Harmonização: Vinhos e pinhões

Fotografia: Fabrice Demoulin
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Um dos mais preciosos ingredientes - ainda que dos menos devidamente aclamados em Portugal - da saudável e deliciosa dieta mediterrânica, património imaterial da humanidade pela Unesco, são as sementinhas alvas e alongadas do pinheiro-manso Pinus pinea. Verdadeiro pecado, já que somos dos maiores e melhores produtores do mundo de pinhões. Eles resultam muito bem nas receitas de sal e doce do Mediterrâneo e alhures e adoram vinhos que conversam com os seus sabores amadeirados e florestais.

 

Quando estudava vinhos e cozinha na Toscânia, nos idos de 1997 a 2000, um dos programas favoritos de fim de semana com a minha esposa era descer de carro até a região vizinha da Ligúria, para deleitarmo-nos com as suas paisagens vertiginosas de mar e montanha, de charmosos vilarejos debruçados entre rocha, “macchia”, olivais e vinhedos em frente ao dégradé estonteante do verde-esmeralda ao azul profundo do Mar Lígure. E, certamente, o atrativo perfume da cozinha local já se materializava na minha mente mesmo quando ainda estávamos a caminho daquele paraíso mediterrânico. Com suas “focaccie” irresistíveis, anchovas suculentas em conserva, os peixes incríveis cozidos à perfeição com um toque do refinadíssimo azeite local e umas azeitoninhas “taggiasche” ao lado, tudo era uma festa de sabores puros, integrados na paisagem. Mas se um prato nos iluminava realmente a alma era o “pesto” local servido com uma massinha mais achatada que os esparguetes, batizados de “trenette”. 
O verdadeiro pesto é uma amálgama perfeito de manjericão de folha larga “genovese”, pinhões - nunca nozes ou outras frutas de casca rija -, alho, azeite delicado como o lígure, Parmigiano-Reggiano maduro e queijo pecorino, tudo moído manualmente num almofariz de mármore com a ajuda de sal marinho grosso. Essa bomba verde que rescende às colinas defronte ao Mediterrâneo tem nos “pinoli” o seu esteio de textura e sabores resinosos e de bosque local, salpicado de pinheiros-mansos carregados de auspiciosas pinhas e pinhões. Bebe-se na região um Pigato da Riviera Ligure di Ponente, um branco imponente que se associa perfeitamente ao sabores do manjericão e do pinhão, com acenos herbais, de musgo e bosque, de resina de pinho dos aromas e final de boca amendoado. Simplesmente a perfeição!


Do outro lado da península italiana, de frente para o Adriático, os pinhões também são fundamentais noutra das minhas receitas favoritas, as sardinhas fritas em conserva, ou “sarde in saor”, para os venezianos. Para contrastar com o acre do vinagre, nada como a doçura dos pinhões e da uvas-passas nesta magnífica maneira de preservar as suas (e nossas) amadas sardinhas. O casamento clássico com este prato, com um vértice protuberante da dureza da acidez, é um branco rico e gordo dos solos vulcânicos da região demarcada de Soave, que também traz algumas impressões resinosas e amendoadas no seu perfil aromático.


Entre centenas de outras receitas que dão à semente mediterrânica o seu devido valor em Itália, cito aqui também uma experiência que me encanta no mundo dos doces, ou melhor, nos quase-doces. O “castagnaccio” é uma torta de farinha de castanha, azeite extra-virgem, pinhões inteiros e uvas-passas, aromatizado com alecrim fresco. Uma sobremesa que é mais “savoury” do que doce, idolatrada pelos toscanos e outros vizinhos dos Apeninos. Uma fatia de “castagnaccio” com o tradicional vinho de uvas passificadas da região, o Vin Santo, é uma experiência de harmonização perfeita na sincronia dos sabores de frutas passas e castanhas, sementes e ervas do bosque mediterrânico.


Em Espanha, destino de uma boa parte dos maravilhosos pinhões portugueses, o vasto receituário local de sal e doce apresenta pratos emblemáticos como as “espinacas a la catalana”, espinafres salteados no azeite com alho, “piñones”, uvas-passas, e às vezes cubinhos de presunto Serrano ou de queijo de cabra curado. Estes espinafres com pinhões são um símbolo da cozinha mediterrânica espanhola e recheiam “empanadas”, cobrem “cocas” ou misturam-se em deliciosos ovos “revueltos”. Os rosados mediterrânicos da Catalunha resultam muito bem, como os da denominação de Empordà, ou então os Cavas tradicionais com uma boa parte de Xarel.lo no lote, casta que confere nuances terrosas, resinosas e amendoadas ao espumante catalão.
Viajando pela bacia do Mediterrâneo até o Oriente Médio, os pinhões são venerados em diversos preparos da doçaria típica; mas também conferem beleza, crocância e sabor às empolgantes “mezze” ou petiscos, ou recheiam um dos clássicos da cozinha libanesa e dos seus países vizinhos, o kibbeh. O clássico kibbeh de cordeiro moído com especiarias locais, menta, cebola e bulgur, recheado com cordeiro refogado com pinhões tostados, acompanhado pelo mais icónico vinho tinto da região, o Château Musar, de preferência envelhecido, é uma confluência hipnotizante de sabores médio-orientais de caça, de ervas e especiarias, de resinas e bosque mediterrânico.

