Comer e beber em Milão

Fotografia: Luigi Fiano
Ivan Carvalho

Ivan Carvalho

Sempre que a cidade de Milão surge em qualquer conversa, a palavra "moda" entra em cena e logo emergem imagens de belas modelos de pernas compridas desfilando nas passarelas. O design também está ligado à capital da Lombardia, pois a cidade é a base das principais e mais importantes marcas de móveis e de artigos de iluminação. Mas, nos últimos anos, a segunda maior cidade da Itália fez grandes avanços numa outra área: a gastronomia. Vamos passear por Milão.

 

Desde o sucesso obtido ao sedear a feira mundial em 2015 - uma exuberante apresentação do universo gastronómico que ajudou a destacar o Bel Paese e as suas tradições culinárias -, Milão testemunhou uma explosão de aberturas de restaurantes por entre talentos emergentes e estrelas já renomadas.


Antes de a pandemia nos atingir globalmente, a cena gastronómica milanesa tinha visto um notável crescimento de 23% no setor de restaurantes desde a Expo 2015, com cerca de 5.000 estabelecimentos abertos e em funcionamento no início de 2020. Enquanto cafés locais e pequenos bares de bairro experimentavam uma série de encerramentos entre 2015 e 2019, novos locais começaram a criar raízes e aventuravam-se em conceitos como bares de tapas, japoneses no estilo izakaya ou pratos ‘vegans’ de alta gastronomia combinados com vinhos naturais.


Entre os que se anteciparam nessa tendência encontramos o restaurateur Giovanni Fiorin. Em 2013, o veneziano juntou-se com um grupo de parceiros de negócios que incluía o respeitado chefe Andrea Berton, e abriu uma sofisticada pizzaria-bar chamada Dry. Nos eventos de imprensa durante a abertura, realizada durante o Salone del Mobile - a prestigiada feira de móveis que Milão alberga todos os anos em abril - os convidados foram entrando à pressa e as venezianas fechadas para manter o local secreto, ao estilo de um clássico bar clandestino americano. O nome Dry lembra ironicamente a era da Lei Seca nos Estados Unidos, quando o álcool era proibido. Para brincar ainda mais com o tema, o premiado bartender do Dry, Guglielmo Miriello, utilizou taças vintage para servir receitas de cocktails clássicos como o Funky Rooster Cobbler, o Corpse Reviver #2 e o French 75, uma libação feita com champagne, gin e sumo de limão fresco, apresentada numa clássica taça “Maria Antonieta”.


Com as bebidas havia um menu descomplicado que oferecia uma pequena seleção de pizzas preparadas pelo talentoso pizzaiolo Simone Lombardi em forno artesanal a lenha, trazido de Nápoles. As pizzas eram feitas com massa fermentada por durante horas. Além de clássicos como a pizza margherita com mozzarella de búfala e versões mais exóticas feitas com porco siciliano desfiado ou ainda anchovas cantábricas, havia focaccia do tamanho de uma dentada apresentada com prosciutto crudo e lascas cremosas de mozzarella ou ainda a especialidade da casa, que era nada menos que um canapé de vitello tonnato - vitela feita ao molho de alcaparras e atum - em cima do pão focaccia.


As instalações também eram atrativas, com uma decoração esmerada, pés direitos altos, tectos pós-industriais com iluminação baixa e elegantes balcões de bar revestidos de latão. “Queríamos oferecer uma pizza napolitana de boa qualidade, algo que estava a ficar cada vez mais difícil de encontrar, num ambiente que parecia diferente de qualquer outro. Os italianos tendem a ser muito tradicionais quando jantam fora. Por isso, misturar conceitos como a pizzaria familiar e um bar sofisticado era algo novo. Tivemos, assim, que encontrar o equilíbrio certo”, diz Fiorin.


Ao Dry, aberto apenas à noite, um segundo ambiente maior seria acrescentado mais tarde para oferecer almoço e jantar. Tornou-se um sucesso instantâneo, já que um público bem vestido na faixa dos 30 anos e mais velhos juntavam-se para cocktails e conversas no bar, enquanto as famílias se reuniam para comer na área traseira dedicada a servir refeições durante o início da noite. 
Ocasionalmente, enquanto saboreava uma pizza marinara, um desses clientes podia encontrar o ícone da moda Giorgio Armani na mesa ao lado ou, quem sabe, o talentoso chefe Davide Oldani a jantar com esposa e filha. Naquela época, Oldani era objeto de um estudo de caso da Harvard Business School no que diz respeito ao seu restaurante D'O, nos arredores de Milão. Esse restaurante, usando apenas ingredientes de alta qualidade, oferece um menu normalmente muito menos caro do que os chiques e sofisticados estabelecimentos com estrelas Michelin.

