Vizinho Vinhateiro

O Dão dos ‘vignerons’ Charlotte Hugel e Paul Chevreux

Fotografia: Ricardo Garrido
Marc Barros

Marc Barros

Entre Viseu e Tondela, na aldeia do Farminhão, um jovem casal de ascendência gaulesa adquiriu e fixou-se na Quinta da Roda da Quintã, onde produz os vinhos recentemente lançados sob a designação Vizinho Vinhateiro. Quem diria que, por trás destes vinhos, há um conceito que tem séculos de história, que nos remete para a Alsácia?

 

Na Quinta da Roda da Quintã, localizada na aldeia de Farminhão, próxima de Viseu, instalou-se recentemente um jovem e discreto casal de origem francesa, com vista a perseguir o seu sonho de produzir vinhos de altíssima qualidade em modo orgânico, ao mesmo tempo que recuperam a casa solarenga que adquiriram.


Até aqui, tudo pareceria relativamente usual, tendo em conta as tendências mais recentes que nos dão conta do número crescente de famílias estrangeiras que procuram o nosso país para viver e trabalhar - a não ser pelo facto de uma das metades do par em causa ostentar um sobrenome que, aos amantes dos vinhos, não passa despercebido: Hugel.


Com efeito, Charlotte Hugel, parte da 13ª geração descendente da família de origem suíça que se fixou na Alsácia - onde produz os seus celebérrimos vinhos desde 1639 - e neta do recém-falecido André Hugel, veio para o Dão na companhia do marido, o enólogo Paul Chevreux, que conheceu em Portugal, quando ambos trabalhavam nas caves Graham’s.


O destino não foi alheio a esse momento, já que a Symington Family Estates integra, tal como a Hugel & Fils, a Primum Familiae Vini, entidade que reúne 12 das mais reconhecidas empresas familiares do mundo do vinho. E, tal como é tradição nas empresas familiares, depois de cursar direito e economia na Universidade de Estrasburgo, Charlotte iniciou o seu percurso profissional fora da empresa da família, tendo passado pela Graham’s, antes de regressar à Alsácia.
São os próprios quem nos conta que habitam em permanência no Dão há três anos, tendo o casal travado conhecimento no Porto há oito anos. “Foi um período muito feliz, pois convivíamos com pessoas de todo o mundo”, recorda Charlotte. “Estivemos entretanto em França, na Borgonha, também em Londres, mas por qualquer razão sempre nos sentimos bem em Portugal”, prossegue. “Tivémos um colega na Graham’s que nos dizia que o Dão é a Borgonha de Portugal. Somos pessoas do Norte que gostam destes vinhos de terroir, com mais frescura e menos grau. Apaixonámo-nos por esta região, que tem um grande potencial que não está explorado ao máximo”.


A partir de 2016 começaram a perscrutar a região, em busca do melhor local, da melhor vinha, da melhor casa, nas diversas sub-regiões: começaram pelas zonas mais altas junto à Serra da Estrela, pelo caminho conheceram o enólogo e académico Virgílio Loureiro, com quem se informaram, procuraram e procuraram e, depois de muita procura, encontraram o solar e Quinta da Roda da Quintã, na aldeia do Farminhão, entre Tondela e Viseu, que pertenceu outrora à família Correia de Campos, proprietários da Penha Longa.
Feito o negócio, houve que começar a tratar da reabilitação do solar, desde logo pelo telhado. Janelas, portas, a lindíssima capela, algumas divisões, tudo vai-se fazendo, ao sabor das possibilidades e dos afazeres da quinta.

Todo um mundo no Dão

Os primeiros passos de Paul Chevreux no vinho foram na Graham’s. “Fiquei apaixonado pelo produtor e queria aprender mais”. Depois de estudar em Baune, na Borgonha, onde ficou cinco anos a estudar e a trabalhar, nas vinhas e adega, do Domaine Thibault Liger-Belair, em Nuits de Saint Georges, Paul e Charlotte concluíram que seria difícil instalarem-se na Borgonha: “É muito complicado” (leia-se caro), pelo que “ficamos com a ideia de voltar para Portugal”.


Parte da tomada de decisão deveu-se às incontáveis provas de vinhos portugueses que levaram a cabo, “entre os quais vinhos dos anos 70 e 80 do Dão, que tinham um estilo e uma frescura que tinham a ver com as nossas regiões, Alsácia e Jura, mas também da Borgonha e Beaujolais, onde trabalhei”, recorda Paul. “E em todas as sub-regiões do Dão percebemos esses perfis e estilos”. Desde logo, “o potencial das vinhas velhas” e “as castas fascinantes”.


A dada altura “encontramos esta casa e esta adega”, numa aldeia onde “em todas as casas há adegas, de várias dimensões”, mas onde subsistem somente “quatro ou cinco hectares de vinhas”, o que leva Paul a concluir que “muitas vinhas velhas foram arrancadas nos últimos 20 a 30 anos”. Ou seja, “tudo aqui era vinha, que foi abandonada e engolida pela floresta”. Aliás, a própria adega da casa de Paul e Charlotte conta com 13 cubas de cimento de capacidades variáveis e oferece capacidade para produzir 200.000 garrafas por ano. “Por isso falta aqui alguma coisa…”, remata.


