“É canja!”

Fotografia: Ricardo Garrido
Fátima Iken

Fátima Iken

A canja é uma espécie de colo. Reconfortante e alquimia pura, faz parte da nossa alma nacional, apesar de ter nascido longe, em terras orientais. Adotamo-la e fizemo-la nossa, como emblema identitário. É um caldo que apazigua sempre, na saúde ou na doença. E é democrática. Real ou proletária, de pobres ou ricos, certo é que nos agarramos quase todos a uma canjinha como quem recebe um abraço.

 

É todo um ritual. Abre-se a terrina e um vapor olorante regozija-nos logo por antecipação. Depois, é sorver delicadamente cada colher como se fosse a última. Ramalho Ortigão chamava-lhe monumento nacional e equipava-a aos Jerónimos ou à custódia de Gil Vicente.  
Um dos grandes mistérios da cozinha é decifrá-la como uma forma de linguagem. Uma maneira de expressar emoções e de comunicar. Quando pensamos em canja, só a palavra já é um poema que rescende. Tal como Eça o intuiu.

Uma canja bem-feita, com todos os matadores (algo cada vez mais raro, diga-se de passagem), cura-nos de todos os males. Se estamos abatidos, arrebita-nos e se estamos com frio, aquece-nos. Os nossos antepassados cedo o entenderam e, de novo, a sustentabilidade marca pontos na culinária, porque se aproveita tudo.

A água de cozer a galinha tem uma imensidão de nutrientes que remoçam uma alminha, em segundos. E é fácil de fazer. Daí a expressão “É canja!”. Mesmo assim, são poucos os que conseguem executá-la no ponto.  
Para seguir, passo a passo, a confeção de uma bela canja, desafiamos uma cozinheira de mão-cheia e fidedigna guardadora da cozinha tradicional. Quem gosta da chamada “cozinha à antiga portuguesa”, tem de provar as iguarias de Amélia que trazem à memória os sabores de outros tempos.

Fazer uma boa canja não exige grandes segredos. Basta apostar numa boa matéria-prima, ou seja, numa galinha do campo. Assim nos recomenda igualmente a cozinheira Amélia, dona do restaurante homónimo, com clientes aficionados que já vão na quarta geração. “Para conseguir uma boa canja, a galinha deve ser boa, não de aviário. Uma galinha gorda. Depois é só deixar cozer lentamente. No final, temos sobretudo um remédio, por isso só uso mesmo o frango e sal”, confessa.
Amélia sabe do que fala, pois é das poucas representantes da culinária tradicional portuguesa. Começou no Aleixo, em Campanhã, mas foi o pai que lhe incutiu o gosto pela cozinha, em Castelo de Paiva. Apesar de, no início, não gostar muito de cozinha, o bichinho já andava nos genes da sua bisavó, bem como o paladar e o apreço pela sapidez. No seu templo, ao Campo Alegre, no Porto, pode degustar pratos que fazem crescer água na boca, como a petinga com arroz de grelos, pastéis de massa tenra, mão de vitela com grão, costela mendinha, rabo de boi ou pescada no tacho com amêijoas, só para dar alguns exemplos. “A canja tem de ficar amarelinha, gorda, prova de que é de uma galinha a sério. E não deve levar cebola, nem cenoura ou alho. Tendo virtudes medicinais, restabelece. Tal como a sopa de mãozinhas de carneiro”, acrescenta.


As propriedades terapêuticas da canja são antigas e em certos lugares, em Portugal, e também no Brasil - para onde foi levada pelos colonos portugueses - é costume ser fórmula apropriada às mulheres após o parto, durante algumas semanas, para recuperar. A receita brasileira é mais suculenta, sendo a galinha inicialmente refogada na cebola, alho, aipo e tomate, antes de ser cozida com cenoura, salsa, cebolinho e sal.

Este filão terapêutico remonta ainda ao hábito de a canja ser um bom curativo para restabelecimento do corpo e da alma. Por isso no Brasil lhe chamam também “sopa de parida”, tal como às rabanadas, pois dava-se às parturientes durante o tempo em que permaneciam na cama após o parto.

Mas é curioso pensar que, enquanto sorvemos uma reconfortante canja e aspiramos o seu aroma perfumado, achando que nasceu em território nacional, ela teve Malaca e Goa como ascendência. Claro que lhe acrescentamos pozinhos de perlimpimpim muito nossos, da ave à hortelã ou aos ovinhos da dita e seus miúdos.

De facto, a canji papa (do malaialo kañji) originou não só a palavra portuguesa como a inspiração para a canja. Originalmente, era um caldo só com arroz, mas os portugueses trataram de lhe acrescentar a ave preferida, a galinha claro, para a tornar mais substancial com o apelo da carne.

A galinha surge já no primeiro livro de receitas português, da autoria da Infanta Dona Maria (na Biblioteca de Nápoles, tendo em conta que casou com um italiano e lá escreveu o luso livrinho pioneiro enquanto outro não se descobrir) como importante na dieta portuguesa e dá corpo a várias receitas como o “manjar branco” (uma sobremesa feita com peito de galinha), galinha albardada ou a galinha mourisca. Sempre tivemos uma apetência por esta ave no receituário, já que é fácil de criar e alimentar.
Portanto, à original receita oriental, os portugueses acrescentaram a ave, a gordura da sua cozedura ou “sustança” que, junto com o arroz, cria um caldo untuoso e aveludado que evoca não só a infância como a nossa história e cultura nacional. 

