Caldeirada, um poema do mar

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Fotografia: Ricardo Garrido
Fátima Iken

Fátima Iken

É um petisco nacional, uma ode ao mar e ao sabor. A caldeirada consubstancia o melhor de dois mundos: peixe e concentração sápida, pela forma simples como é cozinhada. Símbolo do “saber fazer” dos pescadores, da alma nacional e da culinária tradicional, os seus principais artefactos são um tacho, lenta cocção e, claro, a matéria-prima em que somos exímios: diversidade de pescado fresco atlântico. O segredo está no caldo que se molha no pão e no modus faciendi.

 

Não há como resistir. Quando a diversidade de texturas e sabores de peixe aterram (ou amaram, neste caso) numa cama de batata às rodelas, tomate, azeite e cebola, aquele caldo retém de forma ímpar o sabor. No fundo, é um cozido em versão marítima. Quase épico. 
O receituário nacional dos pescadores está pouco explorado, mas traduz narrativas de memória e tradição que nos explicam. Ser português é gostar de caldeirada. O processo estende-se, por vezes, também à carne, nomeadamente ao cabrito. Asseguramos que funciona, sendo muito usual em Angola e Moçambique, a mostrar como a nossa cozinha é global, pois as ex-colónias eram noutros tempos parte integrante do território português e assim se adaptaram modus faciendi à lei da autarcia. Por isso, a caldeirada viajou também para o Brasil, S. Tomé e Cabo Verde.
A chamada caldeirada é uma forma de cozinhar de matriz bem portuguesa. O sabor desse caldo alquímico facilmente demolhável no pão (tal como uma açorda) é memorável. Singular ainda é o facto de ser um prato feito sobretudo por homens, seguindo a tradição piscatória, ainda hoje.


A caldeirada bate no coração da gastronomia lusa, de inspiração litoral e popular. Abebera tapada para ganhar em sapidez. O pão, sempre presente como conduto que ajudava a dar substância ao procedimento, acabava por tornar mais reparadora a refeição, a par do milho ou da massa. E, nos barcos, usava-se água do mar que ainda a torna mais rica.
Mais uma vez, é nas tradições populares da terra, ou, neste caso, do mar, que o prato emblemático nasce. Mas D. João VI era grande fã e Júlio César Machado criou ele próprio uma caldeirada acrescentando...enguias e caril. A enguia faz, aliás, parte do repertório da famosa versão “à fragateiro”. Mas os romanos e os gregos já as apreciavam.
Era exatamente nos barcos dos pescadores que se confecionava e, por essa mesma razão, os procedimentos são simples. O que reina é o sabor do peixe fresco. Neste caso, as caldeiradas eram feitas em caldeiras, um tacho específico, abraçadas em sucessivas camadas de batata, e cebola. Tudo “em branco” e nada de estrugidos, portanto. Tudo borbulhava a baixa temperatura, tapado (abafado, como nas caldarias romanas) e, no final, um molho feito de azeite, louro, salsa, pimenta e alho era deitado por cima. Um pitéu.
Da “bouillabaisse” à caldereta das Astúrias, o cacciuco livornense italiano ou a calderada galega as caldeiradas são típicas das populações ribeirinhas, mas cada uma acrescenta-lhe o seu cunho específico. Da Póvoa a Viana ou Ovar, do Ribatejo ao Algarve, todas as populações litorais têm a sua tradição da caldeirada.


A mais famosa é a caldeirada à fragateiro que, como o nome indica, é uma especialidade dos fragateiros do Tejo, sendo a marca diferenciadora de sabor quase poética: o tempero chamado “sal de pingue”, a mostrar como quem anda no mar tem um pé em terra, no campo. Trata-se de sal que servia para a conserva do porco da matança, guardado em arcas de madeira nas casas de província.
Era feita em pleno Tejo, depois da faina, matando assim a fome aos pescadores com os restos de peixe que sobrava, normalmente de menor valor comercial e já um pouco danificados por vezes. Só pelo nome vemos que era um prato confecionado nos barcos, sejam eles fragatas ou bateiras. E tem muito que se lhe diga. As caldeiradas que nascem no estuário integram peixes de água de mar e de rio, bem como os fígados de alguns (raia, safio, cação), mostrando como tudo se aproveitava em nome da sustentabilidade e da fome. O caldo funcionava ainda como uma sopa à qual se poderia acrescentar, pão, milho ou massa de cotovelinho.

