagens, e a tomada de espuma é feita sempre com rolhas naturais. O estilo é de potência e textura com emocionante finesse, como o deslumbrante Le Cran 2010, 50% Chardonnay, 50% Pinot Noir. 

CHARTOGNE-TAILLET
Parte do Massif de Saint-Thierry, Merfy era reputada desde a Idade Média, mas passou por períodos obscuros durante e depois da devastação da filoxera. Alexandre Chartogne, jovem herdeiro do pequeno domaine familiar, é incontestavelmente o novo protagonista de Merfy, e forja alguns dos vinhos mais distintos, expressivos e “terroir-driven” de toda a região. Durante um breve período ao lado de Selosse, com a influência tremendamente impactante, a energia e curiosidade em explorar garantiram o sucesso do jovem “vigneron”, elevando o domaine a novos patamares. Desde o século VII que Merfy é identificada por “lieu-dits”, resultado da união de forças dos viticultores e da abadia local que os ajudou a mapearem a geologia a partir do perfil de solos e exposições. Uma dádiva ao competente Alexandre, que fez disso o seu mantra e hoje vinifica uma série de parcelas que transbordam carácter e unicidade. Curiosamente, a presença de areia no solo em Les Barres deu origem a uma raridade: vinhas que datam de 1970 em pé-franco e que nunca foram atacadas pela filoxera. Devotada à Meunier e trabalhada totalmente de forma manual, visa evitar a compactação desses delicados solos arenosos de imensa drenagem. Mesmo que o foco do domaine seja nos “single vineyards”, não deixe de provar o espetacular vinho de entrada: Cuvée Sainte-Anne.

VILMART & CIE.
A casa Vilmart & Cie estabeleceu raízes em 1890 e continua nas mãos da mesma família. Laurent Champs, a quinta geração e amigo próximo de Anselme Selosse, faz parte da leva pioneira de vignerons a especificar as vinhas, enaltecendo o conceito de “vinho de terroir” até então pouco explorado na região. Membro da Ampelos, organização que certifica e promove vinhos orgânicos e viticultura sustentável, a família atesta que nenhum herbicida, inseticida ou químico é empregado nos seus 11ha de vinhedos. Laurent alcança resultados estupendos também na adega. O ambicioso produtor acredita que madeira e bâttonage alinham-se perfeitamente no tratamento dos vinhos, mas inibe a malolática. Concebe assim champanhes com um perfil de fruta madura e redonda, dotados de sedutora cremosidade na textura e imponente vinosidade, mas que mantêm a sua compostura, finesse, frescura e mineralidade arrebatadora. O Grand Cellier d’Or 2015 é uma lição de como usar com perfeição o trabalho do vinho base em madeira, e ostenta um equilíbrio monumental de força e finesse.

MARIE-NOËLLE LEDRU 
Herdeira de uma tradição de quatro gerações de viticultores em Ambonnay, Marie-Noëlle é indiscutivelmente a rainha deste “grand cru”. Numa época totalmente dominada pelas “grandes marques”, os Ledrus já desafiavam o “establishment” com champanhes independentes e exclusivos das suas vinhas. Desde 1984 a senhora Marie-Noëlle segue firme com os preceitos de trabalhar à mão as vinhas, sem qualquer emprego de herbicidas ou pesticidas, e de mínima intervenção na minúscula e gélida adega. Após um longo amadurecimento de 5 anos sobre as lias, os champanhes dominados pela Pinot Noir de Ambonnay revelam-se poderosos, dramáticos, profundos, alicerçados pela imensa mineralidade deste “cru” de exceção, como o Cuvée du Goulté Blanc de Noirs Grand Cru 2012, com camadas de complexidade.

