Harmonização: Vinho e churrasco

Fotografia: Fotos D.R.
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

A altura do ano é propícia para reunirmos a família e amigos do lado de fora, ao redor do fogo, para grelhar as mais diversas delícias do mar, da terra e do ar, enaltecer os seus sabores primários e textura, através da forma mais primordial de cozinhar. Como escolher os vinhos para estes momentos de imensa descontração e simplicidade, baseados na técnica de harmonização enogastronómica?


O churrasco é mais do que um método de preparação de carnes sobre a chama direta da lenha ou sobre o carvão, visando tornar comestível, conservar ou, quem sabe, apurar o sabor de algum vegetal ou animal, que o Homo erectus inaugurou há aproximadamente 1,5 milhões de anos, no Paleolítico Inferior. O termo, cuja etimologia remete ao “sukarra” dos bascos - “su”, fogo e “kar”, chama, e daí o “socarrar” ou “chamuscar” dos espanhóis -, também define os alimentos preparados dessa maneira tão essencial, que é também um evento social para partilhar uma panóplia de carnes e peixes, enchidos, legumes, queijos e o que a criatividade permitir, com tempo, descontração e bastante apetite.

No meu Brasil é quase uma religião. Não passava um fim de semana sem comer, fazer ou, no mínimo, ser convidado para alguma churrascada. Ao contrário de Portugal, mais associado aos meses estivais, lá em baixo todo o dia é dia de arder o carvão. Vivi muitos anos numa linda cidade na região Sul do Brasil chamada Blumenau, em Santa Catarina, a qual recendia intensamente a churrasco todos os sábados e domingos, tal como Lisboa cheira a sardinha grelhada nas festas dos Santos Populares. A predisposição atávica de caçadores das cavernas torna-nos frágeis nesses momentos, é inútil resistir...

Na minha pátria verde e amarela, o churrasco foi provavelmente instituído no séc. XVIII na região geográfica dos pampas, abrangendo a metade meridional do estado do Rio Grande do Sul, e também todo o Uruguai e nordeste da Argentina, por colonizadores espanhóis jesuítas nos povoados que criaram para catequizar os índios e evitar a expansão portuguesa para sul - os Sete Povos das Missões. O crescente rebanho de gado criado solto entre as aldeias, após a destruíção da missão nos meados daquele século, passou a ser a principal fonte de proteína para nutrir os colonos que ali se instauraram, tendo-se disseminado o costume de assar as peças em espetos enterrados no chão, ao redor da brasa. Ainda hoje, o ritual do churrasco, com todos os aportes culturais e de ingredientes que sofreu ao longo dos séculos, continua a identificar e distinguir as tradições dos gaúchos, gentílico para quem nasceu no Rio Grande do Sul, bem como o termo usado no Brasil e países platinos vizinhos para caraterizar as pessoas ligadas às atividades pecuárias no bioma dos pampas. É fácil imaginar a gigantesca rivalidade entre o nosso churrasco e o “asado” deles, normalmente executado nos suportes metálicos denominados de “parrillas”, rixa que faz ferver o sangue dos adeptos, tal como quando o assunto é quem joga melhor futebol.

Nenhuma outra comida representa melhor os Estados Unidos que o “barbecue”, cujas origens são ainda mais remotas que no Brasil. A origem do termo provém de barbacoa, usado pelos indígenas pré-colombianos taínos para definir uma grelha de madeira que usavam para assar lentamente sobre brasas diversos cortes de animais, para que não ardessem juntamente com a carne. Habitavam o Caribe e, provavelmente, esse antenato do churrasco americano foi aprendido nas ilhas de Hispaniola. Há registos de exploradores espanhóis de 1526 sobre a barbacoa, segundo o livro Planet Barbecue de Steven Raichlen. Ainda hoje os americanos, em contraste com os brasileiros e argentinos, gostam de assar as carnes em lume baixo e bastante temperadas com os ingredientes perfumados do Caribe, entre outros.

A primeira vez que entrei num pequeno restaurante de churrasco em Portugal, quando ainda nem aqui vivia, surpreendi-me quando vi que a única carne servida era de frango. Absolutamente delicioso, picante e suculento, diga-se de passagem, mas aprendi que churrasco pode significar apenas um método de assar o frango no carvão, com um toque de piripiri. Atualmente, o churrasco completo de estilo brasileiro já está por todo lado e por vezes sou convidado, também em Portugal, para usufruir desta cultura que nasceu quando o homem dominou o fogo. Quando isso acontece, fico a pensar que vinho apetecerá a todos e traçará uma mediana com as diversas delícias que saem da “barbacoa”?


