Harmonização: Natal

Fotografia: Arquivo
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

A seguir, a proposta de alguns vinhos clássicos e também alguns desafiadores para as receitas portuguesas tradicionais de Natal, sempre a ter como base a técnica de harmonização vinho/alimento. E como na maior parte das vezes não é possível selecionar um vinho por cada prato, há ainda vinhos consensuais para uma situação real familiar.

 

 

Nesta época do ano, os sommeliers costumam receber de presente a tarefa de harmonizar vinhos com o tradicional receituário de Natal. Como já celebrei esta inspiradora data em países e regiões diferentes, a minha ideia de proporcionar uma “Ceia segura” sempre foi de apelar para as harmonizações regionais, as quais sempre resultam e fomentam aquele clima afetuoso e terno de celebração. 
Um “cappelleti in brodo di cappone” fumegante com um Lambrusco de qualidade da Emilia-Romagna, um salpicão brasileiro com um espumante Bruto da Serra Gaúcha, “terrine de foie gras” com Sauternes, leitão com espumante rosé da Bairrada, peru assado com arandos e um Zinfandel norte-americano, presunto “tender” com esperiarias escoltado por um Malbec argentino, pandoro e panettone com um incontornável espumante Asti.


Logicamente, para além destas “comfort pairings”, podemos arriscar um pouco mais, aproveitando-nos da infindável riqueza e diversidade do mundo do vinho para um momento de indulgência e ao mesmo tempo para surpreender aqueles que amamos e dividem a mesa connosco nas celebrações natalinas. 


Gostava, então, de propor alguns vinhos clássicos e também alguns desafiadores para as receitas portuguesas tradicionais de Natal, sempre a ter como base a técnica de harmonização vinho/alimento. E como na maior parte das vezes não é possível selecionar um vinho por cada prato, proponho ainda vinhos consensuais para uma situação real familiar, na qual cada bocado levado à boca pode ser de uma receita diferente.

Situação ideal

Bacalhau cozido com batatas e couve portuguesa da consoada (e a “roupa velha” no dia de Natal)
Nada melhor do que um grande “branco de inverno”, com estrutura para fazer frente ao rico sabor do bacalhau e, caso passe pela madeira, que esta seja judiciosamente bem integrada, de modo que o vinho não metalize no final de boca. 
Harmonização clássica: Encruzado da Quinta dos Roques (Dão)
Fora da caixa: Boal Grande Reserva Horácio Simões (Setúbal) 


Polvo cozido
Um aromático polvo guisado casa bem com um branco de carácter, um rosado ou um tinto leve, de taninos bem resolvidos.
Harmonização clássica: Rosé Reserva Caladoc Quinta do Cardo (Beira Interior)
Fora da caixa: Art.Terra Amphora tinto Herdade de São Miguel (Alentejo)

Canja de galinha
Os caldos servidos muito quentes são por vezes difíceis de harmonizar com os vinhos. Para enxugar tanta suculência, recomendamos vinhos brancos mais alcoólicos e não muito ácidos ou tintos alcoólicos e com bons taninos. 
Harmonização clássica: Antão Vaz Reserva Olho de Mocho Herdade do Rocim (Alentejo)
Fora da caixa: Reserva tinto Colinas do Douro (Douro)


Peru assado com castanhas
É um prato que fecha magnificamente com um tinto refinado e telúrico, de estrutura média, bons taninos e revigorante frescura. Mas atenção! Se escoltado ou recheado com frutas cozidas, assadas ou confitadas, devemos esquecer este perfil de tinto e passar para um branco encorpado e macio (Antão Vaz, Moscatel, Viognier, Gewurztraminer, etc.) ou um tinto muito frutado e macio.
Harmonização clássica: Pinot Noir Casal Sta. Maria (Lisboa)
Fora da caixa: Post Quercus Filipa Pato (Bairrada)
Caso haja frutas: Gewurztraminer Reserva Quinta dos Penegrais (Tejo)


Cabrito assado com batatas
Merece sempre um tinto de estilo mais tradicional, complexo e mais encorpado. Evitemos excessos de fruta e madeira, o cabrito realmente prefere tintos de “terroi”r.
Harmonização clássica: Quinta da Pellada tinto (Dão)
Fora da caixa: Vale da Capucha tinto (Lisboa)  