 

Caldos renovados

Fora da família Dry, Milão experimentou grande crescimento de criadores de novas tendências. O primeiro a ser mencionado é Andrea Berton, que trabalhou durante anos sob a orientação do falecido Gualtiero Marchesi, um chefe visionário e fundador da cozinha italiana moderna. Ele optou por concentrar energias no local que leva o seu nome - Ristorante Berton - no efervescente distrito de Porta Nuova, em Milão. Já tendo demonstrado o seu grande talento na cozinha de terceiros – arrecadando reconhecimento e estrelas Michelin durante o processo – Berton, que é natural de Friuli Venezia Giulia e cresceu em San Daniele del Friuli (localidade famosa pela qualidade do prosciutto crudo seco de forma natural em espaços abertos) procurou criar um projeto mais pessoal.
Situada no térreo de um arranha-céu revestido de vidro brilhante, a sala de jantar foi decorada num clima decididamente contemporâneo. Em vez de toalhas de mesa super engomadas, optou por ter jogos de mesa individuais diretamente em cima de mesas de carvalho, de cor preta. O cenário luxuoso utiliza uma gama sóbria de tons em cor cinza para permitir que os comensais se concentrem nas criações de Berton, que incluem um menu degustação em torno de caldos. O chefe milanês considera o caldo como “a maior síntese do principal ingrediente de cada prato”.


Berton já brincava com caldos há anos. Visualizou e conseguiu pegar num item geralmente restrito à cozinha, ou tomado apenas quando alguém está doente, e lançá-lo apara a ribalta. “O valor agregado é transformá-lo num prato interessante, algo que gera curiosidade”, diz. Imagine, em seguida, pratos de pequenos raviólis recheados com lagosta ou camarão, azeite, alho e pimenta chili ao lado de uma caneca de vidro claro de caldo de peixe rico e puro. As criações sazonais incluem caldo de presunto curado com bacalhau e feijão do Lago Trasimeno e também caldo de vitela com Grappa Nonino.


Para os fãs de trufas, os pequenos bocados pretos de delícias esplendorosas são servidos num menu que inclui risoto com queijo mascarpone, limão e trufa preta, juntamente com um prato de polenta macia (um marco forte da culinária do norte da Itália), manteiga de milho, trufa preta e fondue de queijo Grana Padano, acompanhado de espumante Ferrari Reserve, vinho da denominação Trento DOC em Trentino.
Graças a um aumento nos últimos anos de comensais curiosos incentivados pela série de TV MasterChef Italia, que Berton vê como um benefício para chefes inovadores como ele próprio, juntamente com os tradicionais connaisseurs de alta gastronomia, o chefe nativo de Friuli tem obtido muito sucesso, chegando a expandir a sua marca ao abrir um restaurante à beira-mar, Berton al Lago, no Lago Como, parte integrante do ultra-elegante hotel Il Sereno.

‘Skyline’ milanês

Depois da experiência no Dry, Lombardi partiu para uma nova aventura, juntando-se ao padeiro siciliano Giovanni Mineo para dirigir o Crosta. Um local para jantar, com café e padaria a funcionar o dia todo e a servir pizzas artesanais, o Crosta permite que o pão assuma o protagonismo. Os pães de fermentação natural de Mineo têm uma crosta fina crocante, enquanto Lombardi prepara criações saborosas como a deliciosa pizza de ventricina com linguiça, cebolinha e coentro ou ainda uma variedade mais nova com batatas a murro, pesto e queijo crescenza. “A nossa ideia é não sobrecarregar o cliente com páginas e páginas de pizzas com coberturas diferentes. Em vez disso, o foco está nos ingredientes sazonais de primeira qualidade preparados até ficarem perfeitos”, acrescenta Lombardi.


Do outro lado da cidade, Miriello, outro veterano do Dry, desfruta de uma vista dominante do bar no telhado do Ceresio 7. Instalado num imponente palazzo que já sediou uma grande empresa de serviços públicos, o estabelecimento “ultra-cool”, propriedade da marca de moda Dsquared2, possui duas piscinas ao ar livre com vista de 360 graus do ‘skyline’ da cidade e é um ótimo lugar para admirar a vista. No interior, Miriello, o gerente do bar, deslumbra os clientes com libações como o efémero Smoking, um cocktail que se inspira no Old Fashion, substituindo o açúcar contido na receita original por um xarope do cocktail Le Vieux Carrè, que inclui cognac, licor de vermute doce, Bénédictine e Peychaud's Bitters. O cocktail é servido numa pequena garrafa defumada de madeira de cerejeira e, em seguida, é derramado num copo onde o fumo liberta o seu perfume antes de desaparecer.