BENOÎT LAHAYE
Pequeno domaine que cultiva 4,5 ha em terroirs excepcionais, certificado como biodinâmico pela Biodyvin há mais de uma década. As vinhas estão predominantemente no “grand cru” de Bouzy, além de 1 ha em Ambonnay e o restante no “premier cru” de Tauxières. Benoît Lahaye, a esposa e dois filhos trabalham incansavelmente para exprimir tudo o que a natureza lhes oferece, sem interferências ou ruídos. As máquinas deram espaço às mãos e aos animais. Os químicos foram substituídos por preparações biodinâmicas, extratos de plantas e aromaterapia. Na adega, as aplicações de enxofre são ínfimas e, desde 2008, aboliram-no totalmente na “cuvée” Violaine. A orientação sul de Bouzy se traduz em rica vinosidade e poder nos vinhos. Benoît procura, ainda assim, exaltar o lado delicado deste “grand cru”, com sutilezas que também encontramos nos seus vinhos de Ambonnay. Eles exemplificam o que há de melhor na cultura não-intervencionista. O Brut Nature, non-vintage, nasce da dobradinha de “grand crus” da família. Um Pinot Noir com um sutil toque de Chardonnay, que ostenta um defumado redutivo muito sedutor, e sugestões de giz a evocarem o senso de lugar.

FRÉDÉRIC SAVART
Fred Savart é uma força da natureza, um apaixonado por grandes vinhos antes de tudo, e transfere essa paixão visceral aos champanhes, trabalhados com imensa precisão a partir de parcelas em Écueil e Villers-aux-Noeuds, na Montagne de Reims. Os sommeliers mais influentes do mundo sentem a paixão espelhada em Fred Savart, e por isso esse “grower” é sempre um dos preferidos da classe. Se pudéssemos resumir numa palavra do estilo da casa, essa seria “pureza”. Os champanhes aqui são austeros, minerais, e imensamente puros, e emanam energia focada como laser do primeiro ao último gole. O puríssimo Le Mont Benoît 2014, 95% Pinot Noir e 5% de Chardonnay de Villers-aux-Noeuds, sem malolática e com apenas 2g/l de dosagem, de rara delicadeza floral e austeridade calcária ao mesmo tempo, é exemplar.

MARGUET
Benoît Marguet esculpe champanhes naturais, quase sempre puros e cristalinos, nos 8 ha em Ambonnay (7,30ha) e Bouzy (0,70ha), com a expressão máxima de terroir alcançada através da exploração de diversos “lieux dits” engarrafados separadamente. O compromisso com o meio ambiente e o lado esotérico da vida colocaram-no no topo, junto dos mais aclamados “natural growers” da atualidade. Nas vinhas velhas, trabalhadas a cavalo, e na adega, o movimento do cosmos é que dita o ritmo das atividades, e uma dimensão extra parece ser alcançada através de aromaterapia e fitoterapia. Esoterismo que pode soar como devaneio, mas que se traduz no sentimento que cada gole proporciona, agindo como um tónico rico em vivacidade. O uso de enxofre é mínimo, ou mesmo evitado integralmente, pois Benoît acredita que o seu uso interfere na energia dos vinhos. O Sapience, topo de gama, é uma peça única e rara na conceção dos grandes champanhes: a fruta que a compõe vem dos “vignerons” David Léclapart, Georges Laval, e Benoît Lahaye. Na sua versão 2008, é uma verdadeira obra de arte. 

A. MARGAINE 
Essa bela e pequena casa, com 6,5ha de terra, vive um momento empolgante. A quarta e quinta gerações trabalham juntas numa magnífica imersão nas vinhas, abandonando processos químicos e incorporando maior entendimento sobre as parcelas. A quase totalidade dos vinhedos da família Margaine está ao norte de Trépail, no “premier cru” Villers-Marmery. Terroir peculiar, é reconhecido por Chardonnay diferenciados pelas exposições sul e sudeste, que conferem potência e suculência aos vinhos, os quais ostentam uma estrutura mais semelhante à Pinot Noir que propriamente à sua companheira casta branca. Características cobiçadas por outras casas que utilizam estas uvas como ingredientes de lotes, concebendo assim mais amplos e acessíveis desde cedo. A. Margaine é reconhecida pelas vinhas velhas, que em média extrapolam os 30 anos, igualmente por um extenso acervo de vinhos de reserva, conferindo uma profundidade pouco comum entre os pequenos “growers”. A Special Club 2012 é concentrada, rica e cremosa, mas muito bem delineada na refinada acidez, que carrega leves toques iodados. 

