Harmonização: Lampreia e vinho

Fotografia: Daniel Luciano
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Animal mais idiossincrático à mesa não pode existir. Mas uma coisa é certa, para muitos daqueles destemidos que veneram a lampreia, nomeadamente na sua forma mais clássica de preparo, à bordalesa, não há hesitações: um Vinhão do Vinho Verde é insubstituível. Será?  

 

 

Tenho que confessar que, na minha primeira incursão a Portugal como sommelier em viagem de estudo, nos idos de 2001, provei o que era para mim até então o pior vinho tinto da vida. Um líquido purpúreo e opaco, com impressões de amora, mas também de sangue, bastante vegetal, com uma boca dotada dos taninos mais rústicos e adstringentes possíveis, postos em relevo por uma acidez verde pontiaguda, sem nenhuma clemência de qualquer elemento do lado da maciez, naquele vinho vil. Não conseguia disfarçar uma careta a cada sorvo. E, ao invés do meu palato aprender a tamponar aquele assalto impiedoso de agressividade, o quadro só ficava mais sombrio gole após gole.


Era altura das lampreias, e quando chegaram à mesa aquelas postas submersas num líquido denso, viscoso e fumegante, quase como uma fondue de chocolate negro, a metamorfose do vinho deixou-me estupefato. São aqueles momentos mágicos em que nós, sommeliers, em que um dos pilares do ofício é a harmonização vinho-alimento, percebemos e questionamos: como é que um vinho pode alterar-se tanto no confronto com um prato, e naquele caso, em poucos segundos transitar do intragável ao agradável? 
Nestes três anos que vivo em Portugal, provo Vinhões com muito mais regularidade e já encontro alguns muito bons por si só, sem falar nos Sousões do Douro, estes ainda menos indissociáveis da mesa “lipídica”. Nestes três bons anos, nunca deixei de aproveitar ao máximo a temporada da lampreia. Outro privilégio de morar aqui, além das sardinhas, das enguias, do sável e de tantas outras maravilhas que saem dos nossos rios e mares.

Um peixe sem igual

Ao contrário das enguias, que vivem em rios de água doce ou salobra e assim que atingem a maturidade sexual migram para o longínquo Mar dos Sargaços, onde reproduzem e morrem, a lampreia faz o caminho inverso: são anádromas em oposição às anteriores, catádromas. Ou seja, no ciclo das lampreias, há uma fase larvar em que os amocetes permanecem enterrados nos rios portugueses até cinco anos, antes de sofrerem uma metamorfose e migrarem para o seu habitat marinho. Vivem aproximadamente dois anos na plataforma continental, onde passam a alimentar-se do sangue dos peixes e cetáceos hospedeiros; a nomenclatura “parasita hematófago” é um bom epíteto para um implacável e apavorante vampiro do mar! Voltam aos rios com aproximadamente 80 a 90 cm. de comprimento, sobretudo em fevereiro e março, para acasalarem, e fecham o seu ciclo de vida.


Faz-se aqui um parêntesis para explanar que em Portugal há 6 espécies de lampreias: lampreia-marinha (Petromyzon marinus), a lampreia-de-rio, a lampreia-de-riacho, a lampreia-da-costa-da-prata, a lampreia-do-nabão e a lampreia-do-sado. A que nos interessa para este artigo é a lampreia-marinha, de longe a mais consumida em Portugal e em outros países ocidentais da Europa onde escolhe para cumprir o seu destino cruel de morrer, imediatamente após procriar, ou cozida no seu próprio sangue. 

Parâmetros para harmonização

Uma diferença importante das enguias, que são consumidas sobretudo na fase da enguia-amarela adulta de água doce, com toda a gordura armazenada para a sua longa viagem de até 6 mil quilómetros ao Mar do Sargaço, as lampreias são apreciadas após o seu longo retorno dos mares para os rios, durante o qual parte das gorduras acumuladas foram expendidas no processo. Esse facto não isenta os nossos ciclóstomos, como são denominados os peixes de boca circular desprovidos de mandíbulas, de serem classificados como peixes muito gordos. Nesta categoria, o teor lipídico é superior a 8% do peso do corpo, e as lampreias-marinhas ostentam aproximadamente 18% de gordura na sua parte edível. Definitivamente um parâmetro fulcral para casarmos bem os vinhos com a nossa protagonista da temporada. Ainda que não precisemos, pelo menos teoricamente, de um raio fulminante de acidez no vinho, como no caso das enguias megaequipadas para a viagem atlântica, com até 28% de gordura na sua composição nutricional.