Se alguém deseja escapar da multidão armada em ‘fashion’, nas proximidades da base do Bosco Verticale, um impressionante par de torres premiadas de apartamentos, cobertas de vegetação nas varandas, serve de sede para o Ratanà. Propriedade de Cesare Battisti, um pragmático que veste de jeans azul e jaleca branca de chefe. A missão do restaurante é defender a tradição e territorialidade da gastronomia lombarda e adicionar alguns toques de criatividade. Embaixador da gastronomia durante a feira mundial, Battisti tem sido otimista sobre as consequências da Expo 2015. “O legado de sediar a Expo tem sido colocar a Itália no centro do debate sobre gastronomia e o que significa cozinhar com ingredientes de qualidade cultivados de forma sustentável”.
Frequentemente citado por servir o melhor risoto da cidade – o ator de Hollywood Stanley Tucci recentemente apareceu lá para provar alguns para a sua série da CNN sobre comida italiana – Ratanà impressiona com uma série de grandes ‘delicacies’, como carpaccio de carne regado em vinagre balsâmico e ossobuco, além de peixes de água doce, tais como o lucioperca, uma perca do Lago di Garda, servida com cima di rapa refogado.

Arroz, risoto e pasta

Battisti está continuamente a pesquisar maneiras de reinterpretar pratos típicos da Lombardia, mas sem exagero, como mostra no novo livro Cucina milanese contemporanea. Aqui, narra um pouco da história do risoto, o famoso prato amarelo dourado que está associado a Milão, feito com o caro tempero açafrão, cujo preço é superior ao do ouro em peso. “A ideia de arroz de açafrão data de 1574”, explica Battisti. “Valério de Flandres, um vidraceiro flamengo, usou açafrão ao pintar os vitrais do Duomo de Milão. Diz-se que, para o casamento de sua filha, o assistente usou o tempero para adicionar cor a um prato de arroz”. 
O arroz tem sido um ingrediente fundamental na gastronomia lombarda. “A Itália está dividida em duas partes: no sul, onde é mais quente, há trigo; o norte tende a ser mais chuvoso e tem pântanos, onde o arroz floresce”, diz Battisti. Além do arroz, massas frescas feitas em casa também aparecem no Ratanà, juntamente com massas secas de qualidade como o maniche mezze da produtora Pasta Mancini, da região de Marche, que é preparado com tomate de Salento. No entanto, para uma exploração mais profunda do espaguete, é necessária uma visita a Pastamadre, no distrito de Porta Romana. Aí, o siciliano nativo Francesco Costanzo traz os sabores da sua terra natal ao norte de Milão. As papilas gustativas são facilmente tentadas pela muito imitada massa de chitarre com ragù de polvo ou a massa clássica de verão - alla norma.


De volta ao Ratanà, a lista de vinhos de Battisti também surpreende, pois evita produtores conhecidos como Gaia e Antinori para, em vez disso, desafiar com varietais menos conhecidos, como Nosiola, ou pequenos produtores de Nebbiolo da região Valtellina, da Lombardia. 
A pesquisa sobre a rica seleção de castas nativas de Itália começou há muito tempo, quando Danilo Ingannamorte ajudou Battisti no salão do restaurante. Hoje, o sommelier juntou-se à sua parceira na vida, a chefe americana Alice Delcourt, no Erba Brusca.  Situado num dos antigos canais de Milão nos arredores da cidade, tornou-se um dos pontos de encontro favoritos de pessoas fiéis ao conceito de Slow Food em Itália. Inspirado pelos ensinamentos de Jean-Martin Fortier e pelo conceito de foco na agricultura orgânica de pequena escala, Ingannamorte agora adicionou o cultivo próprio ao seu repertório. “Tudo se resume ao gosto. Podemos deixar o produto na terra por mais tempo e colhê-lo quando estiver mais fresco. E maximizamos o espaço também. Numa linha, terei acelga suíça de rápido crescimento voltada para baixo do chão e acima, tomates cereja de crescimento mais lento”.


Delcourt, que anteriormente tinha um pequeno espaço para cultivar ervas aromáticas e que adora experimentar especiarias como cominho, coentro e pimenta szechuan, agora está em êxtase por ter um fornecedor de frutas e legumes frescos à porta. O menu muda semanalmente para oferecer delícias como lasanha de espinafre ou babaganoush feito a partir de ingredientes cultivados a poucos metros de distância. Acrescenta Delcourt: “Aqui, quando dizemos 'da terra à mesa', queremos dizer exatamente isso”. Os pratos favoritos incluem um esparguete popular e inventivo com moluscos, trufas pretas, alazão selvagem e pizzoccheri, uma comida básica da região montanhosa de Valtellina feita com tiras planas de massa de trigo, batatas, acelga suíça e queijo Bitto e Casera.
Entre outros interessados em focar nos vegetais e, mais especificamente, pratos vegetarianos, temos o trio feminino de chefes por trás do Altatto. Inaugurado no verão de 2019, o bistrot contemporâneo foi criado por Giulia Scialanga, Cinzia De Lauri e Sara Nicolosi, que se conheceram enquanto trabalhavam com o chefe Pietro Leemann no Joia, milanês que se tornou o primeiro restaurante europeu a ganhar uma estrela Michelin para um menu integralmente vegetariano. Na Altatto, a equipa oferece sugestões hiper criativas como ceviche de tomate fresco com mousse de avocado e tempura de flores de courgette com carpaccio de abobrinha emparelhado com um cocktail kir à base de citrinos ou um vinho branco Zibibbo ‘estilo laranja’ da ilha de Pantelleria.


