Harmonização: Tacho e vinho

Fotografia: Jorge Matos
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Pratos de cozedura lenta são a “comfort food” por excelência. Demoram horas ou mesmo dias a ficarem prontos, apurarem o sabor e a textura. São também o que há de mais “wine friendly”, encaixando nos sabores e nas sensações táteis de adstringência ou alcoolicidade de um bom vinho tinto.

 

Sem sombra de dúvidas, uma das melhores prerrogativas da profissão de sommelier, que exige anos e anos de muito trabalho e sacrifícios, são as viagens pelo mundo do vinho. Nas muitas vezes e em diversos países que tive a imensa alegria de visitar produtores, confesso que ficava expectante de provar os seus vinhos também no contexto informal duma tasca ou restaurante tradicional, após cumprirmos os nossos compromissos profissionais de avaliar sem comida, com a máxima atenção e notas de prova devidamente apontadas. E se a região visitada oferecesse ainda um prato de tacho, de cozedura longa, aí sim, era a glória total!


Na meca do vinho, a Borgonha, visitei o célebre Château de la Tour, o único produtor a vinificar as uvas do Clos Vougeot intramuros, numa das duas construções históricas existentes na vinha - além do próprio Château du Clos Vougeot. Este lendário “grand cru” foi provavelmente estabelecido em 1336 e a família Labet é a sua maior proprietária: explora 6 hectares em 50,59 totais. Como importador destes vinhos no Brasil, fui recebido no château pelo impecável François Labet, que ainda tem tempo para ser o presidente do Bureau Interprofessionnel des Vins de Bourgogne (BIVB). Após uma prova inesquecível no castelo, com uma vista indelével do ‘clos’ e das vinhas velhas, saímos para jantar num charmoso restaurantezinho em Chambertin, o Chez Guy. O prato escolhido? Uma fundente "joue de boeuf" devidamente cozinhada durante horas com vinho tinto e legumes num tacho de ferro, até que a bochecha do boi se desmancha e deixa o colágenio ligar o molho deslumbrante. E Clos Vougeot a maridar, com os nobres e firmes taninos da Pinot Noir deste vinhedo sagrado a encaixarem naquela untuosidade e nos sabores celestiais. Comiam e bebiam bem as ordens monásticas que catalogaram o mosaico de “climats” da Borgonha na Idade Média!
Ainda no universo mágico da Pinot Noir, estive por duas vezes a explorar uma região única especializada na casta, o Ahr, na Alemanha. Pareceu-me sempre impossível que amadurecesse no paralelo 51 norte, pois no 47 norte da Borgonha já estamos a falar de um clima marginal, até agora ajudado pelo aquecimento global. Os romanos, mais uma vez eles, perceberam o potencial daquelas monumentais encostas de ardósia a elevarem-se do vale do rio e ali plantaram videiras na exposição sul. Ainda hoje as montanhas de ardósia, mas também de xisto, folhelho ou greywacke são cultivadas em patamares e socalcos com inclinações vertiginosas. Solos quentes, grande ângulo de exposição à luz do sol para maximizar a fotossíntese - e temos Pinots com 14,5º de álcool em pleno norte da Alemanha vinícola.


De visita ao produtor Meyer-Näkel, após uma bateria de tintos incrivelmente perfumados e minerais, fomos almoçar ao pé do “grand cru” de Pfarrwingert, no vilarejo de Dernau, onde a família está estabelecida e também gere um restaurante, o Hofgarten. Não hesitei em pedir um Wildschweinschinken mit Zwiebelconfit, jarrete de javali braseado, cozedura lenta em tacho, com cebolas confitadas e umas massinhas caseiras parecidas com “gnocchi” salteadas com aquele molho tão rico e saboroso. O álcool ajudou os taninos na tarefa de limpar com precisão teutónica toda a untuosidade do palato.


Nas diversas visitas que mudaram a minha direção, na vida e no vinho, ao genial Gianfranco Soldera em Montalcino, na Toscana, havia sempre mesa gloriosa, típica, transbordante em emoção e ensinamentos de “il grande maestro”. Certa vez, Gianfranco levou-nos a um borgo medieval liliputiano, no extremo sul da denominação de Montalcino, que parecia ter parado há séculos atrás. O único sinal de vida vinha de um talho, com uma cortina de gargantilha de contas a esconder uma salinha lateral, aberta para uma vista fenomenal da campanha local. Ali, ‘Signora’ Olga, velhinha mas cheia de energia, servia a melhor “scottiglia” da região, um prato de tacho que funde todos os animais caçados naqueles bosques, olivais e vinhedos, ou seja, javali, lebre, faisão, perdiz e outros mais do seu talho, em pedaços imersos na véspera em vinha d’alhos - ao vinho de Montalcino, claro! - com zimbro, louro, alecrim, cravinho, aipo, cenoura e cebola, retirados daquela mágica infusão no dia seguinte, alourados em azeite local, para finalmente reduzir o lume e voltar com a marinada ao tacho, cozinhando com tomate autóctone bem maduro até as carnes se desfazerem. Sentar ao lado de um dos melhores “vinaioli” da história, Gianfranco Soldera, entre caros amigos, numa tasquinha esquecida no tempo e no espaço, com vista cinematográfica, acompanhado por um Brunello di Montalcino Riserva 1985 do génio indomável, foi um dos grandes momentos da minha vida, nesta profissão abençoada. Neste mês de abril completo 50 anos, mais de metade dos quais como profissional do vinho. Fica aqui a minha gratidão aos leitores, amigos e colegas da indústria e espero de coração que possamos continuar a partilhar muitos copos e tachos pelo mundo fora!

