A arte de cozinhar em lume de chão

Cocaria

Fotografia: Fabrice Demoulin
Fátima Iken

Fátima Iken

É uma prática multissecular, mas a tradição ficou para a posteridade como testemunho da nossa cultura. A “cocaria” que no Alentejo ainda hoje se pratica, mas de forma rara, é símbolo da verdadeira arte da cozinha e comensalidade, apesar da sua origem surgir sob a égide da sobrevivência e trabalho árduo. Cozinhar em barro num “lume de chão” remonta aos primórdios da humanidade mas consegue alcançar maior concentração de sabor devido ao tipo de cocção. A cozinheira é a chamada “coqueira”, uma maestrina que harmoniza sabor, tempo e brasas. Na Herdade do Cebolal não se deixa morrer a tradição.

 

Quem observa esta série de potes de barro, tipo pucarinho, alinhados de forma aconchegada junto a uma linha fumegante de brasas no chão e ouve o estrepitar da combustão, entre o cheirinho que se evola desta fogueira rodeada de azinheiras, não pode deixar de ficar em silêncio. Há uma espécie de sacralidade neste ritual que se perscruta num mar de sensações à flor da pele e que passam pelo olhar, o cheiro, os ouvidos e, mais tarde, o paladar. Uma alquimia que evoca fecundidade, lar e partilha. Muito especial, mesmo.
Uma mulher, a chamada coqueira, fica rentinha aos potes alinhados, tal qual uma mãe atenta, velando pelo cozinhado que lá dentro se embala sobre o borbulhar macio e lento das brasas. 
Este método de cozinhar em lume de chão do mundo rural garante uma sapidez única devido à equação de tempo de cocção, calor lento e recipiente fechado que permitem abeberar o alimento. Remonta a muitos séculos atrás, mas seria mais incisivamente a partir do século XIX que ganhou novo alento. Neste caso, a nossa “coqueira” eleita para hoje - da Herdade do Cebolal, em Vale das Éguas, Santiago do Cacém - vai ser Mariana. Aquela avó que todos gostaríamos de ter. Há 50 anos que cumpre este ritual que principiou com os trabalhadores da cortiça. Como uma maestrina, vigia a cozedura ou acrescenta água quando é necessário e fica permanentemente atenta ao vento, como um marinheiro em terra. Porque, no fundo, cozinhar é isso mesmo, regular de forma equilibrada, estar atento ao fogo e tempero.


Como se, tal como um maestro, fosse necessário criar uma musicalidade harmoniosa, gerir os tempos de ação de todos os instrumentos (fogo, água, alimento) para um resultado aprazível que depende não só da vigilância como das sacudidelas à panela para revolver os alimentos e cozinhar tudo por igual.


O vento vira de repente e a canícula aumenta, pelo que há que mudar os púcaros de sítio e controlar o lume de um lado e do outro.
A “coqueira” tem de manter o lume atiçado, vigiar a cozedura em cada pote e cada alimento, manter a água do caldo e controlar o tempero, havendo ainda a presença da “aguadeira” já que a água mantinha-se em potes também fresquinha para saciar a sede de quem chegava da labuta.


Não são músicos os potinhos que se alinham na correnteza das brasas, mas bem podiam ser. Pelo menos é música com cheiro e sabor, o que até ganha em termos sensoriais. E essencial é não só o fogo como o tipo de recipiente que retém a sapidez do caldo e burila a intensidade das brasas extraido lentamente as enzimas da carne. Este cozinhado coletivo é, para além do mais, muito agregador. 
Sob um sol a pique, Mariana não parece importar-se muito com a temperatura, já que o seu corpo se moldou a isso. “Para mim é igual estar aqui ou estar à sombra”, conta-nos com um sorriso solar que parece traduzir este seu lado maternal de velar pelo alimento dos outros, mesmo numa tarde abrasiva de setembro... “Cada um levava o seu farnel, os ingredientes, que podia ser feijão com batatas, grão-de-bico, bacalhau, couves, um bocado de toucinho. Carne era muito raro. Isto é uma zona pobre. Depois, tinha de se cozinhar com o que havia. Nós velávamos cada pucarinho e ficávamos à coca. Por isso se chama coqueira”, diz Mariana.
A arte da “cocaria” está em extinção e só hoje se faz muito raramente, pela perspicácia de alguns que não a deixam morrer. É o caso da Herdade do Cebolal. Situada a 17 km. da região demarcada da península de Setúbal, a herdade está na mesma família há 150 anos, e segue uma filosofia emblemática onde a sustentatibilidade é a bússola. Luís Mota Capitão, da quinta geração, é agora o responsável por este projeto exemplar e também enólogo da casa, a par da sua mãe Isabel, que se revela igualmente uma excelente anfitriã. “Apostamos numa economia circular onde a sustentabilidade é muito importante, onde a vinha, o solo, a floresta, a fauna e flora se integram globalmente. E fazemos questão de preservar todo o tipo de tradições locais, como é o caso da cocaria”, enfatiza Luís.


