Harmonização: polvo e vinho (tinto)

Fotografia: Ricardo Garrido
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Quando se vê em perigo, o polvo astutamente liberta tinta para iludir os seus predadores. E os tintos novamente devem ser a escolha sábia quando vencemos o polvo na mesa. E por que razão, ao contrário dos outros animais marinhos, estes inteligentes cefalópodes sublimam-se quando deliciados ao lado dos vinhos que carregam cor e taninos?

 

Antes de percebermos a razão da impressionante harmonia das diversas receitas de polvo com o mundo com vinhos tintos, também os mais variados possíveis, faz-se necessária uma importante explanação técnica. Para além de todos os parâmetros que normalmente analisamos e respeitamos para obter uma harmonização impecável, no caso dos produtos marinhos os sommeliers têm atenção redobrada para que os vinhos não metalizem, ganhem contornos desagradáveis de “óleo de peixe” ou, pior ainda, de gosto de “lixo de mercado de peixe”. Ou seja, para tudo o que provém do mar, também valem regras como “nível de estrutura do vinho similar ao nível de estrutura do prato”, “acidez do vinho em oposição à gordura sólida e tendência ao doce do prato”, “maciez do vinho para amortecer as arestas de amargor, acidez ou sal no prato”, entre outras. Mas ainda há mais...


Existem três parâmetros fundamentais que os bons enogastrónomos devem observar para maximizar a escolha dos seus vinhos e, em última instância, para não destruí-los, com peixes e frutos do mar: 1. o seu teor de iodo; 2. a sua carga de umami; 3. o seu conteúdo de gorduras poli-insaturadas. Por motivos ainda não totalmente explicados pela ciência, os alimentos ricos em iodo tendem a metalizar os taninos dos vinhos na boca e nas sensações finas da prova. Na edição anterior da Revista de Vinhos, discutimos como o bacalhau, tão naturalmente rico em iodo - e ainda concentrado pela salga - torna a vida difícil para os vinhos tintos e mesmo para os “laranjas”, para os brancos com curtimenta ou com muitos aportes de taninos elágicos do estágio em madeira. Um tinto qualquer até entra bem na boca depois de uma garfada de um bacalhau à Lagareiro, mas subitamente transforma-se e despede-se no palato de forma desagradavelmente metálica. 


O quinto sabor essencial dos orientais, o umami, está muito presente em diversos alimentos marinhos, através do trio de aminoácidos – glutamato, inosinato e guanilato. Estes atuam em sinergia e realçam o sabor de tudo à sua volta e, nomeadamente, os elementos de dureza de um vinho: os seus taninos, a sua acidez e a sua sapidez mineral. As algas kombu e nori são verdadeiras bombas de glutamato, assim como as anchovas salgadas e as amêijoas. Os inosinatos abundam nos peixes azuis, como as sardinhas, cavalas, no bonito e no atum. O katsuobushi, ou flocos de bonito seco, são outra explosão de umami utilizada no caldo dashi, esteio de sabor da cozinha japonesa. Quanto maior for a carga destes aminoácidos no alimento, mais fruta e maciez os vinhos terão que entregar, uma vez que aquela será mitigada na harmonização e o pêndulo do lado da dureza na balança do equilíbrio do vinho será exacerbado.


Finalmente, a tão saudável gordura poli-insaturada ómega-3 é “insalubre” para os vinhos que tenham teores maiores de ferro na sua composição, o que ocorre sobretudo nos tintos vinificados em contacto com os engaços, cascas e sementes. Um pouco agradável ‘fishy flavour’ toma conta da harmonização porque os iões Fe2+ nos vinhos podem catalisar a oxidação lipídica através da quebra de hidroperóxidos lipídicos presentes nos peixes e frutos-do-mar. Em conclusão, para que um apetitoso animal marinho resulte com os igualmente saborosos e tânicos vinhos tintos, deve forçosamente ser tímido no seu teor de iodo, na sua carga de umami e, finalmente, no teor de gordura ómega-3. 

O polvo da tinta e do tinto

Afortunadamente para os inveterados bebedores de tinto, que encontram no mar pouco respaldo para desfrutar os seus vinhos sem metalizações ou desagradáveis ranços de peixe, o polvo é a redenção. Em relação aos pilares tratados acima, a carne do cefalópode possui aproximadamente 20 μg de iodo por 100g, contra, por exemplo, 140 μg dos mexilhões frescos, 230 μg do bacalhau salgado ou 700 μg da lagosta. O relativamente baixo conteúdo de iodo garantirá, fixas as outras variáveis, que os taninos do seu tinto preferido não metalizarão no confronto com o polvo.