 

Breve visão sobre métodos de cozedura no tacho

Primeiro, o tacho. Ao contrário das panelas, que são mais fundas do que largas, os recipientes de metal, barro ou ferro fundido e esmaltado que são mais largos do que altos, normalmente com tampas e asas, prestam-se a diversos preparos culinários, mas o que reconhecemos em Portugal como “pratos de tacho” são aqueles trabalhados com dois métodos de cozedura: de calor húmido ou método combinado - vamos a eles!


A cozedura em calor húmido pode ser realizada em três faixas de temperatura, com resultados bastante diferentes. Os alimentos podem ser delicadamente “poached” ou escalfados num líquido entre 71 e 82ºC, como no caso dos ovos, e o alimento preserva a forma pela ausência de bolhas no líquido, o qual, por sua vez, influencia o sabor daquele. Uma faixa acima temos o “simmering” em inglês, ou “mijoter” em francês, mas sem um equivalente claro em português, sendo o “fervilhar” o mais empregado. Neste universo de temperatura entre os 85º e os 96ºC são elaborados muitos pratos maravilhosos de tacho, com o calor transmitido aos alimentos através da convecção do líquido, o qual impacta bastante o sabor da carne nele cozinhados. O cassoulet francês, a fabada asturiana e as feijoadas brasileira e transmontana são assim elaborados.  Por fim, temos o “boiling” ou fervura propriamente dita, por volta dos 100ºC, a depender da adição de outros ingredientes e da pressão atmosférica do local, que alteram o ponto de ebulição da água. 
Sou um apaixonado pelos métodos de cozedura combinados e, sempre que posso, preparo pratos assim. O primeiro deles, o “braising” ou brasear, que nada a ver com assar sobre as brasas, envolve uma primeira fase em calor-seco com um pouco de alguma gordura a altas temperaturas para “selar” a carne e fomentar a saborosa reação de Maillard, através do processo de condução, e depois, uma segunda fase em calor-húmido com a peça do alimento em questão, normalmente inteira ou em pedaços maiores, imersa num líquido (água, vinho, caldo, etc.) até quase cobri-la, em lume brando, com o calor transferido por condução do líquido e convecção do ar, com o tacho fechado. Neste capítulo contem-se pratos de tacho como o “brasato al Barolo”, uma bela peça de alcatra ou da pá bovina (cappello del prete) marinada em vinho Barolo com especiarias, ervas e legumes aromáticos, depois alourada em azeite e manteiga em lume alto, para então receber novamente o vinho com os aromas, “fervilhada” por várias horas até ficar extremamente macia e saborosa.


O outro método composto difere mais pelo tamanho do corte da carne em pequenos bocados, o “stewing” ou estufado/guisado, mas são os mesmos princípios que governam o braseado. O goulash húngaro (gulyás) já é um clássico internacional, elaborado com pedaços de músculo, muita cebola e pimento seco moído (colorau ou paprica). Com um grande vinho húngaro, o Kopar, do emblemático produtor Attila Gere, lote de Cabernet Franc, Cabernet Sauvignon e Merlot da região de Villány, de imenso cariz especiado, perfeitamente dotado de álcool e taninos para encaixarem na medida à untuosidade do prato, tem-se uma harmonização linda como Buda de um lado do rio e Peste do outro.

Untuosidade e suculência

O segredo da fabulosa predisposição dos pratos de tacho para harmonizar com vinhos tintos está no somatório de untuosidade e suculência. Ao contrário de uma carne simplesmente grelhada, por exemplo, em que temos apenas a suculência para amortecer os taninos e o álcool dos tintos (ou vinhos laranjas), estes pratos nascidos através das técnicas de preparo acima discutidas, trazem como dote a este casamento um saborosíssimo líquido onde foram cozinhadas as carnes com vinho, caldo, especiarias, legumes, bulbos e ervas aromáticas, rico em gordura líquida quer pelo uso de azeite, manteiga, banha, etc., quer pela própria gordura e colagénio do protagonista, que se liquefaz com a longa cozedura e integra o molho.