Rabanadas, aletria, Bolo de mel da Madeira e frutos secos (amêndoas, avelãs, figos e passas)
Afortunadamente, toda esta panóplia de sobremesas típicas natalinas de Portugal cai maravilhosamente bem com o mesmo perfil de vinhos fortificados: Portos da família Tawny de amadurecimento oxidativo na madeira (Tawny clássico, com indicação de idade ou Colheita), Madeiras mais doces e generosos (sobretudo Bual e Malmey) ou Moscatel de Setúbal.
Harmonização clássica: Porto Tawny Blackett (Porto), Porto 20 Anos Fonseca (Porto), Moscatel de Setúbal Alambre 20 Anos José Maria da Fonseca (Setúbal), Barbeito Malvasia 20 Anos (Madeira)
Fora da caixa: Carcavelos Villa Oeiras 10 Anos (Lisboa)

 

 

Situação Real
Na vida real, muitas vezes escolher um vinho para cada prato da ementa de Natal é difícil em vários aspetos, quer pela dinâmica da apreciação dos pratos, que chegam juntos à mesa, quer pelo número de convivas mormente alto, quer pela grande disponibilidade de copos e de serviço para tantas trocas de vinhos.


Por esse motivo é necessária a eleição de um pequeno contingente de rótulos, consensuais em termos de estilo, que abranjam o maior número de pratos com harmonizações bem logradas ou, na pior das hipóteses, que não entrem em conflito. 
Um bom espumante é sagrado nestes momentos de celebração, seguido por um “branco de inverno” e um tinto de média estrutura e boa maciez. Fundamental abrir um fortificado para as sobremesas, não somente em busca da harmonia enogastronómica, mas pela capacidade que estes vinhos carregam de reconfortar a alma e alegrar os espíritos.


As borbulhas da celebração, neste caso, podem ser nacionais, como algum dos excelentes espumantes Vértice no Douro ou um mais assertivo espumante da Bairrada, tal e qual o cremoso Kompassus Blancs de Noirs. Se o orçamento permitir um grande champanhe, a recomendação vai para um minúsculo produtor que faz coisas divinais na sub-região de Montagne de Reims, o Marguet, agora já disponível em Portugal.


Em termos de branco, necessitamos de um exemplar encorpado e generoso na maciez, que dessa maneira transite do bacalhau e do polvo à canja, ao peru, até chegar no peso de estrutura de um cabrito. Brancos importantes, alcunhados “de inverno”, possuem essas prerrogativas. Há muitas boas opções em cada região de Portugal, mas para sair um pouco do óbvio, um imponente Marquesa de Alorna Grande Reserva do Tejo ou o multifacetado Terroir Branco da Adega Mãe de Lisboa.
Um tinto de média estrutura, com o equilíbrio não muito marcado pela austeridade dos taninos e acidez, voltado mais para a maciez e madureza da fruta, normalmente tira uma boa média na harmonização e não sobram arestas numa dinâmica mesa de Natal. Há um grande repertório de vinhos portugueses de alta qualidade e bons preços com esse perfil, felizmente. Não é necessário chegar aos topos de gama se estiver a pensar num bom diálogo enogastronómico, pois na maior parte das vezes aqueles trazem taninos em excesso para o bacalhau, o polvo, o peru, a galinha, etc. Aposte num Douro de média gama dos produtores que fazem vinhos elegantes como Quinta de la Rosa, Alves de Sousa, entre outros, ou entre na categoria de um Reserva muito refinado, como o Quinta do Vallado Field Blend.


Uma última mas não menos importante recomendação: não deixe de abrir um Porto da família Tawny, um Madeira Boal ou Malmsey ou, finalmente, um Moscatel de Setúbal para iluminar a mesa de sobremesa. Uma dessas maravilhas esculpidas pelo cinzel do tempo traz o conforto, a elevação e o verdadeiro espírito de comunhão do Natal à Ceia e liga-se esplendorosamente bem à doçaria típica portuguesa.