 

Kanji em Goa e congee na China

No Oriente, a kanji originou não só a canja de Goa como ainda, na China, o congee que também hoje pode incorporar variados ingredientes e até corporizar a primeira refeição do dia, para dar força. O congee de galinha é semelhante à canja portuguesa, sendo o arroz cozido em água com sal durante horas até que se dissolva totalmente na água de cozer, resultando numa papa. Daí o nome original de “kañji papa”.  

Uma das provas de que a canja nasceu na Índia, na Costa de Malabar, na região onde se encontra Goa, colónia portuguesa entre 1510 e 1961, é a referência do médico e naturalista Garcia de Orta no livro “Colóquio dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia” editada em Goa no ano de 1563. Na Costa de Malabar, porto de Calicute, onde Vasco da Gama aportou em 1492 e onde era apelidada kenji ou kenge tinha objetivos medicinais.
Garcia de Orta integrou as expedições portuguesas fugindo da sua terra, o Alentejo, para a Índia, devido à ação da Inquisição. Nessa obra ele elogiava a sua empregada, Antónia, dizendo que lhe fazia “a galinha com caril, o caldo de arroz ou canje (sic), e as conservas em vinagre (…)”. 

Esta acabou por ser a primeira referência escrita ao prato, sendo que ainda era feito, na altura, sem galinha, descrevendo a canja como uma “água de expressão de arroz com pimenta e cominho", segundo escreveu Garcia da Orta. Caldo de arroz – como, um século mais tarde, a chamou o jesuíta Manoel Godinho.

Ramalho Ortigão chamou-lhe arte e escreveu, a propósito da canja, que era uma “criação da arte compósita, como podemos chamar ao estilo manuelino, e, como ele, derivada da inspiração asiática trazida da Índia pelos nossos descobridores e combinada no velho mundo pelos nossos artífices com a tradição gótica do presunto do fumeiro e do paio de lombo com colorau”. 
Isto porque no século XIX, nos meios rurais, lhe acrescentavam paio e presunto para lhe conferir ainda mais consistência nutritiva. A sua preferida era do Cercal. ”O restaurante do Cercal é talvez o único em todo o país que ainda conserva inviolável o segredo glorioso da nossa antiga canja de galinha”, escreveu. E o caldo fez por cá tanto sucesso que existem muitas variantes regionais e a própria consistência do arroz vai variando, havendo até quem substitua o arroz por massinha, letrinhas ou mesmo pevide. No Algarve, por exemplo, substituem a galinha por moluscos e na Estremadura por bacalhau e são ambas de comer e chorar por mais. Apesar de conhecido já o caldo de arroz no século XVIII, a canja ainda não aparece antes do século XIX. Mas surgem composições muito similares.

Com Domingos Rodrigues, a galinha surge em potagem (ensopada). O cozinheiro de Dona Maria I, o francês Lucas Rigaud, autor do livro “O cozinheiro moderno ou a nova arte de cozinhar”, publicado em 1755, fazia sopa branca de arroz e na sua obra surge a receita de “Galinhas com arroz à portuguesa”, sendo servida com o caldo...já um “cheirinho” da nossa canja.
Os monarcas portugueses acabaram por ser, também, fãs da canja no século XIX e é a família real que a leva para o Brasil. D. Pedro II era grande apreciador, mesmo que por vezes surgisse nos menus como “potage de volaille” nos tempos em que os francesismos estragavam tudo. 

Torna-se assim num prato que agrada a todos os palatos, um prato democrático que seduz pobres e ricos, sendo que os primeiros lhe chamavam. Nos meios populares, chamavam-lhe até “arremelgada”. Aproveite o Outono para saborear uma canja, depreferência com um bocadinho de hortelã. Até porque, “cautela e caldos de galinha, nunca fizeram mal a ninguém”.

 

Cozinha da Amélia
Rua do Campo Alegre, 747
4150-171 Porto
T. 22 600 2077

Receita de Canja de Galinha
1 galinha com cerca de 1,200 kg., seus miúdos e ovinhos
2 lt. de água
100 gr. de arroz ou massa estrelinha 
Sal q,b.

Preparação

1.Coza a galinha numa panela grande.
2.Tempere com sal e coza lentamente, em lume brando, retirando a espuma com uma escumadeira até ter reduzido uma quarta parte do líquido durante cerca de 1h.
3.Quando o caldo estiver bem apurado e a galinha cozida, junte a moela, o fígado e o coração da ave.
4.Decorridos 10 minutos, introduza o arroz/massa e tape a panela deixando o arroz cozer cerca de 20 minutos.
5.Retire a galinha do caldo, desosse e desfie, tirando todas as peles.
6.Sirva com os miúdos cortados em bocadinhos, bem como os ovos da galinha.