O efeito do fogo e do carvão

O primeiro churrasco foi alegadamente acidental, quando um animal que ardeu num incêndio florestal ou nas lavas de um vulcão soube tão bem a um proto-gourmet milénios atrás, e assim começou a nossa paixão pelas carnes afetadas pela reação de Maillard. Em 1912, o cientista francês descreveu esta complexa interação entre açúcares redutores (como a glicose, frutose e galactose) e aminoácidos, acelerada com o aumento da temperatura. Uma cascata de reações químicas não-enzimáticas, ainda hoje estudadas, leva à formação daquela irresistível crosta pigmentada por polímeros acastanhados denominados melanoidinas, e uma série de compostos aromáticos adocicados, tostados, que evocam o caramelo, a baunilha, o café e o tabaco, bem como a típica nota de “crosta de pão” da 6-Acetil-2,3,4,5-tetra-hidropiridina. Paralelamente, a caramelização também concorre para enaltecer a coloração aliciante e os aromas adocicados, através da pirólise não-enzimática dos açúcares, com notas amanteigadas e de “butterscotch” do diacetil. 

Não coincidentemente, muitos dos compostos aromáticos do processo de tosta das aduelas de carvalho para confeção de barricas, as quais temperam os vinhos que nelas estagiam, estão em extrema sintonia com os alimentos assados na brasa. O sabor fumado do guaiacol e o aroma fumado do seringol; o café, as amêndoas tostadas e o caramelo do furfural e do hidroximetilfurfural; o açúcar queimado do maltol e do isomaltol; o “maple syrup”, as nozes caramelizadas e as sementes de feno-grego tostadas do sotolon; a baunilha e a “tonka” da vanilina e da cumarina e o cravo do eugenol, para citar apenas alguns. Apesar do casamento molecular entre o carvalho e o churrasco, muitas outras variáveis entram em cena e podem por vezes atrapalhar este romance.

Uma das variáveis é o incremento do amargor e do umami, sabores fundamentais dos alimentos que pesam na balança do equilíbrio para o lado da dureza e, por isso, requerem componentes de maciez no vinho para serem mitigados. Grelhar sobre o carvão significa não somente receber a intensa radiação de calor do carbono puro em combustão, mas também outros subprodutos aromáticos - para além dos pingos que caem sobre a brasa com gorduras, açúcares, proteínas e outros compostos, os quais retornarão aos grelhados sob a forma de fumo aromático. Um destes elementos é o creosoto, com o seu típico amargor. 

Vinhos tintos que estagiam em carvalho possuem normalmente uma estrutura tânica mais firme para acomodar este procedimento enológico. Sem falar dos próprios taninos elágicos da madeira, absorvidos no amadurecimento. Ou seja, temos que encontrar um ponto na curva em que os aromas dos vinhos com carvalho casem com os aromas do churrasco, mas sem que os taninos choquem com o amargor e não sejam postos fora do equilíbrio pelo umami que resulta deste método de confeção. 


A suculência

Um dos apanágios mais venerados pelos amantes de um bom churrasco é a suculência dos alimentos, particularmente das carnes. A suculência é uma sensação tátil percebida em toda a cavidade oral, conferida por líquidos do próprio alimento/preparação, ou induzida pela mastigação, com a consequente injeção de saliva. Um exemplo desta suculência induzida pode ser obtido ao mastigar um pedaço de queijo parmigiano ou manchego: a boca enche-se imediatamente de sucos e pede um vinho para limpar esse rio salivar. O melhor exemplo da suculência intrínseca é-nos dado perante um belo e alto corte de carne bovina grelhado no carvão, logicamente malpassado. Os sommeliers normalmente empregam dois elementos nos vinhos para atacar a suculência e, ao mesmo tempo, melhorar os seus atributos. O primeiro deles é o álcool, com as suas propriedades hidrofílicas. O etanol é infinitamente solúvel em água. Isso acontece porque o grupo OH (polar) do C2H5OH liga o hidrogénio às moléculas de água. Vinhos mais alcoólicos são desidratantes e ajudam-nos a confrontar com a suculência - um Amarone italiano com 16% de volume casa espetacularmente com lascas de parmigiano maduro. 

A outra arma dos “somms” na contraposição da suculência são os taninos. Com a sua capacidade de ligação às proteínas na formação de complexos que se precipitam, os taninos dos vinhos, ao entrarem em contacto com as glicoproteínas responsáveis pela lubrificação do nosso palato, as mucinas, anulam o efeito deslizante ou gelificante. Imediatamente experimentamos a sensação tátil da adstringência. Essa secura ou rugosidade provocada pelos taninos ajuda-nos a enxaguar a suculência; como os sucos das carnes possuem proteínas estas, por sua vez, agem no sentido contrário, ao amainar os efeitos adstringentes dos polifenóis do vinho. 

