Harmonização: Sal e vinho

Fotografia: Fabrice Demoulin
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Sou viciado em sal. Mais até do que deveria. Mas há sais e sais, e quando confesso o meu apreço desmedido por ele, refiro-me ao sal marinho integral, artesanal, ou melhor ainda, ao mar cristalizado na flor de sal. Desde que provei pela primeira vez, há muitos anos, no Brasil, um sal artesanal de Guérande quase molhado, mas ainda voluptuosamente crocante, cinza esverdeado pela presença de algas e krill, fiquei maravilhado para sempre pela diferença brutal entre aquela preciosidade francesa e o veneno branco industrial que costumávamos usar no dia-a-dia. Na minha vida nova em Portugal, era inevitável então que me apaixonasse pelo sal de Tavira, nossa única DOP, mas incontestavelmente entre os melhores sais do mundo. E os romanos já sabiam disso.


Não estranhamente, também venero os vinhos “salgados”. Estão sempre entre os meus favoritos, sobretudo os brancos e, da mesma forma, os rosés e tintos que carregam uma sensação vincada de sapidez. Mas e a harmonização do sal e dos pratos e alimentos marcados pela sensação gustativa salina com os vinhos, como funciona? Como trabalham os sommeliers quando o assunto fica salgado? Ostras naturalmente salgadas ficam sempre melhores com vinhos sápidos como o Muscadet e o Chablis? Um pouco de técnica ajudar-nos-á a responder estas questões. 

Sal no vinho

Em primeiro, é importante alertar que entre os quatro sabores fundamentais, ou cinco, se o umami (tema do nosso último artigo na Revista de Vinhos) entrar em questão, o salgado é uma microssensação no vinho quando comparada com a macrossensação de acidez, ou mesmo da macrossensação de doçura em rótulos da tipologia de sobremesa. E, segundo o incrível livro de Jamie Goode, “I Taste Red”, ao contrário do que era divulgado até hoje, o salgado é acusado nos nossos receptores de sabor, os botões gustativos, espalhados por toda a língua e palato, e mais concentrados nas papilas, pequenas protuberâncias na língua. Com exceção das papilas filiformes, que são desprovidas de botões gustativos, os outros tipos de papilas – fungiformes, foliáceas e circunvaladas – podem transmitir os impulsos gerados pelos estímulos de salgado através de uma cadeia de neurónios até o nosso cérebro. E essas papilas sensíveis ao salgado não estão confinadas às laterais dorsais, como é sempre divulgado num mapa seccionado da percepção dos sabores na língua, originário de um estudo do início do século passado na Alemanha. O salgado, assim como o doce, o ácido e o amargo, é percebido em toda a cavidade bucal, segundo Goode.


De um modo geral, o vinho contém entre dois e quatro gramas de substâncias de sabor salgado por litro. São estas principalmente os sais de ácidos minerais (cloretos, sulfatos, nitratos, fosfatos, iodetos, etc.), alguns de ácidos orgânicos (tartaratos, malatos, citratos, etc.) e por fim catiões minerais (potássio, ferro, cálcio, etc.). Estes sais fazem parte do extrato seco que, se incinerado, são as cinzas do vinho. Conferem assim estrutura ao vinho e uma sensação gustativa que os profissionais definem como sapidez. Numa escala, esta sapidez pode ser carente num vinho insípido, passando por uma agradável e estimulante sensação de mineralidade, que atua em sinergia com a macrossensação de frescura da acidez, até chegarmos a alguns vinhos realmente salgados.


