Flor de Lis: para lá da comida de hotel 

Fotografia: Ricardo Garrido
Miguel Pires

Miguel Pires

O Flor de Lis é o que podemos chamar de bom segundo restaurante de hotel. Se a maior parte das unidades hoteleiras do país lhe seguisse o exemplo, talvez a “comida de hotel” passasse de vez a ser uma expressão do passado.

 

São diversas, as orientações que os hotéis adoptam em relação aos espaços de restauração das suas unidades. A mais comum é a do restaurante como complemento de hospedagem, sem grande brilho ou esforço para atrair o cliente externo – a tal, que deu azo à chamada “comida de hotel”. No outro sentido, temos os que terceirizam os restaurantes ou fazem parcerias, convidando chefes famosos ou um grupo de restauração para gerir ou explorar os espaços, ou parte deles. Há ainda um terceiro modelo, o do hotel que toma conta do assunto, mas que planeia logo de raiz os seus restaurantes para funcionarem não apenas com o intuito de atrair o cliente interno do hotel, mas também o externo.


O Vila Foz, o boutique hotel de 5 estrelas na zona da Foz, no Porto, adopta este último modelo com os seus dois espaços. Porém, enquanto o Vila Foz Restaurante, aberto apenas ao jantar e somente com menu de degustação, joga na liga dos campeões do Guia Michelin (ganhou uma estrela na última edição), o Flor de Lis aposta num patamar menos exigente, mas não menos competitivo do mundo da restauração. 
Num destes dias de semana de Março, almocei neste último. A sala estava bem composta, com aquele barulhinho bom que dá ambiente a um restaurante, o que nem sempre acontece em lugares que são igualmente pensados para servir o pequeno-almoço dos hóspedes (como é o caso). A maior parte dos clientes era de fora e pareciam vir aliciados pelo menu executivo, com entrada, prato, sobremesa + bebida/copo de vinho – por 22 euros (ou 19 euros, se se optar apenas por dois pratos), um preço imbatível, tendo em conta que se trata de um hotel de 5 estrelas. Tal como no espaço estrelado, a carta do Flor de Lis é da responsabilidade de Arnaldo Azevedo, um cozinheiro com um percurso sólido tendo passado por alguns hotéis e restaurantes de prestígio e que antes de chegar ao Vila Foz liderava a cozinha do Hotel Teatro, dos mesmos proprietários.


Neste lugar, Arnaldo Azevedo exibe uma carta híbrida: de um lado, apresenta uma série de propostas mais dirigidas aos clientes do hotel (é o único restaurante da unidade aberto todos os dias), onde cabe um ceviche de salmão, um tártaro de atum ou de vitela, massas, um peito de frango (com mel e especiarias), um rosbife ou um chuletón; do outro, propõe um conjunto de pratos de cozinha portuguesa, como o bacalhau lascado com batata a murro, ou um arroz de lavagante. 
Começámos com uma sopa de peixe, camarão e croutons. Caldo rico, ligeiramente espesso (e batido, era visível uma certa espuma), sabor elegante, sem ser demasiado puxado, num bom equilíbrio entre o sabor do pescado e o do marisco. A sopa vinha bem enriquecida, com pedaços de peixe e quatro ou cinco peças de de camarão comum. Arnaldo Azevedo poderia fazer uma sopa mais rica e de maior variedade de peixe, mas para o preço (7.50€) e restaurante em questão, está muito bem. Ainda assim, merecia uns crutons mais gulosos, fritos em azeite ou em manteiga, em vez de uns comuns secos no forno.


De seguida, pedi um rissol de vitela, que me remeteu para a infância, quando os descobri e percebi que eram muito melhores do que os de peixe, os mais comuns, lá por casa, na altura. E que senhor rissol, este. Bem frito, sem resquícios do óleo, recheio aprazível e generoso com a carne desfiada em vez de trucidada, sem vestígios de bechamel ou outros enchentes. Devia ter umas oitenta gramas, aí o dobro de um de tasca. Servida à parte, uma maionese de rábano espicaçava o sabor, dando um agradável contraste. 
Como prato principal, escolhi um arroz de robalo e camarão, novamente numa dose simpática que daria para dois (definitivamente a Norte as porções são mais avantajadas do que a Sul – e não é só em tascos e restaurantes tradicionais). Naquele momento, pareceu-me uma opção redundante em relação à sopa que tinha comido de entrada. Porém, quando preparava para me flagelar pela má escolha, chegou o pequeno tacho de ferro. Abri-o – ainda fumegava – deixei soltar os aromas, provei e fiquei rendido, com aquele arroz malandrinho, de bago aberto no ponto e bem apurado, com uma base de refogado bem portuguesa (que deve levar cebola, alho, louro e vinho branco). Era mais intenso de sabor (e diferente) do da sopa, mas igualmente sem se exceder ou esconder os sabores do robalo e do camarão que trazia em quantidade apreciável.


De pospasto, embora tentado pela rabanada com creme de baunilha, acabei por me deixar seduzir pela anunciada sobremesa de “texturas de chocolate e citrinos”. Imaginei vários tipos de chocolate, em mousse ou parfait, umas telhas, etc. Bom, completamente ao lado, no que diz respeito à forma. 
Vejo chegar um limão e achei que se tinham enganado. Mas não. Embora bastante realista, o fruto foi elaborado com uma capa crocante de manteiga de cacau e com uma cobertura ligeiramente gelatinosa como se tivesse sido envolvida numa calda do citrino. Uma vez cravada a colher revelava as várias camadas: mousse de chocolate branco, outra de chocolate de leite, uma fina faixa de um bolo húmido e uma fiada de algo que fazia lembrar um lemon curd. Não sei se o nome é o que traduz melhor a realidade, mas é muito bom. Elegantemente doce, subtilmente ácido, inteligentemente leve. Um verdadeiro kinder surpresa de limão para adultos.


Em termos de vinhos, a carta do Flor de Lis tem um pouco mais de meia centena de referências de várias regiões do país. Não impressiona – nem era expectável que o fizesse – mas cumpre os propósitos do restaurante. A refeição foi acompanhada com dois brancos do Douro, a copo, ambos elaborados pelo mesmo enólogo, Luís Pedro Pedro Cândido da Silva: o Carolina 2018, da propriedade da família, mais fresco, directo e agradável; e o outro, feito na Niepoort para o próprio hotel, mais complexo, sério e envolvente. 
Em termos de serviço, numa época tão difícil em arranjar profissionais de sala, pode dizer-se que a equipa executou as tarefas com eficácia e simpatia.


O Flor de Lis é o que podemos chamar de bom segundo restaurante de hotel. Tem uma carta com preços sensatos que agrada a gregos e a troianos, com propostas de cozinha internacional e outras baseadas no receituário luso, alguma cozinha de conforto, um ou outro prato mais banal, mas também outros com bons rasgos de autor. Na verdade, se a maior parte das unidades hoteleiras do país lhe seguisse o exemplo, talvez a “comida de hotel” passasse de vez a ser uma expressão do passado. 


Hotel Vila Foz
Av. de Montevideu, 236 - Porto
T. 22 244 9702
Horário: Segunda a Domingo, 12:30–22.30h

 

Preço médio com vinho, 40,00€ por pessoa. Menu executivo (ao almoço): 19,00€ - 22,00€. Pagou-se pela refeição descrita (+ água e café), 65,00€. 

 
Cozinha 16,5
Sala 16
Vinhos 16