Harmonização: Tripas e Vinhos

Fotografia: Ricardo Garrido
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

As tripas são o que bem define um “gosto adquirido”. Não apenas pela associação que fazemos à sua prévia função, mas pelo odor que espalha pela casa e, como se não bastasse, pela sua textura estranha, levemente gelatinosa ou borrachuda. No entanto, quem se esforça para romper essa barreira e apreciá-las, muito provavelmente apaixonar-se-á - e o vinho certo pode levar esse amor ao (bom) vício.

 

 

Quando estava a fazer a minha formação em vinho e cozinha na Toscana, nos idos de 1997, fiquei totalmente seduzido pela cidade de Florença, com toda a sua coleção de obras de arte a céu aberto e no interior das mais fabulosas igrejas do mundo, dos museus de arrancar suspiros ou lágrimas, com o ritmo dos locais no meio de uma alucinante avalanche diária de turistas, os mercados de comida, os quais passei a conhecer banca por banca, as deliciosas lojinhas gastronómicas “alimentari”, os seus restaurantes, tascas ou “trattorie” e mesmo as “buche”, verdadeiros buracos ou bocas na parede de casas centenárias que oferecem “panini” recheados com todas as maravilhas que os toscanos sabem preparar como ninguém em Itália.


Mapeei e partilhei com muitos amigos brasileiros, na altura, desde onde comer o mais “strepitoso gelato”, o melhor “ragù” de javali, onde comprar o melhor azeite cru e explosivo da região ou a melhor seleção de vinhos antigos toscanos. Para mim era mais do que um prazer explorar a beleza excelsa daquela cidade que tanto ensinou ao mundo, através do Renascimento, sobre as artes, a filosofia, a ciência e mesmo a gastronomia. Como as minhas aulas de cozinha eram da parte da tarde, tomava o comboio mais cedo de onde vivia com a minha esposa, em Montecatini Terme, para perder-me nas vielas da cidade, protagonizar um almoço pantagruélico, depois aprender a escolher, amarrar e assar uma “arista di maiale” ou lombo de porco à perfeição e voltar para casa ao final da tarde com o corpo e o espírito alimentados, preparado para mais uma fabulosa aula de vinhos na Associazione Italiana Sommeliers, à noite.


O meu sogro, um chefe de cozinha toscano cuja tradição em restaurantes na região vai até ao ano de 1890, ao ver o meu entusiasmo transbordante por Florença, e sempre dotado daquele incrível senso de ironia que é peculiar e atávico nos habitantes da região, não tardou a colocar-me no devido lugar. “Quer ser um verdadeiro fiorentino?”, indagou-me na altura. “Então tem que provar a amar o lampredotto”, disse-me, categórico. Que revés nas minhas intenções de fazer parte de corpo e alma daquela cidade fascinante! Já sabia o que me esperava, pois todos os dias no caminho da Scuola di Arte Culinaria Cordon Bleu para a estação de Santa Maria Novella passava pela medieval pracinha De Cimatori, ao lado de onde nasceu, em 1265, Dante Alighieri, e sentia um aroma penetrante no ar que estava mais para o Purgatório do que para o Paraíso Terrestre.


Os carrinhos de vendedores de tripa e lampredotto são uma marca registada da cidade da flor-de-lis. Estão sempre nos mesmos sítios, passados de geração em geração, desde a época em que a pobreza da cidade obrigava à colocação de caldeiras sobre lenha na rua para cozinhar as entranhas dos animais. Hoje os “fiorentini” e alguns intrépidos “foodies” de diversos países fazem fila para provar o abomaso, quarta câmara do estômago dos ruminantes (também conhecida como coagulador ou coalheira), para além das “trippe”, estas oriundas sobretudo da primeira cavidade ou rúmen, e da segunda cavidade ou retículo. Pois bem, o abomaso tem mesmo um aspeto abominável e o seu nome em “fiorentino”, lampredotto, faz referência ao aspeto de uma boca de lampreia. Convidativo, não?