E de onde vem o sal no vinho? Excluindo a antiga prática enológica de salga, actualmente proibida, os vinhos extraem o sal do “terroir” ou do “arroir”. Ao entrarem na planta através das raízes, os íons de sais podem nela acumular-se, transportados através do tecido condutor xilema, incluindo nas uvas. Solos particularmente ricos em sais, como os vulcânicos (Verdelho dos Açores, Sercial da Madeira, Assyrtiko de Santorini, Nerello Mascalese do Etna, Albillo Criollo das Canárias), calcários (Chablis, Champanhe, Arinto de Lisboa) e diatomáceos (a albariza de Jerez), transmitem uma grande sapidez aos vinhos. Outro fator crescente para a concentração de sais nos vinhos é a irrigação sistemática em regiões muito secas, acirrada pelo aquecimento global. Isso pode passar de uma virtude a um problema em algumas zonas de Austrália, Califórnia e África do Sul. Os vinhos da Baja no México às vezes soam tão salgados como a Tequila, e estudos apontam para a água empregada na irrigação como a mais provável responsável.
A geografia é também importante quando o sal vem soprado pelas brisas marinhas e deposita-se nas folhas e nas películas da uva. O “arroir” de vinhas muito próximas à costa presenteia-nos com vinhos que sabem a iodo, maresia e sal. Uma das minhas maiores paixões no mundo dos vinhos, Colares, é assim e tem gosto de um mergulho na praia da Adraga. La Clape e Muscadet em França, Vermentino da Liguria e da Sardegna, Albariño das Rías Baixas, Sauvignon de Cape Point da África do Sul, são outros entre muitos vinhos costeiros que nos transportam para a beira do mar.

Maciez versus dureza

Perceber que o vinho pode ser sápido, bem como a origem da sapidez, é muito importante para os termos da harmonização. Não somente com os pratos em que a percepção do sal é mais intensa, mas para qualquer casamento enogastronómico. A respeitada escola italiana de harmonização criou um método técnico-científico de grande valor para tratar o tema. O principal pilar desta escola é que todos os vinhos apresentam um equilíbrio entre os seus elementos de maciez - açúcares, álcoois e poliálcoois (a glicerina sobretudo) - e os seus elementos de dureza - ácidos, taninos e sais minerais. Se imaginarmos estes elementos de maciez e dureza colocados em dois pratos opostos de uma balança, teremos o equilíbrio gustativo do vinho. No caso dos vinhos brancos secos, sem açúcares residuais portanto, o equilíbrio é mais simples de ser atingido, pois tem-se apenas um confronto de álcool/glicerina do lado da maciez, contra acidez/sapidez do lado da dureza. No caso dos vinhos tintos secos, o equilíbrio é mais complexo, pois do lado da dureza temos um terceiro elemento a ser contrabalanceado pelo álcool/glicerina, os adstringentes taninos. Vinhos muito sápidos, dessa forma, ainda mais se igualmente ricos em acidez e taninos no caso dos tintos, tendem a equilibrarem-se para o lado da dureza na balança do equilíbrio gustativo. 


Vamos evocar aqui novamente um incrível Colares tinto que, além de ter os três elementos de dureza aguçados, ainda não oferece teores alcóolicos ou glicéricos altos do lado da maciez, antes pelo contrário. A sua balança penderá sempre para o lado da dureza, mesmo com décadas e décadas de envelhecimento, que poderiam pelo menos amaciar os taninos e baixar um pouco o prato da dureza na balança. Aqui fica claríssimo também que a dureza não é sinónimo de defeito e maciez de qualidade, ou vice-versa. Estes perfis de vinhos mais macios ou mais duros são perfeitos para os bons sommeliers trabalharem as suas harmonizações com eficiência.

Sal na comida

O modo pelo qual identificamos o sal na comida é o mesmo, ainda que mais facilmente do que a microssensação de sapidez no vinho. Como vimos, os botões gustativos das papilas situadas em toda a cavidade bucal e mesmo na laringe e na parte superior do esófago contêm as centenas de células receptoras de sabores. A sapidez é a sensação proporcionada pelo sabor básico “salgado”, oriundo da presença de sal ou sais nos alimentos ou preparações. O sal pode estar no interior do alimento, tal como nos enchidos em geral, ou nos queijos, como no saborosíssimo São Jorge dos Açores, e a sapidez será ainda mais percetível com a concentração de sabores através do seu afinamento. O bacalhau é outro clássico alimento em que o salgado é muito percetível e este sommelier em particular não gosta quando não o é.


Logicamente, além de ser endógeno, o sal também pode ser adicionado às mais diversas preparações e alimentos. O sal industrial refinado gera um efeito de sabor diferente de uma flor de sal de alta qualidade como a de Tavira, recolhida manualmente pelos marnotos há séculos na região. Além do cloreto de sódio do sal industrial, a flor de sal traz mais de 80 elementos minerais e resíduos de plantas e animais marinhos, conferindo maior complexidade e também umami às receitas em que é adicionada. Sem falar do ponto de vista salutar.
Para o método italiano de harmonização, a sapidez nos alimentos, ao lado da tendência ao amargor e da tendência ácida, deve ser entendida como uma sensação de dureza, podendo apresentar-se menos agressiva como numa sardinha grelhada ao natural, ou mais agressiva como num arenque em conserva. E que perfil de vinho colocamos no copo quando a sapidez dá as cartas? 