Em Portugal

Portugal produz indubitavelmente alguns dos melhores pinhões do mundo a partir da mais nobre das variedades, o pinheiro manso Pinus pinea. A maior parte desta destacada produção, todavia, é exportada. Segundo a International Nut&DriedFruit, o nosso país é ainda assim o 12º maior consumidor mundial, num mercado dominado pela China, Coreia, Estados Unidos e Rússia. Mas o consumo estimado per capita de Portugal em 2016 foi de apenas 76 gramas de pinhões, metade da Itália e da Alemanha, por exemplo. São pouquíssimas às vezes que encontrei os nossos magníficos “pequenos menires” em pratos salgados portugueses. E quando os encontro, normalmente estão em criações de chefes da alta gastronomia e não na mesa tradicional. Uma pena! Na doçaria, por outro lado, há um emprego mais corrente dos pinhões portugueses, seja como adorno de alguns doces conventuais ou em receitas onde são os protagonistas. A mais famosa delas possivelmente é a alcomonia alentejana. De origem árabe, este doce em forma de losango é confeccionado com mel, farinha grosseira de trigo e pinhões, no Alentejo litoral. Fica espetacular com vinhos generosos de perfil oxidativo não muito doces, como um Madeira Verdelho ou um Carcavelos. Gostava de ver mais o pinhão português em pratos salgados daqui; afinal, é um contrassenso usar todo o nosso “ouro branco” para decorar igrejas lá fora.

 

Testes
Em minha casa nunca falta o pinhão português; sempre tenho aos montes na despensa e, onde posso encaixá-lo na cozinha, ele estará lá para dar o seu show de sabores elegantes e textura untuosa. Para este artigo testei os pinhões espetaculares da PineFlavour puros e levemente tostados, sem nenhum outro ingrediente, para perceber melhor a interação com diferentes vinhos.
Os pinhões são muito saudáveis por auxiliarem no controlo do colesterol através do seu alto conteúdo de gorduras monoinsaturadas; são altamente proteicos (1/3 da sua composição) e ricos em vitaminas, sais minerais e antioxidantes. Cabe aqui uma última, mas não menos importante observação. Evitem de toda maneira os pinhões mais arredondados e baratos oriundos da Ásia. São muito inferiores nas suas características organolépticas, muitas vezes excessivamente amargos, e estão associados a uma síndroma de distúrbio do paladar que pode prolongar-se por semanas, tornando a apreciação de qualquer vinho um pesadelo.

Chardonnay de clima frio sem madeira
Pinhões crus - Os pinhões são elegantes no sabor, mas não deixam de ser incisivos, e acabaram por encobrir o vinho na boca. Não resultou.
Pinhões tostados - A tosta activa ainda mais os sabores de nozes e castanhas nos pinhões e por isso deu-se um monólogo no casamento que, por esta razão, não resultou também.

Bairrada branco estruturado com madeira discreta
Pinhões crus - Perfeito diálogo de sabores, as notas resinosas/florestais do Bairrada encontraram respaldo no sabor dos pinhões, tudo no mesmo volume, e a belíssima acidez do vinho cortou a gordura sólida da iguaria.
Pinhões tostados - Os elementos tostados do pinhão sobraram um pouco no retropalato, mas ainda assim foi uma harmonia agradável e muito bem lograda texturalmente.

Alentejo branco muito estruturado com madeira 
Pinhões crus - Excelente harmonia, tanto no volume como na sintonia dos sabores. Se faltou um toque a mais de acidez no vinho, a inter-relação de aromas, inclusive no retropalato, foi sensacional.
Pinhões tostados - Excelente harmonia, provavelmente a melhor com os pinhões tostados entre todos vinhos provados. Impressionante como os aportes olfativos da madeira no vinho amalgamaram-se com os elementos de tosta do pinhão. 

Tinto leve sem madeira
Pinhões crus - Não é um casamento desarménico, mas também não arrancou suspiros de prazer. O lado bom foi a acidez do vinho a limpar a gordura sólida do pinhão. 
Pinhões tostados - Não houve harmonia no perfil dos nubentes. Se houve um lado bom foi a baixa carga de taninos do vinho que não reagiu com alguns componentes levemente amargos derivados da tosta.

Tinto encorpado com madeira
Pinhões crus - Ótimo relacionamento entre um tinto maduro e com notas de bosque com os pinhões. Na boca o vinho dominou um pouco, mas é um casamento que traz alegrias.
Pinhões tostados - Com a tosta os elementos amargos do pinhão empurraram um pouco para fora do equilíbrio os taninos do tinto, mesmo que fossem muito redondos e maduros. 

Madeira Verdelho
Pinhões crus - Embora houvesse uma agradável sintonia entre os aromas, na boca a primeira regra da harmonização - vinhos e pratos devem apresentar o mesmo volume de aroma/sabor - foi transgredida. A acidez do Madeira foi gloriosa para limpar o palato do emplastramento dos pinhões, todavia.
Pinhões tostados - Da mesma forma, não houve um diálogo no mesmo volume, mas quase um monólogo bramido pelo Madeira. E aqui ainda tivemos um realce dos elementos fenólicos do vinho pelos compostos amargos derivados da tosta do pinhão.