Vinho e Picante: Harmonização

Fotografia: Ricardo Garrido
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Quando a coisa aquece a sério, com que vinho podemos apagar o fogo? O senso comum dita que os vinhos menos alcoólicos e com mais frescura são os ideais. Será que a ciência por trás das boas harmonizações está de acordo?

 

Em primeiro lugar, é bom sabermos que a sensação de picante é a agressão deliberada de algumas plantas e frutos aos seus devoradores pouco relevantes para a perpetuação destas espécies. Ao longo da sua evolução, uma parte do género de plantas Capsicum, que inclui pimentões e pimentas, como os piripiris (em Portugal e Moçambique), as malaguetas (no Brasil), os gindungos (Angola), habaneros (México) ou tabasco (EUA), entre outros, para além da pimenta-preta ou pimenta-do-reino, como é conhecida no Brasil, esta última do género Piper, mostrou-se mais bem adaptada porque desenvolve substâncias de proteção, como a capsaicina e a piperina, respetivamente.

A capsaicina das pimentas vermelhas e amarelas, sobretudo, é extremamente irritante para os herbívoros e mamíferos, cujos dentes molares destroem as sementes, impedindo-as de germinarem. Ao contrário, estas sementes passam intactas pelo sistema digestivo dos pássaros e as espécies de Capsicum são assim dispersadas mais longinquamente. Não coincidentemente, os “recetores de potencial transitório vanilóide” tipo 1 (TRPV1), que geram estímulos agressivos de nocicepção nos herbívoros e mamíferos, sinalizam ao cérebro que há na região afetada algo similar a um calor extremo ou um dano abrasivo, mas nos pássaros não causam nenhum tipo similar de impulso perante à capsaicina. As regras da natureza são belas e implacáveis!

Para além da capsaicina (8-Metil-N-vanillol-trans-6-nonenamido), um vanilóide campeão na agressividade aos destruidores de sementes, incluindo nós, humanos; e do alcaloide piperina da pimenta-preta, algo picante e também amargo, há outras substâncias que pegam fogo ao palato, ainda que com objetivos e intensidades nem sempre iguais. O gingerol e o shogaol do gengibre e da galanga tailandesa, que usam os mesmos canais nociceptores da capsaicina, são outros exemplos, ou o isotiocianato de alila da raiz-forte Meerrettich alemã ou do wasabi japonês, ou mesmo a alicina dos alhos e cebolas cruas. Não gosto de sofrer, mas adoro tudo isso.

Mecanismo da capsaicina

Para sabermos como combater o fogo causado por alimentos ricos em capsaicina, devemos perceber de que forma interage connosco e quais as suas fraquezas. Ao colocar uma garfada picante na boca, as moléculas do composto ligam-se a uma estrutura das células nervosas chamada canal iónico, fazendo com que esse canal se abra (o TRPV1). Outras moléculas correm pelo canal e inundam a célula nervosa, fazendo com que dispare e envie o sinal de agressão à medula espinal e depois ao cérebro. Tudo numa fração de segundo. A resposta do nosso organismo a esta ativação de nociceptores vem em forma de vasodilatação, vazamento vascular e inflamação. Ou seja, não há de facto qualquer queimadura química causada pela capsaicina, ou mesmo um aumento de temperatura considerável na zona afetada, apenas uma reação do nosso corpo à molécula ardente. É um efeito neurológico e não químico, tal como a adstringência dos taninos. Por isso mesmo, passados aproximadamente 15 minutos (ou alguns mais em casos de comidas demasiadamente picantes), o palato está recomposto e íntegro ou, como se diz tecnicamente, dessensibilizado da capsaicina.

Atualmente, há muitos estudos científicos em torno desta substância orgânica e os seus efeitos na saúde, mormente as suas aplicações farmacêuticas, como o combate à obesidade, ou o poder analgésico e antissético. A capsaicina pura é um composto extremamente pungente, hidrofóbico (não se dissolve em água), incolor e inodoro. Dessa forma, é praticamente inútil lavá-la com água. Esta, na verdade, irá espalhar o ardor para partes do palato antes não afetadas. A sua solubilidade ocorre com solventes orgânicos como o álcool etílico, o éter ou clorofórmio, ou com óleos e gorduras (lipossolúvel). Será uma mera coincidência os gordurosos abacates ou “sour cream” acompanharem as delícias incandescentes mexicanas?

