Harmonização: Pastinaca

 
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Esta raiz outunal de carácter vincado, que acompanha gloriosamente pratos intensos em sapidez, promove belos casamentos moleculares com brancos perfumados ou tintos especiados e herbáceos.

 

A primeira vez que provei um puré de pastinaca foi uma experiência inesquecível, no restaurante mais antigo de Londres, datado de 1798, o Rules de Covent Garden. A minha atenção total estava na carne de veado deste célebre restaurante especializado em caça, mas um puré branco que estava ao lado do protagonista do prato não passou desapercebido. Uma explosão de sabores mentolados e anisados, de especiarias e outros sabores novos, estavam a atuar e quase a roubar a cena no palco. Voltei a este restaurante mais algumas vezes para comer outras maravilhas das reservas de caça inglesa - o Rules mantém uma reserva própria - como as galinholas e o tetraz, e o “parsnip purée” sempre foi uma escolha minha para acompanhá-las com brio e emoção.


Esta antiga raiz originária da Eurásia, provavelmente do Cáucaso, usufruía de prestígio na alimentação de diversos povos da Antiguidade, entre eles os romanos. A pastinaca já era referida no compêndio de receitas dos romanos em De Re Coquinaria, de Apicius. Perdeu muito espaço no campo e na mesa com a chegada da batata do Novo Mundo. Em Itália praticamente desapareceu no século XIX. Timidamente volta à cena, através dos chefes de cozinha mais pesquisadores e ousados.
Como gosta muito do frio e, após o congelamento dos solos, vê a sua carga de amido transformada em açúcares, a pastinaca manteve-se como fonte de doçura e energia em países mais ao norte, como as ilhas britânicas. Ali ainda entra em várias receitas, para sorte dos ingleses, desafortunados pela fama de uma má cozinha tradicional. Aqui em Portugal confina-se à zona da Covilhã, à porta da Serra da Estrela, na Beira Baixa, onde também é conhecida como cherovia. 


Difícil de encontrar nos mercados, pouco consumida até mesmo na Covilhã, a pastinaca mereceria uma atenção maior dos cozinheiros e de quem gosta de harmonizar vinhos e pratos. Liga espetacularmente com brancos e tintos que se alinham com o seu perfil intenso e muito particular de aromas.

Exotismo à máxima potência

É impossível ficar incólume na primeira prova das pastinacas. A primeira impressão que emerge, à frente da terrosidade e doçura típicas das raízes, é o forte carácter mentolado, anisado (a lembrar o funcho e o aneto) e extremamente especiado. Para mim a noz-moscada é assertiva, assim como a pimenta-branca quebrada que encontramos num vinho Grüner Veltliner austríaco. Há algo de refrescante que evoca o rábano e o aipo-rábano. E também a frescura verde da salsa. Um exotismo tropical incongruente com as pastinacas traz notas de coco e banana quando assadas ou cozidas. Ou talvez de avelãs. Complexidade e força não faltam à pastinaca, por isso faz um “mash” de eleição para acompanhar caça, preparos saborosos bovinos, como rabada e bochechas, cozidos, carnes secas, fumadas e enchidos, além de ostras, peixes salgados e secos, ou queijos curados e intensos.


Em relação aos sabores essenciais, a mágica raiz alva possui uma marcante tendência doce, o que também explica a sua escolha para contrapor pratos muito sápidos. Esse parâmetro será muito importante para nos direcionar quanto aos vinhos na harmonização. Outros sabores tratados como o “lado da dureza” para fins de harmonização: o ácido, o amargo e o salgado, bem como o umami, não são relevantes na pastinaca, facilitando imensamente o trabalho dos sommeliers e apreciação dos enogastrónomos em geral.


A textura “borrachuda”, mais difícil de mastigar que as cenouras, por exemplo, talvez seja o ponto fraco da pastinaca, ainda que adore esse lado mais rústico num tabuleiro com outros tubérculos bem caramelizados no forno, ou numa sopa camponesa. Fatiada bem fina, crua, com um mandolino para evitar o efeito longitudinal do seu interior fibroso, pode originar saladas muito interessantes e frescas, aliadas a ingredientes compatíveis olfativamente com as pastinacas. Mas nos purés a nossa raiz sublima-se. A solo ou com cenouras e batatas, dá uma massa cremosa, mas não elástica, riquíssima em aromas, terrosidade e doçura.

Harmonização por pontes aromáticas

Entre os livros mais interessantes, ainda que mais controversos, que guardo na minha coleção de tratados sobre enogastronomia, conta-se o Taste Buds and Molecules do canadiano François Chartier. Lançado há aproximadamente uma década, colocou uma nova luz nos “pairings” através de uma abordagem mais científica, nomeadamente molecular, da matéria. 
Em parceria com um biólogo molecular, chefes do calibre de Ferrian Adrià e com exímios sommeliers, Chartier apresentou como nunca antes esquemas que conectam os componentes aromáticos de diversos ingredientes e pratos com vinhos de todo o mundo. A ideia é que estas moléculas criam efeitos sinérgicos entre si e falam mais alto do que qualquer outro parâmetro na hora de escolher os candidatos a um casamento perfeito.


Nestes últimos 10 anos fiz vários testes utilizando os preceitos de François Chartier, todavia sem nunca descuidar do que para mim ainda é mais importante: os parâmetros de peso, volume, textura e sabores essenciais dos alimentos e vinhos. Mais como um ajuste fino, talvez. E, dessa forma, com grande sucesso! 