Possuem um hectare de vinhas velhas, a mais antiga plantada em 1931, em Canas de Santa Maria, onde Paul e Charlotte praticam o que designam como poda fisiológica, que bebe parte dos ensinamentos da viticultura biodinâmica. Esta vinha tem capacidade para produzir 6.000 garrafas, a que se juntam as uvas que adquirem a dois outros lavradores locais.


Os primeiros vinhos, um tinto e um palhete, foram lançados em 2021, num total de 4.000 garrafas, sob a marca Vizinho Vinhateiro. Em 2022, esperam produzir 8.000 garrafas, incluindo uma primeira experiência com um branco, à base de Arinto, Bical, Fernão Pires e um pouco de Malvasia Fina. Os rótulos, feitos com base nos azulejos da casa e capela da quinta, são um apelo à raiz do projeto e, ao mesmo tempo, uma marca que pretende remeter para outro dos desideratos do casal: receber visitas.
“Em qualquer dia do ano, a adega Hugel está aberta, a entrada é gratuita e pode estar até alguém da família a receber”, reflete Charlotte Hugel. “Isso é normal, faz parte da nossa cultura, não é negócio. Gostamos de estar presentes, abrir garrafas e falar sobre os nossos vinhos”. É esse espírito de hospitalidade que pretende trazer para o seu projeto do Dão, que junta uma vertente ligada aos cavalos, que Charlotte adquire, desbasta, treina e vende em França. “São muitos projetos, não sabemos ainda a que dar prioridade, se arranjar a casa e ter quartos, cimentar a produção de vinhos, enfim, uma coisa de cada vez…”, sublinha.

Os vizinhos vinhateiros

As semelhanças que observou entre o Dão e a Alsácia são desde logo identificadas por Charlotte Hugel: “O amor pela terra”, atira. “O Dão - e Portugal - têm muito viva a tradição de comprar uva que é vinificada pelas grandes empresas. O que queremos trazer é abertura, baseada no conhecimento que adquirimos ao longo do nosso percurso e de todos os sítios onde estivemos, bem como a vontade de trabalhar a vinha, no fundo sermos ‘vignerons’ – fazer a ligação entre a vinha e o vinho”, em que conta mais “o espírito que a técnica”.


“As vinhas da Alsácia não são muito melhores as vinhas do Dão – sabemos que há muitas pessoas que não usam herbicida , que fazem produção para consumo próprio, o que é muito diferente do que produzir para comercializar”. 
Descobriram que a prática de enxertar a vinha apenas dois ou três anos após a plantação do porta-enxertos é comum em Portugal, ao contrário, por exemplo, do que acontece na Borgonha, onde esta técnica se perdeu e está a ser recuperada. “Portugal não pode ter vergonha das suas práticas e guarda ainda as vantagens que a França perdeu e está a redescobrir”, reflete Charlotte. “Queremos valorizar o conhecimento antigo com a nossa experiência comercial e de vendas, para preservar e valorizar o património rico e as vinhas desta região”.


Mas a pergunta que levou Charlotte e Paul a tomarem a sua importante decisão está ainda por responder – o Dão é a Borgonha de Portugal? “Em muitos aspetos é verdade”, sustenta o enólogo francês. Desde logo “pela elevada pluviosidade, que pode chegar a 1.200 mm / ano, o que é muito bom; em termos de solos não têm nada a ver, com o granito do Dão e o argilo-calcário da Borgonha. Mas podem fazer-se vinhos de perfil diferenciado, há uma ligação entre os dois em termos de tradição, no trabalho com a barrica, por isso – sim!”, exclama Paul. Em termos climáticos, o enólogo regista “dias muito quentes e noites frias, com diferenças de temperatura podem ir dos 15 aos 20 graus. Mesmo em agosto temos manhãs frias, com nebulosidade, o que é muito bom para a maturação das uvas”.


E se o perfil do Dão “é de acidez, tanino de qualidade e boa fruta no nariz”, existe também “a austeridade e as notas terrosas”. Paul “gosta de deixar falar a uva, resultado do ano e da natureza”. Os vinhos já lançados “vão evoluindo”, em que “no início era mais fruta, agora mostram-se mais terciários”.


No futuro, o casal pretende cimentar a produção num branco, tinto e clarete, “vinho que era muito característico do Dão e que procura aprofundar”, afirma Paul. “A cada ano que passa mais gostamos da região, ainda depois de conseguirmos fazer os vinhos que queríamos e poder apresentá-los”, complementa Charlotte. A presença em restaurantes selecionados e algumas garrafeiras de eleição anima a produtora, que não quer, contudo, dispersar a oferta. Afinal de contas, são eles os Vizinhos Vinhateiros…

 

Quinta da Roda da Quintã
R. Capitão Leitão, 19
3510 – Farminhão, Viseu
T. 232 996 582