BAHR: O bom filho à casa volta

Fotografia: Fabrice Demoulin
Miguel Pires

Miguel Pires

Um restaurante novo em Lisboa com a assinatura de um chefe como Nuno Mendes, reconhecido em Portugal e no estrangeiro pelo seu talento e carisma, associado a um lugar de prestígio como o Bairro Alto Hotel, deveria ser meio caminho andado para o sucesso imediato. O problema é quando há toda uma série de circunstâncias, que nada têm a ver com quem está à frente ou com a sua cozinha, que levam a que boa parte desse potencial de sucesso se desvaneça. Primeiro foi o (longo) atraso na finalização das obras do hotel, depois foram os últimos ajustes e as licenças finais do próprio restaurante que implicaram uma abertura sem o impacto que se esperava. Como se não bastasse, em março último entrámos nesta tragicomédia pandémica que só agora começa a ver o fim a aproximar-se. 


E será que estes contratempos deixaram marcas num restaurante que ainda está numa fase de afirmação? Bom, pelo menos à vista desarmada não se notam efeitos nefastos. Nuno Mendes e a direção do hotel conseguiram criar e manter uma curta, mas boa, equipa de sala e de cozinha, dirigida, neste último caso, pelo chefe executivo Bruno Rocha (que já tinha passado antes pelo hotel) e bem secundada pelo sub-chefe  Nuno Dinis e pela chefe de pastelaria Maria Ramos. 

Tive oportunidade de visitar o BAHR (o nome é o acrónimo de Bairro Alto Hotel Restaurante), pela primeira vez, logo quando abriu e gostei bastante: da comida com o ADN de Nuno Mendes – que dá sempre espaço aos seus cozinheiros de topo para participarem no processo criativo - e da matriz portuguesa inspirada em Lisboa e no mundo, da sua cozinha. Agradou-me ainda a decoração cosmopolita e o ambiente, para o qual conta muito o desenho do espaço, naquele penúltimo andar, com o seu bar após a entrada, a esplanada com vista estrondosa para o Tejo e o palco (leia-se cozinha) aberto para a sala. 

Ao voltar de novo, passado um ano, a diferença esteve sobretudo nas regras impostas pela crise sanitária - da lotação mais restrita, às máscaras, passando pelos desinfetantes. Enfim, o prato do dia destes tempos anormais. Chegámos pelas 19h15, o que deu ainda para usufruir da vista do fim de tarde. Havia clientes no bar a aproveitar os últimos raios de sol embalados pela música que dava um bom tom ao ambiente. A essa hora, para jantar, havia apenas uma mesa ocupada, além da nossa. Esta é uma das mudanças de hábito do “novo normal” que gosto particularmente, mas que ainda não pegou por completo, pois a sala só começou a ficar bem composta pelas 20h00 (nota: nestes meses as regras obrigavam os restaurantes a encerrar às 22h30).
 
Puro prazer da gula

Em termos de comida, com uma ou outra alteração mantiveram-se as propostas mais emblemáticas da abertura. Nos snacks estava lá a maravilhosa e bem idealizada tosta de percebes, bem como os rissóis de camarão. Não dá prescindir nem de um nem de outro. São puro prazer da gula. No primeiro caso, chegou-nos um prato com três torradas bem recheadas do molusco já despido, que é ligeiramente cozinhado no fogo onde adquire um interessante e discreto aroma fumado. Agora imaginem isto num bom pão torrado com um toque extra de manteiga, azeite e um ligeiro picante (togarashi) como bónus. No caso do rissol, creio que criado na Taberna do Mercado (o restaurante londrino de Nuno Mendes, entretanto encerrado, que era chefiado por António Galapito, agora no Prado), há a destacar a massa e a fritura exemplar. Porém, o que faz mesmo a diferença e lhe dá um carácter original é o recheio bem apurado de balchão – prato da cozinha goesa confecionado com balichão, uma espécie de conserva de origem macaense feita com camarão e malagueta - que dá outra vida ao crustáceo, sem o apagar do mapa. 

