Harmonização: Sável e Vinho

Sangue, gordura e espinhas

Fotografia: Daniel Luciano
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Por vezes não temos a devida noção das preciosidades gastronómicas que Portugal reserva. Outrora amplamente difuso nos rios da costa ocidental da Europa, o sável ainda tem presença significativa na mesa e na natureza apenas em França e no nosso país. Parente do arenque e sardinha, é igualmente gordo e saboroso, e, por isso, agradece vinhos de carácter e acidez na harmonização.

 

 

A vida dos peixes migratórios é dificultada de todas as formas pela ação humana. Ainda mais a dos anádromos, como o sável ou o salmão, que deixam os mares na fase adulta e sobem pelos rios muitas vezes poluídos, com alterações significativas nos seus cursos de água por desassoreamentos e obstáculos como barragens. Fora a sobrepesca, sem gestão sustentável, na maior parte dos casos.


Em Portugal, a população do sável adulta está em declínio e concentra-se nas bacias hidrográficas do Lima, Minho, Vouga e, sobretudo, do Mondego. Em França, o “grande alose” ainda possui uma certa importância no sudoeste do país, no estuário do Gironde e os seus formadores Garonne e Dordogne; e coloniza alguns rios da Bretanha e da Normandia. No Loire há também uma população considerável. Este belo peixe desovava nos rios que desaguam na costa noroeste da África, no Mediterrâneo, em toda a costa ocidental europeia até à Noruega e, até meados do séc. XIX, era tão valorizado e pescado como o salmão nas ilhas britânicas, o outrora abundante “allis shad”. 


Em relação aos seus famosos parentes da família Clupeidae, - sardinhas e arenques -, o sável traz uma imensa vantagem para os gastrónomos, que é o seu tamanho mais generoso. As medidas máximas reportadas são de 69 cm para o macho, 83 cm para a fêmea e um peso de 4kg. O seu lindo corpo fusiforme, coberto por escamas prateadas caprichosamente adornadas com duas manchas pretas em cada lado, próximas ao opérculo, parece atulhado de músculos muito saborosos. 
De facto, o sável não nega os apanágios da família: a carne é de intenso sabor, riquíssima em ácidos gordos polinsaturados ómega-3, e muito bem irrigada, sangrando ao ser cortada. E tem espinhas... muitas mesmo! Um esforço mais do que compensador é livrar-se delas; e há algumas formas de preparo do sável que o fazem para o nosso regozijo. 


Para fins de harmonização, há outra característica do sável que é muito importante levar em conta: o alto teor de iodo. Aqui começamos a antever o perigo oferecido aos vinhos tintos desejosos de um casamento com alguma receita de Alosa alosa. 
Como vimos em outros artigos prévios de harmonização na Revista de Vinhos, o iodo é um oligoelemento fundamental para o bom funcionamento da nossa saúde hormonal, mas é um verdadeiro desastre a metalizar os polifenóis dos vinhos, nomeadamente os taninos dos vinhos tintos. E os peixes gordos como o sável, cuja composição média de gordura na carne gira em torno dos 12%, trazem esse complicador extra que é o “fishy odour” nas sensações finais, principalmente no confronto com vinhos mais ricos em ferro. 
Mas há aqui uma nova variável que pode agir como uma força contrária ao recrudescimento das sensações de dureza, de adstringência, amargor e de metalização dos taninos: o sangue do sável, empregado em algumas receitas. As proteínas do sangue reagem com os taninos do vinho e precipitam-nos, causando um efeito de tamponamento que amacia o vinho, o que daria uma hipótese a vinhos tintos com pratos de sável feitos com o sangue. 
Em resumo, a boa gordura sólida do sável convida a um vinho de imponente acidez e/ou sapidez e/ou efervescência para a harmonização. O sabor pronunciado pede um vinho vincado no carácter, sem hesitações. E o alto conteúdo de iodo e ómega-3 é proibitivo para tintos tânicos, salvo quando o sangue entrar no preparo.

Sável na mesa

A temporada do sável é extremamente curta. Os peixes adultos viajam por até 700km para agruparem perto ou nos estuários dos rios europeus em fevereiro e sobem os rios quando a temperatura está entre 9 a 12°C, em março e abril. Os machos chegam primeiro que as fêmeas na área de desova, com 3 a 9 anos de idade. As fêmeas de 4 a 10 anos chegam uma a duas semanas depois. Alimentam-se de zooplâncton, pequenos crustáceos e os sáveis maiores também de cardumes de peixes. Na chegada a coincidir com a primavera, estão com a carne firme e gordurosa, riquíssima de sabor.


Em França são muitas as receitas, como a “alose grillé” de Bordéus, onde o sável aberto é grelhado sobre sarmentos de videiras e perfumado com molho de ervas frescas primaveris. A escolha regional de um branco recai sobre um impactante Pessac-Léognan ou um Graves, dotados da acidez crocante da Sauvignon Blanc e da textura da Sémillon. Outro grande clássico da gastronomia francesa, mais especificamente do Loire, é o “alose à l’oseille”, uma espetacular estratégia para desfazer as espinhas do sável com a “oseille” ou azedinha e, ao mesmo tempo, obter um sabor excecional. O casamento clássico faz-se com um grande Sancerre branco, com a tensão, acidez e mineralidade a cortarem a gordura sólida do sável e o lado tónico e herbáceo a conversarem com a erva azedinha.