A Herdade do Cebolal aplica-se, como caso emblemático, a trabalhar de forma integrada com a economia local e segue um cultivo agroflorestal baseado na sintropia, caracterizado pelo equilíbrio, preservação energética e ambiental, seguindo o lema dos ecossistemas com pouca intervenção externa. Isso mesmo pudemos observar entre o aroma das figueiras, medronheiros, oliveiras seculares e os bosques nesta herdade de 85 hectares, 20 dos quais de vinha. Luís vai buscar dois ensaios de vinagres balsâmicos que está a produzir dentro desta mesma filosofia e são tão bons que quase se bebem. “Queremos divulgar a autenticidade e sabores alentejanos, por isso fazemos muita questão de preservar as culturas locais”, advoga.
O mesmo se aplica à arte da cocaria que está em vias de desaparecimento. Os trabalhadores das herdades, sobretudo do montado de sobro, corticeiras, ou debulha, da ceifa, azeitonas ou vindimas passavam todo o dia na faina árdua a longas distâncias de casa e tinham, assim, que levar o alimento para aí ser confecionado. Hoje e já não se usa, mas a Herdade do Cebolal faz questão de aplicar a cultura local que vê como património e não deixa morrer a tradição.

A verdadeira gastronomia alentejana 

O trabalho nas herdades, com grandes extensões de cultivo, obrigava a contratar grandes ranchos de trabalhadores agrícolas e esta era a fórmula ideal para preparar refeições em pleno campo, num acordo entre o produtor e o “manajeiro” (que dirigia a equipa). Cada um tinha o seu potinho (o mais moderno tacho ou marmita) que servia também não só de recetáculo como de forno. Traziam de casa grão, pão, um chouriço, um naco de toucinho, um bocadinho de carne da salgadeira, uma posta de bacalhau, ou batata, uma couve, um nabo, dependendo do que a terra dava e só era preciso água e fazer uma fogueira no chão.
Colocava-se de manhã nos potes de barro e à hora do almoço estava pronta a refeição para que os trabalhadores que andavam nas herdades em violentas labutas sob calor intenso, e já exangues a meio do dia, tivessem uma refeição reconfortante para ganhar forças e continuar a jornada. E eram vários os pratos, desde a sopa ao caldo, o grão com carne, o cozido, ou até o torricado, desta vez aproveitando apenas as brasas.
“Traziam o pote numerado e o lume fazia-se com a madeira do sobro, do montado, ramos de oliveira, esteva, com o que havia. Depois diminuía ou aumentava o lume conforme era necessário. Naquele tempo, chamava-se o jantar ao almoço e o conduto era o pão”, explica ainda Mariana enquanto controla as brasas, sempre curvada, num trabalho exaustivo mas que a faz sorrir.


Normalmente, o prato mais usual era a sopa de grão com carne que de carne tinha pouco ou o “cozido”. Mas as carnes e as “sopas” de pão eram servidas à parte. A presença do pão era preponderante e tanto se podem usar enchidos (farinheira, linguiça, morcela) como pé de proco, chispe, orelha, ossos de suã, beiço de porco ou língua a par de grão-de-bico, cebola, tomate, alho, louro, batata, abóbora, pão hortelã e sal. 
Existem diversas variações destes pratos da cozinha tradicional consoante a região do Alentejo, podendo ser usadas ainda carne de borrego ou vitela, mais tardiamente.
Na altura, a lei da sobrevivência só dava mesmo para aproveitar as partes menos nobres das carnes. Mas normalmente o grão está muito presente, já que se trata de uma leguminosa com grande ligação à tradição rural. O cozido podia ser uma espécie de sopa grossa que para além do apontamento de carne contava ainda com bolotas, castanhas, vegetais, leguminosas que variavam consoante a sazonalidade e aromáticas, como a hortelã, sempre presente. 
Chamam-lhes “sopa de carne” mas é sobretudo um caldo. Muito saboroso, juntava-se no final pão migado para se tornar mais substancial. No fundo, a tal origem da “açorda” que os berbéres e pastores já por ali faziam séculos trás. O pão torrava devagar a par das postas de bacalhau que iam assando.  “O pão é regado com muito azeite porque enche muito e dava para aguentarem muitas horas sem comer”. Neste caso, os produtos sazonais foram vagens, cenoura, batata, grão, carne de porco (entremeada, beiço e chispe), cebola e alho, enquanto a folha de louro, sal e colorau fazem a festa. 