Aqui temos novamente que jogar com a sensibilidade e sabedoria, pois no caso do churrasco e dependendo do nível de amargor dos ingredientes e, principalmente, da crosta obtida, será preferível confrontarmos a suculência, não através dos taninos - e assim evitar o realce sinérgico da sensação tátil de adstringência com o sabor fundamental amargo -, mas através do álcool. Não é a toa que um Malbec argentino de gama média parece tão insubstituível com “asados”. Vinhos alcoólicos, bem trabalhados em carvalho, com taninos muito macios, doces e sedosos. A mesma explicação cabe ao Zinfandel californiano com o barbecue norte-americano, ainda mais com a fruta tão madura e exuberante a casar com marinadas agridoces.


Tantos sabores, vinhos polivalentes

Chegou o momento de sair, acender o grelhador e esperar pelos amigos num belo dia de verão. Muito embora para cada carne, de acordo com a raça, alimentação ou maturação do animal, bem como todas as variáveis envolvidas na sua execução, haja um vinho específico para obter a harmonia perfeita, na prática é muito pouco provável que alguém leve um churrasco tão exasperadamente a sério. Podemos, todavia, separar a sucessão de alimentos por ordem de estrutura e sabor e pautar as nossas escolhas por critérios relevantes para minimizar o risco de casamentos desastrosos e, finalmente, escolher vinhos mais flexíveis e polivalentes, os “all-rounder wines”. 

Uma simples reorganização da ordem de serviço, por exemplo, resulta imensamente na eficácia da escolha dos vinhos. Se começamos com uns lagartos de porco preto que, pela sua estrutura de sabor e teor de gordura entremeada na carne ficam magníficos com um Bairrada tinto que ostente a gloriosa acidez - mas cuidado para não escolher um tânico demais -, não vamos deixar o carapau grelhado para depois. Seria um contrasenso voltar para um Arinto de Lisboa salgado após o Bairrada tinto. Dentro da mesma lógica de respeito a um crescendo em estrutura, um frango marinado com iogurte e garam masala à moda indiana, excelente com um perfumado Fernão Pires do Tejo, deveria ser apreciado antes de um “prime rib” de Angus maturado com um belo exemplar tinto do Douro - e este antes de uma assertiva costela bovina assada por várias horas, a soltar do osso com uma colher, ao lado de um profundo alentejano assente em Alicante Bouschet. 

Ao definirmos estes grupos de estrutura e alguns vinhos polivalentes para cada, o sucesso do churrasco e da harmonização está garantido. Se começarmos com espetos de vegetais de estilo mediterrânico, queijo tipo halloumi, ostras e vieiras na meia concha, por exemplo, podemos abrir com um belo champagne ou espumante da Bairrada. Seguimos com sardinhas ou carapau com um branco mais assertivo e mineral, como um Verdelho dos Açores, um Arinto de Lisboa ou um grande Alvarinho de Monção e Melgaço. Em transição para os tintos, não seria nenhuma ofensa grelhar umas postas de salmão perfumadas com aneto fresco e camarões na casca com um toque de limão, apoiados por um subtil rosé da Provença ou similar. As linguiças brasileiras ou salsichas, o piano de porco pré-assado a baixa temperatura e finalizado no carvão, os seus secretos e lagartinhos e o frango com um toque picante, ficam perfeitos com tintos de média estrutura, um toque de carvalho, boa presença de fruta e álcool, além daquela acidez que emulsiona a gordura sólida. Este perfil de vinho pode ser facilmente encontrado em Pinot Noirs do Novo Mundo, na Bairrada, no Dão, nos vinhos do Douro de média gama e nos alentejanos de sub-regiões como Portalegre e Vidigueira. Dadas as temperaturas mais altas de verão e a proximidade do fogo, este sommelier recomenda atenção ao serviço dos vinhos mais arrefecidos, por volta dos 15-16ºC.

Por fim, agrupamos os bovinos, maturados ou não, as costeletas de borrego, caças e outros sabores mais assertivos e abrimos os grandes tintos de estrutura para o apoteótico “grand finale”. Vinhos que aliem a presença dos aportes olfativos do carvalho com taninos - nunca adstringentes demais -, a evitar o choque com a tendência para o amargor da divinal crosta que só o carvão sabe engendrar. Vinhos polivalentes, que nunca dececionam, são os grandes alentejanos, tintos da Península de Setúbal, do Tejo, do Douro, da Rioja e Ribera del Duero, Rhône sul e Languedoc, vinhos da Toscânia, os Malbecs da Argentina, Zinfandel norte-americano, entre tantos outros. 

O carvão nunca esteve tão na moda, inclusive na alta gastronomia. Nesses tempos difíceis, é um caminho de volta às formas elementares, aos sabores prístinos, aos valores essenciais da vida, ao lado da família, amigos e de alguns bons copos de vinho.