Harmonização: Ostras

Fotografia: Fabrice Demoulin
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

A discreta aromaticidade das ostras elimina brancos muito espalhafatosos, excessivamente frutados, florais ou amadeirados, que poderiam atropelar os delicados perfumes marinhos do nobre molusco. Moscatéis, Malvasias, Gewürztraminers e Viogniers eloquentes, nem pensar! Elegeríamos então vinhos brancos de estrutura leve a meio encorpada, com aromas delicados, mais para contidos do que para exuberantes, dotados de delicada chancela mineral/marinha, acidez agradável mas não predominante.

 

 

Nada pode parecer mais perfeito do que uma cintilante taça de champanhe (ou de outro bom espumante) a escoltar uma sedutora ostra, aberta no momento. Esta imagem elegante e estimulante inspira-nos e faz-nos sonhar, o que por si só já atesta o êxito – ainda que relativo – desta clássica harmonização vinho/alimento.
Como enogastrónomo profissional, acho interessante revelar, todavia, outras facetas do casamento vinho e ostras, para podermos abrir mais o nosso leque de escolhas. A harmonização de champanhes ou espumantes com ostras é entendida pelos sommeliers como uma “harmonização tradicional” ou “harmonização psicológica”, pois ao invés de assentar-se sobre critérios técnicos recai sobre o aspeto emocional do degustador. Dada a vocação sensual desta tipologia de vinho e do alimento em questão, aprecia-se incondicionalmente a interação entre os dois. Do ponto de vista da tradição, há muitos anos, provavelmente desde a inauguração das grandes maisons de Champagne, no início do século XVIII, a nobreza refestela-se com ostras e champanhes, casamento que hoje se tornou mais acessível com a elaboração de bons espumantes em várias partes do mundo e com o cultivo profissional das ostras.


Entretanto, do ponto de vista técnico esta harmonização tradicional ou psicológica apresenta contradições bastante fortes, as quais explicaremos a seguir. Ao colocarmos uma ostra fresca na boca, as sensações táteis e gosto-olfativas predominantes serão: suculência (intrínseca da própria ostra e induzida pela mastigação); sapidez (salinidade marinha intensa, a conferir uma sensação saporífera de dureza); baixíssima perceção de gordura sólida, nenhuma de untuosidade; aromaticidade de média intensidade; média perceção de amargor e alta perceção de iodo.


Não é difícil perceber que os champanhes ou espumantes se caracterizam pela frescura da acidez (uvas menos maduras, cultivadas em climas marginalmente mais frios) e pela presença de gás carbónico natural que, por sua vez, acentua as sensações do lado da dureza no equilíbrio do vinho (acidez e sapidez) e atenua as sensações do lado da maciez (doçura, álcool e maciez glicérica). 
Quando degustamos ostras com champanhes ou espumantes, temos um casamento conflituoso de realce sinérgico da dureza, além de excesso de suculência na cavidade bucal. Isto, porque a alta sapidez das ostras é potencializada pelo impacto ácido do espumante, tudo ainda exponenciado pela pungência do gás carbónico, sem haver no alimento uma “almofada” de maciez (lípidos sólidos e tendência ao doce) para uma justa contraposição. Além do mais, a suculência do molusco não é enxugada pelo álcool e/ou taninos do vinho, muito antes pelo contrário, o champanhe/espumante induz uma forte salivação. Concluindo, estamos a dar dureza à dureza e suculência à suculência, não esquecendo que, transpondo o universo técnico, essa é uma das harmonizações mais apreciadas e praticadas em todo mundo!


De volta à técnica enogastronómica, que tipo de vinho poderíamos então trabalhar com as ostras ao natural? Precisaríamos em primeiro lugar de vinhos brancos, pois com o alto teor de iodo existente, escolher vinhos tintos com taninos seria como lamber um poste enferrujado de eletricidade! Pelo mesmo motivo de metalização dos polifenóis evita-se os brancos envelhecidos em carvalho (aporte de polifenóis elágicos). Como vimos, a discreta aromaticidade das ostras elimina brancos muito espalhafatosos, excessivamente frutados, florais ou amadeirados, que poderiam atropelar os delicados perfumes marinhos do nobre molusco. Moscatéis, Malvasias, Gewürztraminers e Viogniers eloquentes, nem pensar! Elegeríamos então vinhos brancos de estrutura leve a meio encorpada, com aromas delicados, mais para contidos do que para exuberantes, dotados de delicada chancela mineral/marinha, acidez agradável mas não predominante (para não causarmos o realce sinérgico de dureza), e uma equilibrada maciez alcoólica e glicérica, suficiente para amortecer o “assalto” salino das ostras e enxugar os sucos presentes na boca.


Nessa descrição encontramos dois clássicos franceses largamente usados nos bistrôs que servem suculentas “ostrea edulis” ou “crassostrea gigas” aos clientes: os Chablis da categoria Villages (os Premier cru e Grand Cru são muito minerais, ácidos e potentes para tanto) e os Muscadets do Loire. 
Quando visitei uma propriedade de ostreicultura de alto prestígio na lagoa Étang de Thau, no Languedoc, a Tarbouriech, fiquei abismado com a perfeita harmonização daquelas incríveis ostras de Bouzigues com o branco local Picpoul de Pinet, o qual preenchia com louvor aqueles preceitos: fruta contida, acidez não cortante, álcool médio/alto, um perfeito trampolim para os delicados sabores minerais dos moluscos! Um Greco di Tufo da Campania, na Itália, e um Assyrtico da ilha de Santorini, Grécia, são outros parceiros incontornáveis das ostras.


Felizmente, em Portugal há um mar de vinhos perfeitos para mergulharmos com as ostras frescas. Adoro harmonizá-las com um simples Arinto de Bucelas, impossível sair-se mal com esta escolha. Um Terrantez dos Açores, da Azores Wine Company, faz-nos comer uma dúzia a mais do que o planeado.  Um Alvarinho tenso e mineral, como os da Quinta de Santiago, ou um marítimo Viosinho da Adega Mãe, de Lisboa, engrossam uma lista gigantesca de brancos portugueses amigos das ostras. Mas se ainda preferir o tradicional espumante, felizmente a enogastronomia é uma ciência que quando transgredida, possivelmente o matará… de prazer!