Munido da minha inabalável coragem de provar tudo, da defesa da honra de um sommelier aberto a todas as experiências, do respeito a Leonardo, Rafael, Miguel Ângelo e, principalmente, ao meu sogro desafiador, entrei na fila do “trippaio” Palmiro Pinzauti numa fresca tarde de outono. Reparei que entre os enfileirados estavam pedreiros e pintores de uma obra vizinha, imundos, e também uma senhora chiquérrima, com casaco de pele e saltos altos. Todos iguais no amor pelo lampredotto. “Isso é ser um verdadeiro fiorentino”, pensei com orgulho. Ao chegar à minha vez, assisti como o Sr. Miro cortava com grande habilidade e paixão aquele abomaso cozido com aipo, ervas e especiarias, depois mergulhava o pão no “brodo” da cozedura dele e condimentava as fatias de lampredotto com pimenta preta e “salsa verde” à base de salsa, alho e anchovas. Se fechar os olhos ainda sinto o sabor e a textura daquela explosiva primeira dentada. E também da harmonização com um Chianti simples, mas cheio de sabor, vendido a copo no velho quiosque, com a fruta picante da Sangiovese e a sua acidez e sapidez a cortar o lado mais gordo do abomaso em relação às outras três cavidades estomacais dos bovinos. Fui caminhando pelas ruazinhas da “agora plenamente minha” Florença em direção à estação, com o meu segundo “panino di lampredotto”, prática que se estendeu até ter que voltar para o Brasil.

Todos mortos no Porto

Muito curiosamente, descobri na minha primeira viagem a trabalho a Portugal, há exatos 20 anos, que na Invicta amavam tanto as tripas que os seus habitantes recebiam esta simpática alcunha de tripeiros. Era altura da doença das vacas loucas na Europa. Quando recebi o convite para jantar num restaurante clássico do Porto, cuja especialidade eram a famosas tripas, fiquei entre acatar a sugestão do meu médico no Brasil de evitar totalmente qualquer carne bovina na viagem, principalmente as entranhas, ou de respeitar a deontologia profissional de não perder a oportunidade de provar absolutamente de tudo, independemente das circunstâncias! Ao chegar ao referido e muito elegante restaurante, fui imediatamente - e discretamente – ter com o maître d'hôtel. Ao abordar o circunspeto senhor e explicar a situação, tive a coragem de finalmente postular a pergunta - “Não há mesmo nenhum risco em comer as tripas à moda do Porto aqui?”, para a qual recebi a imediata resposta: “Ora, pois, se houvesse algum problema, estávamos todos mortos no Porto!”.


Com a estatística a meu favor, comi não somente um, mas alguns pratos daquela preparação fumegante e fascinante. Se fosse morrer, morreria muito feliz naquele dia! A combinação das primeiras três cavidades estomacais, sobretudo, com as pregas, folhas e favos, a gelatina da mão de vitela, os enchidos e fumados, a entremeada, a galinha do campo e um bom feijão manteiga, é mesmo imbatível. Uma bomba de sabor e de texturas – cremosa, gelatinosa, suculenta, crocante, pegajosa -, na qual o somatório é melhor do que as partes.


Há pratos que, além de fascinantes, são totalmente condicionantes no que vamos escolher para acompanhar. Adoro arenque em conserva e não consigo comê-los sem uma boa cerveja para amortecer a acidez penetrante e limpar o gosto de óleo de peixe, sem metalizar. Comer sushi sem sakê ou Riesling? Nem pensar… E, da mesma forma, dá para imaginar acompanhar umas espetaculares tripas à moda do Porto com água ou cerveja? Essa é sem dúvida uma das mais “wine-friendly” preparações que se possa imaginar - e sem grandes riscos de erro. Naquela noite da minha iniciação na “fraternidade dos que já não conseguem viver sem tripas à moda do Porto”, bebemos os grandes vinhos do Douro do produtor anfitrião. A minha escolha recaiu sobre um tinto com 10 anos de guarda, com a fruta já domada e os taninos no grau certo de polimerização para limpar a untuosidade do prato, bem como uma acidez ainda viva para confrontar os enchidos e nunca deixar o palato cansado. E que outros vinhos entrariam nesse jogo na cidade do Dragão?