Em relação ao umami, ao contrário dos peixes marinhos, o polvo não possui inosinato, tal como outros moluscos marinhos: mexilhões, ostras, amêijoas e vieiras. Contudo, ao contrário destes, o polvo (e também as lulas) apresenta uma carga muito baixa também de glutamato, o outro nucleotídeo que contribui para o quinto sabor essencial. Para termos uma ideia, enquanto o polvo possui aproximadamente 20 a 30 mg por 100g de glutamato na carne, os mexilhões ostentam 110 mg, as vieiras 140 mg e as amêijoas 210 mg. O corolário disso é que o nível baixo de umami no polvo não irá fazer saltar para fora os taninos e outros elementos de dureza dos vinhos tintos, como a acidez, a sapidez e os amargos. As ótimas perspectivas para os tintos não param aqui. O polvo é animal de pouca gordura na carne, algo em torno de 2 g por 100 g, e apenas 300 mg de ómega-3. Estes números, perto dos 4000 mg do salmão e da cavala e dos 2000 mg da sardinha, garantem que o retro-gosto de um bom tinto não ganhará contornos desagradáveis de mercado decadente de peixe.

Ao redor do mundo

Se na mesa polvo e vinho tinto proporcionam uma ligação sólida, na panela essa aliança provou-se igualmente ajustada com o passar do tempo. Há muitos anos provei um “oktapódi krasáto” numa taberna local na ilha de Creta e colocaram um copinho de “ouzo” (destilado aromatizado com anis) para acompanhar aquela maravilha. Pedi um vinho e deram-me um copo, grosso e sem haste, nada inspirador, de tinto. Já não tinha coragem e recursos linguísticos para tentar um branco: dei então um gole na alternativa rubi que tinha restado. Nunca mais esqueci aquele sítio, aquele prato e aquela harmonização. Depois descobri que o polvo era estufado com vinho tinto, louro, orégãos, tomates, cebola e alho. Um clássico da Grécia que tanto ama o molusco dos “pól'ypous” ou “de muitos pés”.


Na Itália também é comum estufar ou brasear o polvo com vinho tinto: o “polpo ubriaco” ou polvo bêbado que encontramos em diversas regiões, ou o sensacional “cacciucco alla livornese”, a sopa de peixe e polvo de Livorno que pode levar um copinho de tinto na sua feitura. Ambos são deliciosos com grandes goles de vinhos tintos locais, como um jovem Chianti com o cacciucco. Outra receita clássica de Itália, mas sem vinho na receita, é o “polpo alla luciana” da Campania, cujo nome referencia os pescadores do Borgo di Santa Lucia em Nápoles, mestres na preparação do polvo estufado com ingredientes locais: alcaparras salgadas, azeitonas negras, tomates maduros, alho e piri-piri. Impecável com os tintos locais da casta Piedirosso (os Aglianicos são potentes demais) ou com outros tintos frutados das regiões limítrofes: Montepulciano d’Abruzzo, Etna Rosso, Primitivo da Apúlia, etc. 


Entre as minhas “tapas” do coração, quando destruo impiedosamente um balcão de petiscos em Espanha, são as suculentas rodelas de “pulpo a la galega” ou “polbo à feira” em galego, regadas com bom azeite, flor de sal e pó de pimentão picante ou doce. Jerez Fino ou Manzanilla são sempre uma boa aposta, mas, afinal, o que não combina com estes ‘jokers’ da harmonização numa mesa espanhola? Na Galiza, contudo, a tradição local é aliar este clássico petisco com tintos marítimos, jovens, frutados e frescos das regiões de Ribeiro e Monterrei, baseados em castas autóctones como a Brancellao (Alvarelhão) ou Caiño.

Testes 

Na tasca onde que almoço regularmente em Lisboa, Forninho Saloio, os polvos cozidos e impecavelmente dourados na brasa pelo mestre Arlindo viram dezenas de cores, aromas, sabores e texturas nos meus copos de prova. Fiz questão de levar tintos dos mais diversos níveis de estrutura e posso garantir que nenhum, absolutamente nenhum, metalizou no confronto com o polvo. Logicamente, alguns tintos encaixaram melhor no volume e perfil de sabor do prato em questão, como um tinto mediterrânico de Cannonau da ilha da Sardenha, um espetáculo de harmonização! Mas posso afirmar com veemência que a praia do polvo é tinta (perdoem-me o trocadilho). Brancos estruturados, rosés e até “laranjas” funcionaram muito bem, mas os brancos leves, de frescura, não resistiram aos sabores do cefalópode que se alimenta de caranguejos, lavagantes, lagostas e percebes, ou seja, que já vem temperado por natureza.


Por fim, é muito importante ajustar alguns parâmetros na escolha do vinho dependendo do perfil da receita que teremos pela frente. Um untuoso arroz de polvo pode ser escoltado por um branco de inverno mais alcóolico para limpar essa riqueza e a sua acidez pode ser decisiva para contrastar a “tendência para o doce” da carga amilácea do arroz. Um polvo à Lagareiro, com muito alho em cima, pode chocar com os taninos dos tintos. Neste caso, um rosé de carácter obteria um resultado melhor. Boas notícias para os amantes dos tintos! Mas sejamos inteligentes como os polvos, empreguemos neles as boas garrafas desta tipologia e não as estraguemos com peixes e frutos do mar ricos em iodo, umami e gorduras poli-insaturadas.