Linhas conflituantes de harmonização

Recentemente li uma entrevista com o Master of Wine Tim Hanni para a Forbes na qual declara que descobriu, com a sua colega Virginia Utermohlen da Divisão de Ciências da Nutrição da Universidade de Cornell, que o sal e a acidez na mesa - especialmente se combinados - suprimem o amargor dos vinhos e tornam-nos mais ricos, macios e deliciosos. Da mesma forma, a respeitada Wine & Spirit Education Trust concorda que o sal na comida atenua o lado da dureza do vinho, abrandando a perceção de adstringência dos taninos, de amargor e de acidez nos vinhos. De acordo com estas linhas de harmonização, se tivermos pratos salgados como ostras, podemos jogar com vinhos com o equilíbrio pendente para a dureza da sapidez ou acidez, tal como um Champagne bruto, ou um Muscadet cortante, ou um salgado Arinto dos Açores, pois o alimento deixará estes vinhos mais macios e, supostamente, mais equilibrados. Ou ainda, como exemplo, que um presunto curado de Barrancos deixaria um Bairrada tinto mais frutado, menos tânico e ácido.


Curiosamente, a também britânica Joanna Simon, referência mundial no assunto da harmonização, coloca justamente o contrário no seu livro Wine with Food. Segundo ela, o sal realça não somente os sabores da comida, mas também os taninos dos vinhos. Ou seja, a dureza no prato deixa os vinhos mais duros. Por isso cita elogiosamente o tão salgado queijo Stilton aconchegado com perfeição na doçura de um Porto Vintage maduro. 
Essa é a mesma leitura do método de harmonização da escola italiana. Se algum prato ou alimento se apresentar muito sápido (ou amargo ou ácido), o vinho a acompanhá-lo deve forçosamente atenuar esta sensação de dureza, contrapondo-a. Ou seja, se o vinho escolhido para um sápido bacalhau grelhado, por exemplo, tiver o seu “prato da balança do equilíbrio” mais pesado no lado da dureza, ou seja, dotado de muita acidez/sapidez ou mesmo de sensações fenólicas adstringentes, obteremos um reforço sinérgico desagradável do salgado do bacalhau e uma harmonização falha neste sentido. 


Nestes 25 anos como sommelier profissional, tenho testado muito estas correntes diferentes e por vezes opostas de harmonização. No caso da escolha da maciez ou da dureza no vinho para pratos ou alimentos salgados, fico com a visão italiana. Prefiro usar vinhos salgados com pratos com tendência ao doce ou gordura sólida (maciez na mesa) para amortecê-los, como um amiláceo arroz de lavagante com um Colares branco, por exemplo. E elejo vinhos macios para pratos salgados, como o bacalhau com um Encruzado gordinho, ou com um clássico Antão Vaz do Alentejo. A maciez a tamponar a dureza e vice-versa.


Mesmo tendo como base o método italiano, gosto às vezes de criar alguns contrastes, tomando riscos calculados, para expor uma característica de um vinho ou de um prato. Uma harmonização emocionante pode ser feita por acaso, por tentativas e erros, certamente. Mas com método acertamos mais pois compreendemos os fundamentos do êxito (ou do fracasso). Recordo uma vez que servi num evento ostras frescas com um salgado Assyrtiko grego, que esbanjava álcool suficiente para enxugar a suculência das ostras e trazer uma maciez necessária ao conjunto, mas o lado sápido do “terroir” vulcânico e do “arroir” da ilha de Santorini chocou com o salgado do mar das ostras e tivemos uma erupção de um vulcão marinho no palato. Outra harmonização nesta linha é a das azeitonas e anchovas tão salgadas com um Jerez Fino ou Manzanilla. Embora a balança deste vinho penda para o lado da maciez do álcool da fortificação, o seu inegável lado salgado do solo de albariza fica tão assertivo como um canto “gitano” no bairro de Triana em Sevilha, ao encontrar as palmas em contratempo dos tapas tão marcadamente salgados.