Características para harmonização

 

Falando de tripas de um modo geral, para fins de harmonização, podemos dizer que, apesar dos aromas invasivos ao prepará-las, na boca, o aroma/sabores essenciais chegam a ser (prometo-o aos debutantes na matéria) delicados. Há uma certa “tendência para o doce”, que sentimos também em glândulas como o timo, mas pouco amargor como sentimos no fígado. As tripas são muito mais uma questão de textura e, sendo subtis em termos aromáticos, a nossa atenção para a eleição do vinho perfeito deve virar-se para o molho ou o preparo que as envolve. Nessa perspectiva, vamos aos parâmetros para uma boa harmonia enogastronómica!


Primeiro, dada a textura “chewy” e, por vezes, gelatinosa, das nossas protagonistas, somada à leve tendência para o doce, pedem-se vinhos que tenham acidez vibrante. Contudo, se o preparo leva elementos muito ácidos, como nalguma salada de tripa condimentada com vinagre e limão, como também se faz na Toscana, podemos eleger um branco mais gordinho e mediterrânico para amortecer esta aresta de dureza no prato.


Em segundo lugar, e muito importante, um ajuste de volume. Os meus “panini di lampredotto”, condimentados com uma típica “salsa verde”, falavam no mesmo tom dos Chianti que os acompanhavam, ou então de um Rosso di Montalcino que testei certa vez de uma “buca” ao lado do trippaio. Muito provavelmente, a versão de grande estrutura destes vinhos, um Chianti Gran Selezione ou um Brunello di Montalcino Riserva, seriam poderosos demais para o fim, e os taninos seriam realçados fora do equilíbrio pelo umami das anchovas.


Um prato fabulosamente rico como as tripas à moda do Porto, com a gelatina acrescida pela mão de vitela, a untuosidade da banha, azeite e da gordura derretida dos enchidos e carnes, a cremosidade e tendência para o doce potenciada pelos feijões, é muito mais do que um convite a um grande vinho tinto, é uma “intimação judicial”! Pedem-se vinhos de complexidade similar, advinda de uma boa guarda, com carácter especiado e terroso e uma excelente estrutura para fazer frente ao prato, com taninos ainda firmes para combater a untuosidade e suculência da preparação, e uma acidez viva para os enchidos, equilibrando a tendência para o doce do conjunto. Por uma questão de respeito à harmonia regional, podemos privilegiar sempre os grandes tintos de mesa do Douro, ainda que, do que ponto de vista técnico, vinhos do Dão ou de outras regiões que preencham os requisitos acima também farão a nossa alegria.

Testes de harmonização “ad hoc” 

Desta vez, devido ao confinamento total, não tive a “desculpa do teste para a Revista de Vinhos”, para ir comer mais uma vez umas tripas à moda do Porto num dos restaurantes favoritos na preparação desta receita sagrada, o tradicional Líder de Manuel Moura. Aliás, tudo o que se come ali é impecável na confeção, respeito às tradições e escolha apurada dos ingredientes: a lampreia à Bordalesa é fora-de-série e a açorda de gambas e lavagante, finalizada na mesa, certamente a melhor que já comi. Fora do circuito turístico, quem vai ao Líder sabe porque vai e é recompensado pela comida, pela atmosfera clássica e pelas conversas com o Sr. Manuel.


O teste do mês veio então das visitas pré-pandemia. Num almoço há quatro anos com um dos meus produtores preferidos do Douro, tanto em termos vínicos como pessoais, Domingos Alves de Sousa, fomos comer umas tripinhas na meca do seu preparo. A parede do fundo do Líder ostentava uma insígnia da Confraria das Tripas à Moda do Porto, para não deixar dúvidas que aquele é o sítio certo para tais indulgências. O presidente da confraria, o Sr. Manuel, veio à mesa servir e contar a história do prato, enquanto o outro “gentleman”, o Sr. Domingos, servia-nos do seu Quinta da Gaivosa tinto, para mim a referência do que é um Douro clássico, elegante, que envelhece majestosamente. Para além de ser um infalível vinho gastronómico, quer pela acidez das vinhas do Baixo Corgo, taninos finíssimos e madeira nobre, fruto de uma enologia impecável; quer pelo seu carácter mineral, silvestre e especiado. Neste dia inesquecível, harmonizaram-se sublimemente as tripas e o Gaivosa, e a paixão, simpatia, conhecimento e perfeita execução do prato e do vinho de dois grandes senhores das coisas boas da vida.