A esmagadora maioria dos livros, sítios na Web e cursos de vinho mundo afora, baseados na escola anglo-saxónica ou francesa de harmonização, ensina que um prato ou alimento ácido deve ser acompanhado com um vinho de acidez igual ou superior ao mesmo. Advoga que um vinho menos ácido do que o prato fica “chato” no confronto. Que vinhos para maridar com pratos à base de tomate?...
Tomate e Chianti. Basta dar um “Google” em “harmonização de tomates e vinhos”, em português, inglês ou francês, que a resposta virá quase sempre com este clássico, um tinto italiano da Toscana à base de Sangiovese, conhecida pela picante acidez, para um conúbio feliz com os tomates e variações culinárias, também sempre marcadas por uma percetível tendência ácida.
Mas, e se lançarmos esta busca em italiano? Surpreendentemente, perceberemos que na Itália, onde o tomate é sagrado, a harmonização com o vinho, outro esteio da cultura gastronómica transalpina, é vista de uma maneira radicalmente diferente.
Acredito que este seja um excelente momento para introduzirmos um dos principais cismas nas escolas mundiais de harmonização. Embora tão absurdamente significativo, jamais tornou-se uma celeuma ou mesmo tenha saído das conversas entre alguns sommeliers, os profissionais da harmonização.
Em resumo, há duas formas diametralmente opostas, com perdão pela necessária redundância, de escolher um vinho para escoltar alimentos que carreguem uma tendência ácida (aqui digo tendência porque um prato deveras ácido, como alguns picles, vinagretes, rollmops, etc. elimina quase que totalmente o casamento com o vinho): ou se dá acidez no vinho em nível igual ou superior ao do prato; ou se dá maciez no vinho para amortecer a tendência ácida do prato.
É realmente espantoso que nos dias de hoje ainda não haja um consenso, ou pior ainda, que a enogastronomia não tenha sido objeto de estudos mais rigorosos, mesmo com todo o avanço que assistimos na indústria do vinho e da gastronomia nos tempos modernos.
Quando me formei como sommelier na Associazione Italiana Sommeliers (AIS), nos idos de 2000, surpreendi-me com a potência académica daquela organização, famosa justamente por ter sido a única a tentar propor um arcabouço técnico-científico para explicar o que acontece quando damos um gole de vinho acompanhado de um prato qualquer.
Do “método Mercadini”, desenvolvido pelo matemático Pietro Mercadini, em 1978, até chegar no atual “método AIS di contrapposizione/concordanza”, a escola italiana – incluindo aí as dissidentes da AIS – assenta-se sobre um método quantitativo, pragmático e de respostas globais para tentar explicar as harmonizações vinho/alimento.
De volta aos tomates, estes incontornáveis frutos americans adotados em várias cozinhas tradicionais europeias, mormente nas mediterrâneas, para fins de harmonização com o vinho, o principal parâmetro é a acidez natural. Embora os aromas associados à beta ionona, que evoca a violeta e a framboesa, serem mais associados aos vinhos tintos, dificilmente os taninos destes se encaixam harmoniosamente à acidez dos tomates. Os principais ácidos dos tomates, o cítrico e o málico, e uma pequena parte de ascórbico, conferem ao suco fresco um pH de aproximadamente 4,1 a 4,6, enquanto que os omnipresentes “pomodori pelati” enlatados ostentam um pH entre 3,5 e 4,7. Ou seja, os tomates definitivamente são ácidos!