J. LASSALE 
Casa de três gerações de mulheres, estabelecida em 1942 na vila “premier cru” de Chigny-Les-Roses, no norte da Grande Montagne, posição fantástica não somente para a Pinot Noir, mas para a Chardonnay e Meunier. Trabalham no respeito total pelas tradições, cultivam 16 ha em “lutte raisonnée”, usam uma velha prensa de madeira de mais de 50 anos, vinificam cada parcela individualmente e sempre fazem a malolática completa, contribuindo para uma textura cremosa e uma espuma fundente dos champanhes. Chantal Decelle-Lassalle e a filha Angéline Templier envelhecem longamente as suas “cuvées” sobre as lias. Aqui nunca falta elegância, um nobre caráter tostado e grande harmonia, como o Cuvée Blanc de Blancs 2008.

PAUL BARA
O “grand cru” de Bouzy é sinónimo de Paul Bara. E também de Pinot Noir. Com exposição ensolarada a sul e solos sedimentares que podem separar a rocha mãe calcária em até 3 metros de profundidade, a nobre casta tinta encontra ali o seu terroir de eleição para espumantes e vinhos tranquilos superlativos em estrutura. Paul era um “récoltant-manipulant” de imenso respeito, herdeiro de uma tradição familiar que remontava a 1833, e sempre apostou num estilo maduro, de potência austera, com grande capacidade de guarda. Após o seu falecimento, em 2015, a filha mais velha Chantale segue na defesa desta filosofia, no trabalho em “lutte raisonnée” nos 11 ha de vinha, guardiã de uma impressionante adega subterrânea escavada na pura “craie”. O seu Spécial Club Rosé é sempre uma referência entre os produtores afiliados ao Club Trésors.

HURÉ FRÈRES 
Fundada em 1960, a casa passou a chamar-se Huré Frères quando os irmãos Jean Marie, Marc e Raoul a assumiram em 1971. Desde 2008 que o preparadíssimo François, filho de Raoul, lidera a empresa, com 10 ha em “lutte raisonnée” ou cultivo orgânico, no “premier cru” de Ludes. François é conhecedor, discreto e tímido num primeiro contacto, e depois revela a experiência, energia e intelectualidade, tal como os champanhes que elabora. Notável a pureza e precisão de toda a gama, e o contraste entre uma textura rica e acidez vibrante. A Mémoire tem como base uma “cuvée perpétua” de vinho de reserva amadurecido em foudre, ali agregados ano após ano, desde 1982. Precisa de tempo, mas depois revela seu grande caráter. 

LACOURTE-GODBILLON
Apenas na geração passada a tradição da família de entregar as suas preciosas uvas à cooperativa local foi rompida, trocando o status desse emergente domaine para “récoltant-manipulant”. Diretamente inspirados pelos antepassados, o jovem casal Richard Desvignes e Géraldine Lacourte também trazem a ruptura: em 2006 abandonam os cargos de executivos de cidade grande para se dedicarem ao cultivo das vinhas da família no “premier cru” de Écueil. O pequeno vilarejo soa desconhecido, mas é fonte de nobre Pinot Noir de aclamados produtores. Porém, a riqueza geológica do lugar, com solos que transitam entre areias, argilas e puro giz nas encostas, também dá vida a Chardonnay de respeito, como é o caso de seções de Les Chaillots e Hautes Vignes. Destaque para o Brut Nature, composta de 50% Pinot Noir e 50% Chardonnay, com notas transparentes de autólise e salinidade em rica complexidade. 