Outro parâmetro de suma importância é que toda essa gordura está distribuída aproximadamente da seguinte forma: ácidos gordos monoinsaturados a 56%, ácidos gordos saturados 38% e ácidos gordos poli-insaturados a 6%. Já discutimos neste espaço na Revista de Vinhos, anteriormente, que a gordura poli-insaturada de peixe impõe muita dificuldade aos vinhos tintos e outros com teores de ferro acima de 5 miligramas por litro, conferindo aquele agressivo “fishy flavour” nos aromas e fim-de-boca. O facto da gordura da lampreia ser sobretudo monoinsaturada e saturada - ainda bem que as devoramos apenas sazonalmente -, assegura que possamos trazer tintos à harmonização, pelo menos neste quesito. Mas, e o iodo, terrível para metalizar os taninos? Embora apresentem um pouco mais de iodo que as enguias após dois anos de vida marinha, as lampreias sabem mais aos rios, à terra e ao sangue, do que ao mar. O conteúdo comedido de iodo também autoriza o emprego dos tintos à mesa, sem maiores riscos envolvidos.


Finalmente, e talvez a premissa mais importante para levarmos em consideração, é o volume aromático das preparações clássicas da lampreia. Em resumo, uma bomba de sabores! A vinha d’alhos, que normalmente é composta por vinho tinto, sangue, alho, pimenta, cravinho, louro e salsa, entre diversas variantes, depois estufada juntamente com a lampreia, e reduzida até ganhar uma consistência rica, aveludada e untuosa, dificilmente irá dialogar com um branco. A sua eloquência irá emudecer a esmagadora maioria destes, salvo alguns brancos muito estruturados, com bom peso alcoólico, e preferencialmente alguma ou mesmo bastante curtimenta, como no caso dos “orange wines”. O próprio aspeto cromático de um estufado de lampreia já remete para um tinto, inexoravelmente. Se for um tinto de cariz terroso, com alguma complexidade, de notório volume aromático, com ótima acidez para contrastar com a gordura sólida dos nacos de lampreia, de nível alcoólico e teor de taninos altos o suficiente para combater a rica untuosidade do molho, além de um final de boca persistente e terroso, então estamos a dignificar esse pitéu do mais alto nível epicurista.

Pelo mundo

Infelizmente, uma das iguarias mais apreciadas pelos romanos, cantadas pelo poeta Horácio nas suas sátiras de 30 a.C. e presente em praticamente toda a “velha península” na altura, já praticamente desapareceu das mesas italianas, reflexo da quase extinção nos seus rios e dos defesos de pesca atuais.


Para além de Portugal, dois sítios mantêm a tradição do preparo da lampreia nesse mundo de rios tão impactados pelas ações antrópicas. A Galiza em Espanha e Bordéus em França. A norte do Minho, a tradição é muito similar à nossa e a lampreia “a la bordelesa” é a receita mais festejada na região, embora com algumas variantes, podendo levar mais “verdura en el sofrito” e por vezes tutano para enriquecer o já milionário molhinho final. Também oferecem na temporada as lampreias defumadas e depois enroladas e cozidas com recheios diversos, ou assada dentro de um “timbal” como uma torta, ou servida com arroz ou “fideos”, ou frita ou “rebozada” com ovo e farinha, ou ainda na brasa e servida com cebolas cruas. Em Arbo, a “capital da lampreia”, nas margens norte do Minho e inserida na subzona de Condado de Tea da D.O. Rías Baixas, é da praxe “maridar” os ciclóstomos com os tintos muito atlânticos locais à base de Caíño Tinto, Sousón, Espadeiro, Mencia e Brancellao. Alguns especialistas preferem tintos um pouco mais robustos, ainda que muito frescos e minerais, das D.O.s de Bierzo ou Ribeiro, o que faz total sentido.


Historicamente venerada (e inevitavelmente repudiada) em França, com muitas receitas que remontam à Idade Média, citada por pensadores, poetas e críticos gastronómicos como Curnonsky, que gostava dos seus poderes afrodisíacos, o país imortalizou a mais clássica das receitas de lampreia: “à la bordelaise” ou à moda de Bordéus. Uma perfeição para revelar os sabores e a textura gorda e “fondant” do animal num molho igualmente “moelleux”, que leva o sangue do vampiro. Nessa versão original, o sangue não entra na vinha d’alhos, mas sim para fazer a “liaison” no final da cozedura. Outras particularidades são a presença marcante do alho francês para equilibrar o molho com a sua doçura, a aromaticidade do “jambon”, do “bouquet garni” e de um choro de Armagnac ou Cognac. Os sommeliers franceses colocam invariavelmente ao lado desse clássico um tinto regional com bela carga de taninos sedosos, nem muito jovens e nem evoluídos demais. Sobretudo os vinhos da denominação de Péssac-Leognan ou Graves, de châteaux como Haut-Bailly, Malartic-Lagravière, La Louvière, Pape Clément ou mesmo um “hors concours” Haut-Brion. Mas vinhos do Haut-Médoc em geral, de Margaux e St.Julien em particular, também têm muito êxito. Há quem sacrifique a harmonização regional em prol de um Chinon ou outro Cabernet Franc do Loire, e os resultados podem ser auspiciosos também.