Estas “pontes aromáticas”, como são denominadas no livro, podem ligar pratos e vinhos com imensa eficácia e satisfação. Vamos então ao nosso protagonista, a pastinaca. Como vimos, uma das suas principais características olfativas são as incisivas notas mentoladas e anisadas. François Chartier descobriu nas suas pesquisas que as ervas e vegetais que provêm da família Apiaceae - pastinaca, cenoura, salsa, aipo, coentros e funcho -, Asteraceae - estragão - e Lamiaceae - menta, hortelã, manjericão, sálvia, alecrim - compartilham os componentes anisados. Entre estes componentes estão o éter anetol (anis, anis-estrelado, manjericão, salsinha, estragão, funcho), o seu isómero estragol (estragão, basílico, maçã, funcho), os terpenos S-carvona (alcarávia) e R-carvona (menta), o eugenol (basílico tailandês, cravo), a flavona apigenina (salsinha) e, finalmente, o mentol (menta, hortelã, coentro, funcho, manjericão, tubérculos). 


Entre as castas clássicas que carregam estes compostos voláteis anisados/mentolados nos seus vinhos, Chartier elenca logicamente a Sauvignon Blanc, mas também a Alvarinho, a Chenin Blanc, a Godello (Gouveio do Douro), a Grüner Veltliner, a Verdejo, a Vermentino, entre outras. Este seria um bom caminho atravessado por eficazes “pontes aromáticas” caso a receita da pastinaca em questão permita o casamento com um vinho branco.


Contudo, se a pastinaca escoltar pratos substanciais que clamam por tintos, podemos tomar um atalho através dos componentes especiados da aromática raiz. A miristicina é um componente orgânico natural presente no óleo essencial da noz-moscada e revela-se, sem nenhuma timidez, nos aromas da pastinaca, tanto crua como cozida. Os tintos amadurecidos em barris de carvalho recebem desta interação uma profusão de aromas, entre os quais especiarias, como a noz-moscada. Neste caso até mais o carvalho francês que o americano e com maior grau na tosta média. Grandes tintos com este perfil muito especiado ligarão muito bem com pratos robustos de tacho, deliciosamente acompanhados por um puré de pastinaca, como um “jugged hare”, uma especiada e fumegante cabidela de lebre das ilhas britânicas.


A harmonização molecular também poderia explorar a presença dos elementos aromáticos “vegetais” da pastinaca, que remetem para os pimentos verdes. Culpa da 3-sec-butil-2-metoxipirazina (SBMP), ou apenas pirazina, para os mais íntimos! Esta classe de compostos químicos marca os aromas de diversas castas da família (eco-geogrupo) das Carmenets: Cabernet Sauvignon, Merlot, Cabernet Franc, Carménère, Petit Verdot e Sauvignon Blanc. Principalmente em localizações climáticas mais frescas e menos ensolaradas, como em Bordéus, Loire ou algumas posições na região de Lisboa e da Bairrada, bastante influenciadas pela proximidade do oceano. E em relação às castas portuguesas, quais têm pirazinas na composição? Não há muitos estudos conclusivos, mas talvez a Trincadeira, o Castelão, o Alfrocheiro e a Tinta Miúda sejam candidatas. Pelo menos são das mais herbáceas que encontramos por aqui.

Testes com a pastinaca 

Para os testes deste mês procurei seguir a linha básica proposta por Chartier, a ligar as moléculas anisadas/mentoladas com três vinhos muito clássicos de cada uma das seguintes castas: Alvarinho, Chenin Blanc e Sauvignon Blanc. Foquei-me mais na “harmonização molecular” do que na “harmonização por concordância/contraposição”, ainda que todos os vinhos escolhidos, com bela carga de frescura e sapidez, foram extremamente eficazes a contrapor à impactante tendência para o doce da raiz. Preparei a pastinaca de uma forma bem natural, apenas assada por 40 minutos no forno, cortada em bastões, com um toque de azeite e flor de sal. Evitei tirar as cascas para manter o seu perfume anisado ao máximo. Um absurdo de bom!


Um Alvarinho de Melgaço 2018 sem madeira foi o grande campeão. Aliás, essa foi uma daquelas harmonizações mais do que perfeitas. A ligação molecular fez-se sentir e as notas aromáticas do vinho foram desnudadas pela pastinaca, e vice-versa. O diálogo continuou alto e em bom-tom até o último sopro de persistência aromática. Realmente não imaginava que um Alvarinho fosse assim tão anisado/mentolado, com a beleza de um casamento que revela o que cada um tem de melhor.
O Chenin Blanc 2017 de Saumur, no Loire, de um fantástico produtor da região, também foi muito bem com a perfumada raiz do frio e evidenciou ainda as notas de anis da pastinaca. Mas não mostrou a perfeição do Alvarinho, que já harmonizava divinalmente só na olfação do copo ao lado do prato. Escolhi ainda um famoso Sauvignon Blanc de um mesoclima muito frio de Lisboa para os testes. Outra harmonização maravilhosa molecular, aqui com o lado mentolado e vegetal das pirazinas do vinho a encontrar respaldo nos compostos similares da pastinaca.


Recomendo, por fim, que usem as “pontes aromáticas” sempre que possível para aceder ao prazer supremo de uma harmonização vinho-alimento perfeita. Mas sem jamais esquecer os outros preceitos que temos discutido neste espaço da Revista de Vinhos: volume, peso, textura, sabores essenciais, umami ou iodo, entre outros.
 

Fotos Daniel Luciano e Ricardo Garrido