Uma refeição memorável

O nome “cocaria” e “coqueira” – já que é quase sempre uma mulher do rancho dos trabalhadores que cozinha - tem como étimo “coque” (que originará a palavra ‘cook’, aliás, ou cozinheiro). Esta forma de cozinhar no campo ao ar livre, a mais primitiva cozinha rural e também a melhor, na nossa modesta opinião, obriga a preparar o lume, antes de mais.
O coque é carvão betuminoso, ou seja, um tipo de de combustível derivado da hulha que começou a ser utilizado na Inglaterra no século XVIII. Obtinha-se a partir do aquecimento da hulha num recipiente fechado, o chamado processo de "coqueificação", que consiste no aquecimento do carvão mineral a altas temperaturas, em câmaras hermeticamente fechadas. Aliás, o nome “coque” é ainda dado aos marnotos do Sado que cozinhavam também de forma similar, intercalando a apanha de sal.
Mas no Alentejo a fogueira é feita com lenha que vai ficando em brasas e depois dispõe-se estes cordões de potes de barro enfileirados junto ao fogo para ir cozinhando lentamente e para Mariana chama-se assim “porque a mulher fica à coca”. 
O pote, ou aqui, panela ou tarro de barro, onde é confecionado o cozinhado, é uma solução ideal. O seu hibridismo permite armazenar, transportar e cozer, e a sua versatilidade permite assim cozinhar na chama sem a influência do fumo libertado, já que tem uma tampa. Para além disso, é sujeita ao fogo e sua temperatura apenas de um dos lados, gerando assim um “vortex” no caldo. Sendo Santiago do Cacém uma zona de argila, o barro surge desde tempos imemoriais, provavelmente no neolítico, ou seja, há cinco mil anos a.C..


Sentamo-nos agora à mesa ao ar livre e o momento é de pura celebração. Saborear a arte da Mariana que cumpre rituais milenates é um momento que Paracelso apreciaria, temos a certeza. O melhor mesmo é fechar os olhos e sorver todos os sabores e cheiros que esta cozedura de quatro horas nos oferece.
Foi, sem sombra de dúvida, das melhores refeições que já provámos. Não só pela sapidez gulosa e aromas, mas sobretudo pelo que representa, a par do ambiente familiar que a herdade faz questão de transmitir de forma autêntica. E, dentro da vertente do enoturismo desenvolvida pela Herdade do Cebolal, qualquer um pode viver esta mesma experiência memorável, desde que a marque com antecedência.


Os vinhos da herdade que acompanharam a refeição harmonizaram na perfeição e são também emblemáticos desta mesma preservação da cultura local. Um palhete e um clarete que ficaram gravados no palato e na memória de forma indelével. O vinho palhete era produzido pelos lavradores e bebido nas garagens das adegas ou nos tascos típicos do Alentejo. Este Herdade do Cebolal Palhete 2020 é um blend de castas branca e tinta (15% Antão Vaz e 85% Aragonês) com baixo teor alcoólico numa fusão de frescura, taninos suaves e excelente acidez. Igualmente o clarete, de 2019, um monocasta Castelão de uma vinha velha plantada em solos argilosos e calcários com algum mármore é outro exemplo do caráter que a herdade quer seguir.
Apostando nos terroirs locais, o vinho é uma explosão de frescura e fruta delicada, sem estágio em madeira, mas com a vertente do fumado que os solos naturalmente criam. A produção de vinho agrega-se à apicultura, à floresta, ao gado ovino, de forma circular de facto. A polinização ou o adubo natural deixado pelas ovelhas integram esta filosofia ecológica e globalmente sustentável. Por isso, as garrafas são até encapsuladas com cera de abelha, um detalhe precioso que reitera este mesmo espírito.
O conselho que deixamos é de viver in loco esta experiência, sem sombra de dúvidas. Não só garantimos que, do princípio ao fim, se entranhará, como apetece repetir com urgência. Enquanto isso não acontece, sempre podemos tentar fazer a receita em casa. Mas não será, com toda a certeza, a mesma coisa.
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Herdade do Cebolal
Vale das Éguas, 3013 
7540-650 Santiago do Cacém
M. 914 642 466

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Caldo de grão

  • Coloca-se o grão-de-bico de molho em água, na véspera, e salgam-se as carnes. 
  • No dia seguinte, as carnes vão a cozer com água e hortelã. 
  • Os enchidos cozem-se à parte.
  • Pica-se a cebola e o alho, coloca-se a folha de louro, salsa, sal e junta-se a água de cozer as carnes.
  • Corta-se abóbora, batata, feijão-verde e cenoura aos bocadinhos. 
  • Deixa-se apurar, junta-se tudo, deixa-se cozer bem e serve-se o caldo sobre sopas de pão fininhas e folhas de hortelã.