Em Portugal

Para nossa sorte, as lampreias são igualmente deliciadas nas nossas mesas e fazem parte dos mais antigos compêndios culinários, há muitos séculos. E não seria um exagero comentar que, quando alguém lá fora sonhe ou tenha um pesadelo com a lampreia à mesa, muito provavelmente o primeiro país que venha à cabeça seja Portugal, antes mesmo da França ou Espanha. E mesmo que a nossa receita mais icónica seja inspirada no engenhoso preparo à bordalesa, ela transpira uma indelével sabedoria regional. Na nossa bordalesa, o aspeto visual e a textura fundente são muito similares à deles, excetuando-se o alho francês, inclusive com os croûtons de pão no acompanhamento, ainda que por lá prefiram raspar um alho em cima.
Para mim, a grande diferença está no sabor, pois empregamos um toque de vinagre para não coagular o sangue das lampreias, enquanto eles usam o vinho tinto local ou Cognac. Esse travo ácido que acompanha a nossa bordalesa também é fruto do uso de Vinho Verde tinto na vinha d’alhos. Alguns preferem até lotear a marinada com um pouco de “tinto maduro”, para não ficar muito agressiva. Uma lampreia à bordalesa-portuguesa bem executada deve forçosamente ter esse agudo de acidez soando no contratempo do molho aveludado. 


Nesse ponto ideal, resulta bem eleger tintos conforme acima descritos, com uma ótima frescura para ajudar na tarefa de emulsionar e detergir a gordura da carne, ainda que este sommelier considere que a acidez e os taninos agressivos de um rústico Vinhão podem estar exagerados. Mas pior é quando me deparo com algumas bordalesas muito ácidas; neste caso parece que a harmonização por contraposição já foi levada a cabo pelo cozinheiro, na panela. Um verdadeiro pecado. 

 

TESTES N’O GAVETO 

Para muitos profissionais e gastrónomos em geral, o restaurante O Gaveto de Matosinhos é, em Portugal, o templo maior para ir comer lampreias de se ajoelhar. Para o nosso teste do mês, provei três vinhos com a lampreia à bordalesa d’O Gaveto: o típico, uma alternativa e um fora da caixa que há tempos almejava colocar com este prato pelo seu perfil, uma aposta do sommelier! 

Vinho Verde Vinhão Aguião 2019 
O típico. Um Vinhão como deve ser, explosivo, ultra-vibrante de amoras maceradas no granito, herbáceo, com notas de sangue e pedra. Acidez transbordante, taninos rústicos, tudo realçado por uma leve agulha carbónica. Zero de maciez no equilíbrio. Que este vinho lavou o prato, não restam dúvidas. Este é o detergente potável, lava a lampreia, a feijoada brasileira e qualquer outro prato gorduroso e untuoso que vier pela frente. Mas e a harmonia? Aquela sensação de que vinho e prato caminham de mãos dadas até o final da vida? Essa é outra coisa, a harmonia pareceu-me mais a uma paixão voraz e efémera do que um bom casamento.

Vallado Sousão Unoaked Divina Lampreia 2019 
Uma alternativa. Aqui o Sousão, como era de se esperar, teve as suas arestas cortantes lapidadas. O núcleo de fruta negra estava muito belo e as impressões da mais fruta mais quente, bem contrastadas por uma mineralidade diferente, acidez vincada, mas não corrosiva, e uma dinâmica de boca mais controlada. Resultou muito bem com a nossa bordalesa, pelo que, aqui, podemos falar em casamento. O rico molho foi enxuto pelos taninos e pelo álcool de 13,5º. 

Barbera d’Alba Castlè Biologico Barale Fratelli 2018 
O fora da caixa. Por intuição de um sommelier glutão, sempre sonhei em realizar este ‘pairing’, um dos vinhos campeões da Itália para lavar pratos gordurosos com as nossas lampreias. Só não esperava que ele se revelasse como o melhor da prova. Impressionante como essa Barbera clássica se fundiu com o molho e expôs o lado terroso de peixe com o perfil que aporta frutas negras e impressões telúricas. A acidez estava no ponto certo para ultrapassar a barreira do realce sinérgico da acidez presente no molho e chegar ao coração dos nacos de lampreia, limpando a cada garfada a sua riqueza de sabor, fluindo com ela para um final feliz, compensatório para o destino cruel das lampreias quando sobem os rios pela última vez.