Para a escola italiana, uma sensação percetível de acidez num alimento ou prato é considerada uma sensação de dureza, e a ela deve ser oposta no vinho sensações de maciez para termos um casamento harmonioso. Os elementos que trazem maciez a um vinho são os álcoois, sobretudo o etanol, e algum açúcar residual. É por isso que os enogastrónomos italianos elencam quase sempre brancos beijados pelo sol mediterrâneo para um clássico “spaghetti al sugo di pomodoro”, como um Vermentino da Sardenha ou um Verdicchio do Marche. Vinhos que sejam equilibrados na frescura mas sem uma acidez cortante, e dotados de uma boa carga alcoólica-glicérica para amortecer o assalto ácido dos tomates na boca. Os rosados também logram êxitos, pois dialogam com o perfil aromático dos tomates de frutas e flores vermelhas, e não carregam os taninos dos tintos, outro elemento de dureza nos vinhos. Sob essa ótica, nem pensar em espumantes e brancos austeros e ou assertivos na acidez, como Riesling, Sercial, Loureiro, etc. A escolha de vinhos que pendem para o vigor da acidez no equilíbrio reforça sinergicamente a acidez dos pratos elaborados à base de tomate, pois dureza com dureza engendra ainda mais dureza.
No entanto, a esmagadora maioria dos livros, sítios na Web e cursos de vinho mundo afora, baseados na escola anglo-saxónica ou francesa de harmonização, ensina que um prato ou alimento ácido deve ser acompanhado com um vinho de acidez igual ou superior ao mesmo. Advoga que um vinho menos ácido do que o prato fica “chato” no confronto. Exatamente por isso é muito mais comum encontrarmos sugestões de vinhos equilibrados para o lado da acidez, como o Chianti ou mesmo a Barbera do Piemonte, para fazer frente a pratos onde o acídulo tomate se faz protagonista.
Assim aprendi quando me diplomei em 2013 na mais prestigiosa escola de vinhos do mundo, alegadamente, na WSET – Wine & Spirits Education Trust, em Londres. De um modo geral, excetuando-se a escola italiana, a harmonização vinho/alimento é encarada como um aspeto mais artístico da gastronomia, ou seja, mais fundamentada nas experiências e gostos pessoais do que na busca de um método técnico-científico de valor global para guiar as escolhas.
Praticando…
Ainda que os inúmeros testes efetivados em mais de 20 anos de profissão me levem a apadrinhar a ideia de que pratos com tendência ácida casam melhor com vinhos macios que amorteçam um ataque de dureza, para substanciar este artigo preparei uma salada de tomate e depois um “spaghetti al sugo di pomodoro”, ambos escoltados por quatro vinhos portugueses, todos em níveis semelhantes de preço: um branco de alta acidez (Arinto de Bucelas), um branco de acidez mais baixa (Antão Vaz do Alentejo, sem carvalho), um tinto de alta acidez (Baga da Bairrada) e um tinto de acidez mais baixa (Douro Reserva de colheita quente). Ficou patente que para os tomates crus, na fresca e frutada suculência, apenas o Antão Vaz ficou palatável, e talvez até se mostrasse com mais verve e equilíbrio devido ao realce do lado fresco-sápido. Os tintos ficaram desastrosamente tânicos, a acidez dos tomates até deslindou os polifenóis mais amargos.
Com o clássico “spaghetti al pomodoro”, os amidos da massa e um toque de azeite aconchegaram melhor o lado da dureza dos vinhos, o mesmo caso do tão português arroz de tomate. Ainda assim, o Arinto e o Bairrada resultaram-se mais ácidos e austeros do que o normal (realce sinérgico da acidez), e o Douro ficou no limite do agradável, sobrando ainda estrutura e alguns taninos. Novamente, o Antão Vaz, que ao ser provado “per se” parecia um vinho demasiado flácido, sem tensão ácida ou mineral, foi o campeão da prova harmonizada, encaixou-se nos sabores do prato e teve o melhor desempenho, porém necessário lado da dureza enaltecido pela acidez do molho de tomate.
Em suma, quando a harmonização resulta, “o sabor de uma comida revela a qualidade de um vinho e o exalta. Em contrapartida, a qualidade de um vinho complementa o prazer da comida e a espiritualiza”, sábias palavras do grande enogastrónomo italiano Luigi Veronelli.