Ingannamorte continua apaixonado por vinho. É fã do método tradicional de fazer espumante com castas italianas. Do Piemonte, desfruta do borbulhante produzido por Erpacrife e o espumante rosé com Nebbiolo, além de outro preparado com um lote de uvas Timorasso (branca), Cortese Erbaluce e Moscato. Da Sicília, aprecia o espumante Terzavia Brut do De Bartoli que usa a uva local Grillo. “Prefiro uma lista de vinhos mais idiossincrática para que os comensais possam explorar a riqueza dos terroirs e ir além dos nomes usuais”. Ultimamente, tem promovido tintos do Piemonte fora da conhecida região de Langhe. Em denominações como Gattinara, na província de Vercelli ou Ghemme em Novara, a casta Nebbiolo cresce em climas mais frios, mais próximos dos Alpes e de maior elevação em solos ricos em ferro, vulcânicos e misturados com rocha sedimentar e granito. Alguns dos favoritos são Antoniolo em Gattinara e a adega Sperino, na denominação Lessona, ao pé do Monte Rosa.


Outro a misturar tradição com inovação é Eugenio Boer, o chefe meio holandês , meio liguriano, que já conta passagens com chefes italianos de ponta, como o grande detentor de 3 estrelas Michelin, Norbert Niederkofler, em Alta Badia. No Bu:r, elegante restaurante de Boer que leva o seu nome (ou melhor, a forma como é pronunciado), o chefe socorre-se fornecedores de pequena escala para obter o pombo ou a abóbora apresentada no amuse bouche de outono. Criações inteligentes incluem o Ciapinabò & Castagne, feito com apenas dois ingredientes, castanhas e alcachofra de Jerusalém, que nos é apresentado na forma de um consommé duplo de castanhas assadas.

A magia do design

Dada a riqueza de tesouros do design de interiores em Milão, não é de surpreender que alguns restaurantes tenham forjado laços com o mundo dos móveis. Em 2018, os proprietários do Il Luogo di Aimo e Nadia - um templo da alta gastronomia - uniram forças com a notável galerista Rossana Orlandi para um espaço de bistrot ao lado da sua loja de design de interiores. A colaboração foi acompanhada pela marca de moda Etro e a sua linha de papéis de parede para interiores, tecidos e estofados, que gera uma explosão de cores que combina lindamente com pratos atraentes como esparguete com beterraba vermelha, soja, limão e ovas de salmão, além de tentadoras sobremesas.


Alguém que certamente encontrou a doce combinação entre interiores convidativos, bom serviço e comida deliciosa é o ‘restaurateur’ Enrico Buonocore. Já em 2007, o milanês nativo com raízes na Costa Amalfitana introduzia aos locais a sua marca Langosteria, onde os frutos do mar são a estrela. Com o chefe Domenico Soranno, desenvolveram uma seleção de pratos com assinatura própria, tais como o king crab estilo catalana, a pappa al pomodoro com moluscos e uma tempura de camarões vermelhos, lagostins e lula com maionese de wasabi. Até ao momento, possui quatro estabelecimentos do Langosteria na cidade, além de um clube de praia perto de Portofino e outro restaurante a ser inaugurado ainda este ano no novo Hotel Cheval Blanc, administrado pela LVMH, em Paris. Cada local tem a sua própria identidade, com uma gama de interiores de luxo. Na Langosteria Bistrot, predominam temas náuticos e os comensais sentam-se em cadeiras inspiradas na icónica Superleggera, um modelo desenhado por Gio Ponti.


No final das contas, para Buonocore, a receita para ser um bom anfitrião é manter a simplicidade: “Não estou interessado no sistema estrelado de chefes bem conhecidos. Os ‘restaurateurs’ parecem ter-se esquecido da sua missão, em oferecer aos clientes uma experiência suave, onde o profissionalismo da equipa de serviço é tão importante como os ingredientes frescos e a preparação de alimentos. As pessoas adoram uma mistura de intimidade e hospitalidade quando jantam fora”, conclui.