O lírio é um peixe dos Açores, leve e de sabor subtil, quando comido cru, daí ser muito apreciado na cozinha japonesa. No BAHR ele é curado, o que lhe dá outra personalidade, e leva uma cebolada e uma série de ervas e flores que transmitem um contraste de sabores agradável. É uma boa proposta, mas tal como me acontece com as ostras, raramente um lírio confecionado ou curado supera o produto trabalhado em cru.

Enquanto preparavam a abertura e definiam a carta do restaurante, Nuno Mendes e Bruno Rocha costumavam almoçar num pequeno restaurante vizinho, o Das Flores (não confundir com a Taberna da Rua das Flores). Entre os vários pratos tradicionais do dia-a-dia havia um de que muito gostavam e de onde tiraram a ideia que deu origem a outra belíssima proposta do menu (aparece nas entradas): lula grelhada, feijão verde, grelos e Algas. Neste prato, a lula é cortada em tiras como se fosse um tagliatelle e é misturada com o feijão verde cozido, grelos e algas sobre um puré de grelos. Mais uma vez, o uso da grelha foi prefeito. Fez sobressair o sabor, ao ponto de parecer que saltámos para dentro de um fogareiro. Depois havia aquela mistura de ingredientes bem portugueses, com um twist cosmopolita de sabor acrescentado. É um prato que a roça a perfeição. 

Nos principais apostámos no pregado com caldo verde. O peixe era de qualidade e foi cozinhado a preceito. Vinha com um puré de couve e umas tiras fritas do vegetal no topo. A ligação entre as duas coisas não é evidente, mas é o caldo de peixe, com que é confecionado o puré, que liga as partes e lhe dá a harmonia. Muito bom! 

Pedimos ainda umas cenouras de conserva como acompanhamento. Lembravam aquelas com cominhos que servem nos restaurantes algarvios. Estavam boas, mas pareceu-me mais um prato do que um acompanhamento. Ou, pelo menos, não é a escolta adequada para aquele pregado, que, aliás, não precisa de nenhuma outra guarnição (para ser correto, importa referir que a iniciativa de pedi-lo foi nossa e não da cozinha). 

Nas sobremesas pedimos a farófia. Era diferente, mas em nada deturpava a versão clássica (ou as versões clássicas, porque não há apenas uma). Suave e elegante no palato, graças à textura de veludo e à doçura controlada, tinha ainda um toque limonado, bem como o crocante de gema de ovo curada, que fez toda a diferença sem se desviar da matriz. 

A carta de vinho do BAHR está de acordo com os princípios de cozinha e da utilização de produtos menos estandardizados e, por isso, o foco vai para rótulos de pequenos produtores, uma boa parte no espectro bio, biodinâmicos e naturais - portugueses (de norte a sul e ilhas) bem como estrangeiros. Diga-se de passagem, que esta não é uma carta incrível tendo em conta o que já se encontra, hoje, dentro desta filosofia, em outros restaurantes de Lisboa. Todavia, pareceu adequada ao lugar e relativamente completa. Pena, os preços (demasiado) ‘upa upa’. Acompanhámos esta refeição com um Quinta da Palmirinha Loureiro 2018, de um dos produtores biodinâmicos certificados. Este branco da região dos Vinhos Verdes mostrou frescura e certa complexidade, diferente do padrão de aromas exuberantes de outros Loureiro da mesma faixa de preços, da região. A escolha foi feliz porque harmonizou bem com alguns dos sabores mais desafiantes do menu. Por último, importa referir que o serviço esteve à altura da experiência. Quem nos atendeu fê-lo com simpatia, zelo e profissionalismo adequado ao lugar. Nestes tempos de incertezas é bom saber que uma boa novidade pode ser já um porto seguro. A cidade, Nuno Mendes e a sua equipa merecem. E nós também.