Muito interessantemente, os nossos nociceptores da capsaicina são distraídos na boca pela presença reconfortante de açúcares. A mais famosa escala de medição do grau de ardor das pimentas, desenvolvida nas primeiras décadas do séc. XX pelo farmacêutico americano Wilbur Lincoln Scoville, baseia-se precisamente num teste organolético em que os provadores são confrontados com os extratos de cada pimenta diluída em concentrações diferentes de água com açúcar, até ao ponto em que o ardor é anulado. Os açúcares ligam-se aos recetores mais rapidamente que a capsaicina. Por isso, para nossa salvação em situações extremas num restaurante indiano ou tailandês, basta levar um torrão no bolso.

Os ácidos, por sua vez, ajudam a neutralizar a base alcalina da capsaicina. Bebidas ou sumos ácidos de fruta servidos bem frios aportam essa sensação refrescante e diminuem a atividade do alcaloide. Por falar em temperatura, um artigo publicado por Simon e Araújo no Journal of General Physiology explica que os nociceptores TRPV1 também acusam possíveis agressões de ácidos e de temperaturas acima de 42°C na boca e na face e que a presença de álcool baixa esse limiar para algo em torno de 34°C, a temperatura aproximada da língua. Ou seja, embora o álcool realmente dissolva - mas não neutralize - a capsaicina e a limpe do palato, o primeiro efeito é que deixa os recetores mais sensíveis ao seu estímulo, pelo que bebidas alcóolicas servidas mais frias podem amainar o seu impacto.

Um breve relato de como limpar (ou espalhar) a capsaicina

É-me impossível esquecer uma das minhas aventuras gastronómicas mais incríveis, ainda que dolorosas, no período em que estive a estudar em Londres para obter o diploma na Wine & Spirits Education Trust. Programei visitas aos restaurantes destacados de cada etnia, naquela cidade que congrega um pedaço de cada sítio do mundo. No melhor restaurante - segundo os guias locais - para comida da província de Sichuan, na China, optei, como é de praxe, por um menu de degustação completo e, ao ser questionado sobre alguma restrição alimentar ou sensibilidade ao picante, fui mais uma vez taxativo ao dizer “não”. Mas com Sichuan não se brinca e, naquela noite quente de verão londrino, a minha decisão incauta foi reforçada pela equivocada escolha de acompanhar com a cerveja local, ao invés de optar pela sábia escolha de um vinho adequado para a batalha. 

A sucessão de pratos foi absolutamente incrível, carregada de perfumes, da elétrica pimenta de Sichuan e do piripiri em todas as formas e, quanto mais eu comia e regozija-me com aquela viagem de sabores, mais suava e bebia cerveja, nutrido de uma falsa expectativa de que algo fresco e carbonatado como aquela Tsing Tao Premium 1903 iria contribuir de alguma forma para apagar as labaredas de fogo que saiam da minha boca, nariz e poros da pele. Já encharcado e vermelho, ouço o conselho da minha empregada de mesa chinesa, com um sorriso contido que amalgamava pitadas de vingança e dó: “Cuidado com o próximo prato”. Ao dar a primeira garfada no “pig’s ear in a chef special chilli oil”, logo após sentir a tão adorada textura das orelhinhas de porco, fui acometido por um crescendo de picante a explodir internamente e, desesperado sem saber até onde aquela sensação iria, esvaziei um copo inteiro de cerveja por cima. O desenlace deste que parecia ser o último gole da vida foi sair a correr para a casa de banho e entrar com a cabeça inteira debaixo da torneira de água fria. Ao ver este tolo ao espelho, a minha face e pescoço ostentavam vergões vermelhos, uma reação ao excesso de capsaicina e à escolha totalmente condenável da harmonização bebida-prato.

Voltei para a mesa como se nada tivesse acontecido: não ia deixar aquela simpática chinesinha ganhar a guerra a este experiente sommelier e glutão inveterado. Pedi então um copo de Chenin Blanc da África do Sul, com 13,5° de álcool, dotado de acidez cortante acidez e um toque de açúcar residual; consegui chegar vivo e exultante ao final da refeição, ainda que reflexivo quanto às eficácias tão diferentes da cerveja e do vinho para aplacar o ardor da capsaicina.