Do mar para o “Aquário”

Acredito que saiba melhor depois de uma faina, num barco em pleno oceano ou no Tejo. Mas assim sentados à beira-mar, em Espinho, olhando a imensidão do horizonte azul e deixando-nos conduzir pelas mãos e sapiência do “team” do restaurante “Aquário”, também vos garanto que pode ser uma experiência a repetir diversas vezes. 
A caldeirada deve comer-se logo depois de acabada de fazer e há outra exigência: o peixe tem de ser acabado de pescar. Quanto mais fresco o peixe, melhor a caldeirada. Mas é um prato que pulula um pouco por todo o país, de Norte a Sul, com idiossincrasias várias que na sua diversidade são agregadoras da coesão nacional. A principal vantagem é a simplicidade, o que deixa respirar o produto na sua melhor forma.
Na cozinha do “Aquário”, a azáfama já é muita e ainda nem a meio da manhã vamos. O cozinheiro já tem na bancada os peixes. Tamboril, safio, garoupa, raia, cação, enguia e lulas. O tomate, pimento, as batatas já estão cortadinhos às rodelas finas e a cebola em meias-luas pela perícia do senhor Matos. Só falta picar o alho.


“A confeção processa-se às camadas e em cru. Esse é um dos procedimentos mais importantes”, conta-nos António Brandão, dono do “Aquário”, restaurante que existe desde 1954. Outra dica é “a lenta cozedura, para ganhar em sabor e manter a textura do peixe”. O prato tem ligação à cultura vareira e Espinho é terra de pescadores. Os barcos de arte xávega, pesca artesanal com barcos saveiros, tipo meia-lua, já descansam em terra depois da faina junto ao bairro piscatório. Este tipo de pesca remonta ao século XVII e ainda sobrevive para além de Espinho, em Ovar, no Furadouro, Mira, Torreira, Vieira, Pedrógão, Costa da Caparica e Sesimbra, apesar de infelizmente se encontrar em processo de extinção. Hoje em dia são apenas quatro barcos que restam e aqui é sobretudo a sardinha, a cavala ou a tramelga que vem à rede.
A tradição da caldeirada vem exatamente do “quinhão” ou “teca” que cada pescador recebia por direito em cada pescaria, segundo nos conta o empregado de mesa do “Aquário”, Rogério, também ele imerso na cultura piscatória. O pai foi 55 anos pescador e a mãe era vareira.


Muitas vezes, depois de comida a caldeirada, o caldo soçobrante servia ainda para fazer uma bela açorda e esticar, assim, o pitéu para mais uma bela refeição. “Ou então usavam-se as sardinhas da salga, conservadas na barrica em sal, para comer com grelos”.
Por isso, a habitual caldeirada faz-se com peixes de valor menor, mais acessível, porque é um prato de subsistência. Mais tarde, as elites fazem a caldeirada “rica”, sem batata ou juntam peixes mais dispendiosos e mariscos.
Voltámos à cozinha e as enguias rematam as camadas de peixe e batata, cebola, pimento e tomate. Agora, deixa-se cozer lentamente depois de temperar de sal, pimenta, um pouco de colorau e um ramo de salsa. Já há um cheirinho no ar que promete. “Prefiro deitar pimenta em vez de piripiri porque o aroma e toque das especiarias é diferente. Assim é o sabor do peixe que é o mais importante”. Para servir no prato a caldeirada também é preciso arte. “Deve retirar-se de baixo para cima com todo o cuidado para não desfazer o pescado”.

Caldeiradas de Norte a Sul

Se há prato que conta a história do litoral é este. Começando pelo Norte, a caldeirada poveira tem a peculiaridade de ter como fundo, no tacho, as amêijoas, que servem para dar sabor diferente e evitar que alguma coisa se cole ao fundo da panela. Os peixes habituais aqui são o congro, a raia, o tamboril e as lulas. Da ruralidade marca presença a batata, a cebola e o tomate. Os ingredientes são colocados em camadas, regando depois com vinho branco e azeite e temperando de sal e pimenta. Já está. Existe ainda outra versão sem batata nem tomate, mas sim com colorau e vinagre de vinho tinto.


