Vítor Matos e o vinho

O coração que lhe leva a razão

Fotografia: Daniel Luciano
José João Santos

José João Santos

Vitor Matos, o chefe habituado a estrelas Michelin que descobriu no vinho o sal e a pimenta da vida, acredita que haverá de ter uma vinha, a partir da qual conseguirá reforçar os laços à terra, numa espécie de reencontro emocional e físico com a sua identidade. Por ora, apresenta os Natura by Vítor Matos, edições de colecionador com amigos como António Maçanita, António Sampaio, Dirk Niepoort, Luis Leocádio, Márcio Lopes, Quinta do Arcossó, Quinta do Javali ou Quinta de Ventozelo.

 

A entrevista que estávamos a gravar caminhava para a fase final quando Vitor Matos suspira fundo e desabafa. “Acabo por não conseguir responder muito bem às perguntas que me fazes porque quando o coração se sobrepõe à razão ou ao negócio é muito difícil responder”. Ali, naquele momento, Vitor Matos assume em público o que lhe vai na alma, tudo aquilo que a pandemia de alguma forma precipitou e passou a tornar urgente. 
“Qual é o amor que vai vencer”, torna-se inevitável questionar. “O meu sonho é dentro de três, quatro ou cinco anos deixar a cozinha e conseguir fazer vinhos, viver unicamente de vinhos. Não é racional, a minha mulher diz que estou maluco”, admite.
O vinho parece ter-se tornado numa obsessão para Vitor Matos. Das saudáveis, como daqui a pouco perceberemos.


Nascido em Vila Real, a infância e juventude foram passadas entre Portugal e a Suíça porque a família decidiu procurar um futuro mais promissor. Dos regressos ao meio rural, tantas vezes parco em recursos, lembra-se que nunca podia faltar vinho na mesa, até porque a generalidade das casas tinha um lagar e meia dúzia de pipas onde as famílias tratavam de ter vinho para autoconsumo.
“Lembro-me do cheiro da adega do meu tio”, recupera Vitor Matos. Em menino, depois também em puto, juntamente com os primos entrava muitas vezes nos pipos para os ajudar a limpar, num misto de auxílio familiar e brincadeira pela certa. Daí ao que hoje lhe está a acontecer, nem o próprio suspeitaria possível.


Vitor não bebia vinho, nem quando começou a interessar-se e a estudar cozinha. A indiferença continuou pelos inícios do ofício, carreira iniciada nalguns hotéis de três estrelas. “Chefe Cozinheiro do Ano em 2003”, foi no cinco estrelas portuense Meridien que se confrontou perante uma nova realidade – os jantares vínicos e a importância de perceber o vinho para criar propostas capazes de garantir a devida combinação.
Como um verdadeiro amor, a chama acendeu-se e não mais se apagou, mesmo nos tempos de maior exigência profissional, onde as estrelas passaram a ser as Michelin, em restaurantes como o Largo do Paço – Casa da Calçada, em Amarante, ou o atual Antiqvvum, no Porto.
A primeira experiência mais a sério nasce com o Natura by Vitor Matos de 2015, um total de 66 garrafas de formato magnum para oferta de Natal aos amigos. Depois, a Quinta de Ventozelo desafiou-o a um vinho – Natura by Vitor Matos Grande Reserva 2017 (consultar edição 367 da Revista de Vinhos). De então para cá, criou uma autêntica coleção.

 

Edições escassas e irrepetíveis

António Maçanita, António Sampaio, Dirk Niepoort, Luis Leocádio, Márcio Lopes, Quinta do Arcossó ou Quinta do Javali são alguns dos nomes com quem Vitor Matos está a elaborar vinhos. 
A partir de uma ideia que vai matutando tem ido ao encontro “destes amigos” para perceber de que forma a poderá concretizar, ou seja, como o poderão ajudar. É um processo que implica provas, lotes, conversas e momentos de reflexão e de discussão, muitas vezes à mesa, algo que particularmente o entusiasma, sobretudo se conseguir envolver mais pessoas no debate do que poderá vir a ser um novo vinho. Assegura, todavia, que nessa primeira fase de construção não fica condicionado no “pairing” com a comida, procurando que esse determinado vinho expresse, acima de tudo, o pensamento de quem o faz, a(s) casta(s)  e o lugar de nascença.


A esmagadora maioria das criações conhece barricas (só um branco e um tinto não têm passagem por madeira), quase sempre usadas. Quer acrescentar volume e dimensão ao vinho, sem o marcar em demasia. Vitor Matos defende um perfil de vinhos elegantes, que à mesa não se sobreponham, antes permitam um equilíbrio com a gastronomia.


Terminado o momento criativo, o restante processo –  “Sou eu quem trata do lacre das garrafas, que embrulho as caixas e que as entrego. Já fui de propósito ao Cacém entregar pessoalmente três garrafas”.
Estes tempos de pandemia, em que os restaurantes estiveram a funcionar a ritmo lento ou a não funcionar de todo, aceleraram o crescimento da coleção e têm ainda motivado outras reflexões.
“O mundo da gastronomia é desgastante, todos procuram a cereja no topo do bolo, todos querem ser irreverentes e diferentes. Julgo que o que havia para inventar já foi inventado. A gastronomia tem que regredir, que voltar à terra para, a partir daí, novamente subir de patamar. Mas temos que a repensar, temos que voltar à origem, a comida deve ser genuína, ter sabor”, partilha.


Vitor Matos, o chefe habituado a estrelas Michelin que descobriu no vinho o sal e a pimenta da vida, acredita que haverá de ter uma vinha, a partir da qual conseguirá reforçar os laços à terra, numa espécie de reencontro emocional e físico com a sua identidade. Ele próprio colecionador de alguns milhares de garrafas de vinho, imagina-se um dia a cozinhar em casa para amigos e apenas em momentos especiais, porque o vinho lhe roubará toda atenção. 
“Isto é muita paixão, é muito amor, carinho, feeling, empenho pessoal…”. O amor é sempre tramado de transmitir por palavras, não é?