EMMANUEL BROCHET
Emmanuel recuperou uma parte das vinhas da família em 1997, num vilarejo esquecido da Petite Montagne, o “premier cru” de Villers-aux-Noeuds. São apenas 2,5 ha no “lieu-dit” Le Mont Benoit, com uma parte de vinhas velhas plantadas em 1962. Em 2002 aboliu herbicidas e inseticidas e partiu para certificação orgânica, obtida em 2011. Não apenas por uma questão de harmonia e busca de mineralidade mais expressiva nos vinhos, Emmanuel acredita que o prazer em trabalhar em vinhas vivas é fundamental para almejar grandes resultados. Os seus champanhes são contundentes no carácter mineral, e às vezes um sopro mais volátil no nariz aporta um “lift” no frescor marinho e calcário. Muito concorrido, de escassíssima produção, degustamos o Les Hauts Chardonnay 2010 e o Les Hauts Meunier 2011, este último mais complexo, belo exemplo da casta, da vinha e da filosofia menos interventiva.

ELÉMART-ROBION 
Produtor minúsculo, com apenas 10.000 garrafas anuais, focado na cultura biológica nos seus 4,5ha a sudoeste de Reims, em Lhéry (“tuffeau” e areias, frescura e mineralidade) e Courtagnon (mais argilo-calcário, estrutura e “rondeur”), no Vallée de l'Ardre, onde reina a Meunier. Recuperaram a exploração agrícola da família em 1992 e, em 2011, concretizaram a conversão para cultivo orgânico cuidadoso, desde a preparação da própria compostagem à redução dos rendimentos na poda curta. Os Robion trabalham e colhem cada parcela manualmente, fermentam com leveduras indígenas e envelhecem longamente as suas “cuvées”. A VB 01 foi lançada em 2018, com 90% de Meunier e 10% de Pinot Noir, a partir da safra de 2014, dosagem de 4g/l de açúcar. Carácter “gourmand”, muito vivo e mineral. 

DAVID LÉCLAPART 
David Léclapart personifica essa moda, às vezes sem limites, que surgiu em torno dos pequenos produtores revolucionários de Champagne, na qual tudo é perdoado quando se faz parte da turma. Se ele oferece no seu rol de “cuvées” algumas expressões fascinantes do “premier cru” de Trépail, por outro lado, e muitas vezes, deparamos com garrafas a manifestarem sérios problemas de “mousiness”, aniquilando completamente a ligação ao terroir e o seu impecável trabalho biodinâmico em nada menos que 22 parcelas para apenas 3ha de vinhas. Trépail é uma exceção na Grande Montagne, virada totalmente a leste, com a rocha mãe calcária muito perto da superfície. Esse terroir de altitude, frio e calcário gera Chardonnays austeros, minerais, mentolados e anisados, “pura pedra” quando bem trabalhados! Foi o caso do excelente não-espumante Coteaux Champenois Trépail Blanc.

FRANCIS BOULARD
Francis Boulard e a filha Delphine são as provas vivas da transição bem sucedida para a sétima geração de “vignerons” na família. O pequeno domaine conta com apenas 3ha de seleções massais distribuídos entre Meunier, Chardonnay e Pinot Noir no Massif de Saint-Thierry e algo no Vallée de la Marne. A vinificação em madeira antiga e “bâtonnage” frequente são utilizadas para ressaltar a riqueza dos vinhos que naturalmente nascem bastante maduros nas vinhas, tendo em vista que o produtor colhe tardiamente. A “blanc de noirs” Les Murgiers Brut Nature é a “cuvée” de entrada, e esbanja a fruta rica da Meunier aliada à força vinosa da Pinot Noir, categorizando-a como um excepcional custo-benefício. É interessante ressaltar que Francis engarrafa somente em “dia de fruta”, seguindo os princípios do calendário biodinâmico.