O que dizem os livros de vinho

De modo geral, a literatura sobre harmonização vinho-alimento apregoa que devemos combater o fogo com bebidas pouco alcóolicas, um pensamento simplista baseado na ideia de que ninguém apaga um incêndio com uma mangueira a expelir álcool. Ao rever a minha biblioteca sobre o assunto e mais umas pesquisas na internet, com raríssimas exceções, o que se lê e repete é que bebidas com teor de álcool reduzido ou carbonatadas, como cervejas e espumantes, dotadas de frescura e servidas a temperaturas baixas e, por vezes, com açúcares residuais, são a escolha adequada contra os assaltos de capsaicina. 

Uma exceção importante é o livro ‘Taste Buds and Molecules: The Art and Science of Food, Wine and Flavour’, do canadiano François Chartier, que expõe a necessidade de álcool (até 14° gr./l) para dissolver a capsaicina e acalmar o calor, além de abordar com muito detalhe as interações com outros elementos dos vinhos e de uma série de ingredientes e pratos. Da mesma forma, a escola italiana de sommeliers defende atualmente que o picante deve ser contraposto pela graduação alcoólica do vinho de forma a solubilizar a capsaicina e dirimir os seus efeitos, pela baixa temperatura de serviço para criar um efeito contrário ao pseudocalor gerado como estímulo pela substância e, finalmente, pela doçura residual que tende a anular o picante. 

Testes

Como grande parte dos livros e profissionais concorda que o açúcar – e, no caso particular dos bons vinhos, na forma de açúcar residual da fermentação (ou da dosagem final dos espumantes) - é um atenuador dos estímulos da capsaicina, decidi realizar os testes focado no efeito do álcool, o grande ponto de discórdia entre a esmagadora maioria que defende bebidas de baixo teor, e alguns poucos, como eu, que defende o uso do álcool, para limpar a capsaicina.

Para isolar o máximo de variedades possíveis, cozinhei uma massa bastante neutra e adicionei no final uma dose cavalar de “peperoncino” seco italiano moído que, ao contrário de muitos picantes que trazem um mundo de vinagre e aromas às receitas, conferem apenas doses explosivas de capsaicina pura. Tudo em nome da ciência!

Provei a massa com uma cerveja tipo Pilsen de 5° gr./l, com um vinho tinto de taninos extremamente dóceis de 12,5° gr./l e exatamente o mesmo vinho adicionado de álcool etílico puro até perfazer 14,5° gr./l. A cerveja, conforme experiências anteriores de extremo sofrimento aqui relatadas, cumpriu o seu papel de espalhar a capsaicina por toda a cavidade bucal. Afinal, com aproximadamente 95% de água na composição, não é capaz de solubilizar a molécula ardente. Mas é interessante que a temperatura de serviço, por volta dos 5°C, até cria uma ilusão de frescura nos primeiros segundos, mas depois o picante assume o protagonismo com uma força brutal. François Chartier defende até no seu livro que o dióxido de carbono aumenta a sensação de ardor da capsaicina.

Com o vinho adulterado para 14,5° gr./l, o primeiro impacto é justamente o contrário da cerveja. Mesmo cautelosamente servido a 16°C, o ataque é quente, inflama a boca e, possivelmente por isso, muitas pessoas acreditam que o caminho do álcool alto é errado para pratos picantes. Contudo, passados estes primeiros segundos de “combustão”, a capsaicina começa a dissolver-se no álcool e a ser lavada do palato com mais eficácia. Ao contrário da cerveja, este vinho limpou e não espalhou a causticidade para todo lado.

Mas, tal como na vida, no mundo das harmonizações o segredo também está no equilíbrio. O “compromise” ou consenso está em ter álcool a mais, o suficiente para solubilizar a capsaicina, e álcool a menos para evitar o seu impacto explosivo na entrada de boca, ao tornar os nociceptores TRPV1 muito sensíveis às moléculas do picante. Por isso o vinho de 12,5° gr./l foi o campeão. Pelas experiências anteriores deste sommelier, a faixa entre 12,5° e 13,5° é a melhor para trabalhar com pratos escaldantes. Tintos com até 14° gr./l podem ser arrefecidos para melhorar o seu desempenho, conforme vimos. E brancos com excelente acidez e um toque de açúcar residual, como alguns Vinhos Verdes (sem gás carbónico) e nos fabulosos Rieslings “off-dry” alemães, têm sucesso garantido quando a aventura gastronómica arder em chamas.