Em Aveiro, é com enguias que se faz, sendo mais uma vez o petisco famoso ao acrescentar o chamado “pó de enguias” (mistura de açafrão e gengibre) e a “moira” (unto com vinagre). Dantes não seria necessário porque as enguias eram suficientemente gordas para dar cor à caldeirada. Com a sucessiva falta de matéria gorda, tornaram-se mais brancas, sendo necessário acrescentar estes pozinhos de perlimpimpim. Da calda faz-se uma sopa adicionando pão torrado e umas folhas de hortelã. Bem próximo de Aveiro, na Murtosa, junta-se pão de milho e de trigo, migados. Também, a caldeirada, depois de pronta é regada com “moira” mas ao qual se juntou um picante, molho de pimenta ou de piripiri.
Viajando mais para sul, desta vez na Nazaré, faz parte da tradição colocar na caldeirada cação, cantaril, safio, raia, pequenas enguias, lulas e sardinhas. Outros ingredientes e temperos são a banha, colorau e malagueta. Aqui chama-se também “à fragateira”, no feminino. Na Figueira da Foz, colocam-se as petingas (sardinhas pequenas), tempera-se com sal e pimenta e deixa-se cozer. Terminada a cozedura, e depois de esfarelar broa de milho para terrina de levar à mesa, coloca-se a caldeirada. 
Outra comunidade piscatória que consegue uma caldeirada de referência é Setúbal. Safio, pata-roxa, tamboril (com o fígado), charroco, enguia e raia ou tramelga são os principais peixes usados. Tem a peculiaridade de, para além da batata, juntar massa cotovelo, tomate maduro, pimento verde, cebolas, alhos, azeite, vinho branco, folha de louro, coentros, salsa, hortelã, sal e pimenta. E em Peniche, o ruivo, cherne, robalo, corvina e navalheira compõem a iguaria, de estalo. A sapidez deste tipo de peixes, a par do marisco, dá lugar a um divinal petisco.


Já na região do Tejo, a célebre Caldeirada à Fragateiro ganha sabor acrescido pela presença do marisco como lagosta, camarão, mexilhão e berbigão. Colocam-se camadas de cebolas, tomate, e alho às rodelas e dispõem-se os peixes cortados às postas ou em pedaços, e ainda a salsa e o louro. Rega-se tudo generosamente com azeite e tempera-se com sal. Leva-se o tacho a lume brando e deita-se sobre fatias de pão seco em prato fundo. E em Almeirim, é com peixe do rio que se faz o petisco e também as fatias de pão. As molhatas. Ou então, noutra versão, de bacalhau com chouriço de sangue.


Nas caldeiradas do Ribatejo, o peixe é amanhado com a água do rio e as ovas e os fígados são elementos indispensáveis, sendo em geral colocados, quase no fim da cozedura, sobre o peixe. Os “ciganos do Tejo”, como os apelidava Alves Redol, vinham de Vieira de Leiria à procura de peixe mais farto e foram ficando, edificando palafitas em Escaroupim ou na Palhota. A caldeirada com peixe do rio é aqui outra especialidade a provar.
Finalmente, já no Algarve, é a tainha, pargo e rascasso que configuram o receituário, sendo os bivalves reis: amêijoa, conquilha ou berbigão marcam presença obrigatória. A nível insular, destaque para a caldeira de peixe espada, na Madeira, em que a batata doce é servida à parte com milho, ou o caldo de peixe nos Açores. Cada localidade vai expressando o seu modo de fazer e a sua identidade dependendo dos recursos de cada zona. É isso que desenha a nossa riqueza regional a nível gastronómico, aliás. Se numas zonas se coloca tudo em cru e fé em Deus, outras há que vão colocando os ingredientes respeitando os tempos de cocção de cada um. Certo é que a caldeirada como hoje a conhecemos, é um prato do século XIX, altura que por aqui chegaram as batatas, os pimentos e o tomate. Como vê, pela receita, não há nada mais simples de fazer. E o resultado é divinal.

Restaurante Aquário
Rua 4, nº 540 
4500-343 Espinho
T. 22 732 1000

 

 

RECEITA

Ingredientes

50 ml. de azeite
Postas de garoupa, tamboril, raia, congro, enguias
2 tomates
1 cebola grande
1 cabeça de alho
1 pimento vermelho
1 colher de chá de sal
1 colher de chá de pimenta

Preparação

1.Cortam-se cebolas em finas meias-luas, o tomate, as batatas e tiras de pimento.
2.Pica-se o alho miudinho e rega-se com azeite.
3.Coloca-se tudo em cru, em camadas, intercalando com os peixes, temperando de sal, e remata-se com as enguias e um ramo de salsa.
4.Deixa-se cozer lentamente e em lume brando.
5.Mal esteja cozida, após cerca de 20 minutos, é altura de servir.