Em Portugal

Não encontrei muitas formas de preparo do sável por estas bandas, ainda que sejam absolutamente incríveis, valorizem os seus atributos de sabor e textura e minimizem o excesso de espinhas. As minhas favoritas são a fritura das finas postas, como se faz no Ribatejo, acompanhado da açorda das suas ovas, ou as conservas de sável, de escabeche ou fumado, no Minho e Douro, respetivamente. 
Provei o sável frito com a açorda de ovas em três restaurantes que executam extremante bem esta forma de preparo. Em Lisboa, no Sem Dúvida, onde o proprietário Sérgio Rodrigues marina as postas muito finas de sável de um dia para outro no vinagre e temperos, para desfazer as espinhas no meio ácido e enaltecer os aromas do peixe. Depois de passar na farinha, frita com perfeição e guarnece com uma açorda incrivelmente aromática, com ovas, coentros e alho em perfeita sintonia. Provei algumas opções de brancos com o equilíbrio voltado para acidez, inclusive toda a linha de Vinho Verde de um mesmo produtor e ano, de forma a isolar diversas variáveis e focar mais na casta. Numa sequência crescente de estrutura, o vinho mais encorpado - um Loureiro de vinhas velhas - foi o vencedor. Além da acidez para cortar a gordura sólida do sável e da crosta gerada na fritura por imersão, é necessário que o vinho apresente grande volume no olfato e nos aromas de boca, para não ser sobrepujado pelo parente do arenque e da sardinha. E os aromas herbais do Loureiro fecharam gloriosamente com a aromaticidade da açorda. Uma bela harmonia, Sem Dúvida!


No segundo restaurante que fui à procura do Sável, o belíssimo Sabor da Pedra, com uma soberba vista da albufeira de Castelo de Bode, provei um famoso espumante “blanc de noir” da Bairrada e um dos grandes rosés de Portugal, para arriscar algo de taninos com o sável, sem chegar a um tinto. O sável também estava impecável, como toda a oferta do casal Aristides e Ana, e o entrosamento com o espumante foi realmente brutal. Vamos relembrar que os três elementos a procurar nos vinhos para emulsionar a gordura sólida no prato são: a acidez, o gás carbónico e a sapidez mineral. O espumante de Baga derramava com generosidade esses três elementos sobre o sável e, em contrapartida, o peixe amortecia a “austeridade templária” de frescura e dureza do espumante. De Tomar de joelhos, com perdão pelo trocadilho. O rosé, infelizmente, teve a sua breve passagem em madeira expulsa do equilíbrio pelo iodo, sempre implacável contra qualquer forma de tanino.
Finalmente, debruçado no Tejo perto do espetacular castelo homónimo, o restaurante Almourol trouxe-nos uma rica porção de sável e enguias fritas, com uma açorda incrível de ovas. A minha escolha recaiu sobre um branco muito intenso da região, um lote de Fernão Pires com Arinto. Muito provavelmente, se fosse um Fernão Pires puro, careceria de acidez para fechar tão bem a harmonização e teríamos apenas a estrutura ideal para fazer frente ao volume de sabor do prato. Aliás, os Arintos são via de regra uma excelente escolha para o sável, pois unem carácter, frescura e sapidez mineral.


Para fechar a nossa saga de harmonização do sável, chegamos ao curiosíssimo debulho de sável como se faz em Vila Nova de Cerveira. Adoro estes pratos que nascem das sobras, das adversidades, ou mesmo das guerras. No caso desta “cabidela de peixe”, os restos “menos nobres” do sável, incluindo cabeça, rabo e deguladouro (posta junto à cabeça), além das ovas, fígado e logicamente o sangue, eram reservados e temperados com sal, salsa, louro, pimenta, cravinhos e Vinho Verde tinto pelas mulheres dos pescadores da vila, antes de saírem para vender os cortes centrais mais valorizados. Este debulho era depois despejado sobre um refogado de cebolas e pimentões e, após cozido, acrescido de arroz e um bocadinho de vinagre. Nos restaurantes locais, o vinho de eleição é um Vinhão tinto rústico e picante. O tipo de vinho que “limpa tudo”. A harmonização tende a ser bastante selvagem e, embora o Vinho Verde tinto cumpra bem este papel, há uma certa metalização dos seus taninos nas sensações finais. Como vimos antes, as proteínas do sangue são poderosas para mitigar taninos e reduzir a dureza dos vinhos. Talvez por isso o debulho receba razoavelmente bem os tintos, ao contrário do sável em outras preparações sem o sangue. Para os indulgentes que estão abertos a transgredirem uma harmonização regional, outros tintos que limpam e são mais dóceis nos taninos que o Vinhão podem obter um resultado mais bem-sucedido com o debulho do sável: um Bairrada tinto de entrada de gama menos poderoso, um Rufete da Beira Interior, um Ribera Sacra de Espanha, um cru de Beaujolais de França ou de Itália, os pulsantes Chianti Classico da Toscana, Barbera do Piemonte e Lambrusco da Emilia-Romagna. Já fico à espera da primavera do ano que vem. Portugal é assim, há peixe para cada estação.