Conforme discutimos anteriormente neste espaço da Revista de Vinhos, a gordura líquida provoca uma sensação tátil escorregadia de untuosidade, ao contrário da gordura sólida, cuja sensação tátil é de empastamento. Para limpar a pastosidade da gordura sólida, os sommeliers empregam a acidez, sapidez ou gás carbónico do vinho, que geram salivação e ajudam a emulsionar a gordura nesse estado. Todavia, para enxugar a untuosidade e suculência, os profissionais da harmonização não recorrem à acidez, para evitar uma redundância de líquidos na boca, mas sim à adstringência dos taninos e às propriedades hidrofílicas do álcool. 
Portanto, para os fumegantes pratos de tacho, segundo a técnica da harmonização, vamos trabalhar com vinhos tintos e outros vinhos fenólicos, como alguns brancos com curtimenta ou “orange wines” e rosés “a sério”, de preferência com passagem em madeira, todos com um bom teor alcoólico, de preferência acima dos 13º de volume alcoólico, dotados de riqueza e complexidade. 

A chanfana

O pequeno gigante da gastronomia chamado Portugal tem, para nossa imensa sorte, uma desconcertante miríade de pratos de tacho, em todas as suas vertentes regionais. Nos quatro anos que vivo aqui, já pude regozijar-me com muitos pitéus fervilhantes: tripas à moda do Porto, ensopado de borrego à pastora, cabidela de galo de campo, favas com entrecosto e chouriço, arroz de lebre, arroz de pombo bravo, lampreia à bordalesa, mão de vaca com grãos, alcatra da Ilha Terceira, vitela estufada, entre tantos outros.
A chanfana da Beira Litoral e serras limítrofes, contudo, é um caso à parte para ilustrar o que é um fabuloso tacho português. A começar pelo uso de caçoilas muito específicas, nas quais até o barro negro empregado nas olarias locais tem terroir! Prato de origem medieval, foi evoluindo até chegar à chanfana de cabra velha de hoje, com esta feição já amplamente referenciada desde o século XVIII e praticamente obrigatória na Páscoa e em todas as festas de casamento, batizados e outras na região.


Tecnicamente, a chanfana é cozinhada pelo método de calor húmido e passa por várias faixas de temperatura, com a caçoila fechada, num forno de lenha. Não é um braseado ou estufado porque não prevê a fase de calor-seco destes métodos compostos. A cabra velha em pedaços é disposta em camadas com cebolas, além de alhos, salsa, sal, pimenta, cravinho, colorau e um vinho tinto de qualidade. Após dormir na marinada, é levada ao forno forte, onde irá cozer em “simmering” até o forno esfriar, passadas umas 5 horas. O resultado é realmente espetacular, a carne desprende-se do osso com uma colher, desmancha-se na boca e explode num sabor complexo, almiscarado, telúrico do barro, especiado e herbal. O molho ecoa estes sabores, com uma textura aveludada, de rica untuosidade, a clamar por bons taninos e álcool.

Testes

A chanfana pede tintos encorpados, complexos, com bons taninos e teor alcoólico por volta de 14º, para fazer frente aos seus portentosos sabores e à rica untuosidade. Desnecessário dizer que os grandes vinhos tintos do Dão e da Bairrada, dentro do contexto regional, seriam escolhas acertadas para este tacho de insigne carácter. Para isso não é necessário consultar um sommelier! Escolhi então três vinhos da minha adega de perfis muito diferentes, igualmente excelentes nas suas propostas, muito bem pontuados na Revista de Vinhos, e do mesmo ano, para isolar esta variável - o Giz Cuvée de Noirs 2017, espumante incrível da Bairrada; o Bluníssima 2017, tinto de Lisboa que reúne potência e harmonia e, finalmente; um fascinante Sousão 2017 do Alentejo, da Herdade Grande, para subir a escala dos taninos e também da acidez.


Encomendei aquela que é a chanfana mais bem conseguida de Lisboa, do Sr. João da adorável tasquinha Imperial de Campo de Ourique, e fui à labuta. O grande espumante Giz, por ser originário de vinhas velhas, teve até força para não ser subjugado pela chanfana, mas sem os taninos ou o álcool para limpar aquela untuosidade e suculência do palato, não cumpriu o seu papel e injetava ainda mais sucos na boca. Tive que beber a garrafa deste incrível espumante depois do jantar, com a desculpa de “ajudar à minha digestão”… O Sousão da Herdade Grande, um dos melhores vinhos desta casta no país, infelizmente não teve a sua penetrante acidez aconchegada por elementos de doçura e gordura sólida do lado da chanfana, e esta aresta ficou mal trabalhada no casamento. Os seus sabores sanguíneos/ferruginosos que tão bem ligam com a gordinha lampreia, também ficaram fora do tom com os sabores almiscarados da cabra velha.
A grande harmonia deu-se, desta vez, com um tinto estupendo de Lisboa, que está a colocar Arruda do Vinho novamente no mapa, o Bluníssima 2017. Tudo na medida certa: complexidade, perfil telúrico, “savoury” de condimentos, taninos ligeiramente adstringentes para o prato, álcool na casa dos 14,5º. Um casamento que inspira e alegra quem está ao redor.