O novo velho azeite

 
Luís Alves

Luís Alves

Se o vinho já fez um caminho de rejeição da indistinção, isto é, de recusa do título de quase “commodity”, o azeite ainda está a fazê-lo. Luta contra um passado histórico de elemento importante, mas não central. A Revista de Vinhos mergulhou por terras da Beira Baixa e resgata um passado histórico de importância capital. Mais: traz exemplos de quem está apostado em tornar o azeite do olival tradicional um produto de relevo, de novo. Mais ainda: por etapas, explica com algum detalhe o caminho da azeitona desde o olival até ao lagar e daí até à garrafa.
 

1. O olival tradicional

A dimensão, medida em unidade de área hectare, impressiona e faz lembrar propriedades de latitudes um tanto abaixo, por terras do além-Tejo. Mas não, estamos aquém Tejo – não muito, é certo - em Idanha-a-Nova, junto à raia. Os 1500 ha da Quinta de Marrocos são grandes o suficiente para perder a terra de vista. Ricardo Pereira e Tiago Loureço são responsáveis por 180 ha, plantados sobretudos com olival tradicional. Compassos grandes entre árvores, copas generosas, troncos a denunciarem algumas dezenas de invernos e primaveras, um solo não mobilizado, deixado intacto pelo homem e o sistema de rega mais antigo de que há memória na história do regadio mundial: a chuva que vem do céu. Apenas e só.

Ricardo e Tiago são sócios. Partilham terra, culturas, oliveiras, uma marca e um mesmo histórico de vida: ambos deixaram a urbana vida de Lisboa para trás e vieram com as famílias para Idanha-a-Nova, onde se instalaram em permanência. A frase que parece base sólida de sustentação a esta nova vida, di-la Tiago, em voz alta, quase em tom profético mas perfeitamente credível: “há muito trabalho mas nada é realmente urgente”. A ideia sedutora enche os ouvidos de quem a ouve, ali entre a paz de sete mil oliveiras, de absoluto sequeiro e de apenas e só variedades tradicionais e autóctones: Bical de Castelo Branco, Cordovil e Galega da Beira Baixa. “É uma ideia louca, claro. Deixar o aparente conforto da cidade e vir para o campo. E é sobretudo uma ideia inicial egoísta. Isto é, o meu pensamento ao tomar esta decisão foi: ‘como é que a minha vinda para a Beira Baixa me pode beneficiar?’”. E beneficiou? “Sim. Eu queria estímulos externos mais entusiasmantes do que aqueles que recebia em Lisboa. E queria também outra acalmia, menos urgência”, diz. 

Antes de Tiago chegar à Beira Baixa, já Ricardo tinha chegado, também com o mesmo objetivo. Veio produzir morangos em modo biológico, em 2007, com a esposa, educadora de infância de profissão, e com a filha de apenas um ano de idade. A escolha de hortícolas pareceu a mais sensata a quem ainda não percebia muito de agricultura. Mas a distância aos grandes centros de consumo decidiram a mudança para o olival. Antes do Tiago, já tinha um pequeno olival de 7 ha que passou a ser ocupação a tempo inteiro em 2014, ano em que terminou a produção hortícola.

A consociação animal-vegetal

Entre caminhos da quinta percebemos a existência de uma consociação que Ricardo e Tiago rapidamente explicam. “O uso dos animais, neste caso de ovinos, também de raças autóctones é facilmente entendível. As oliveiras precisam de manutenção. Se fossem duas ou três árvores, faríamos nós o trabalho. Sendo sete mil, precisamos de mão-de-obra reforçada. Estas ovelhas, das raças Merino da Beira Baixa e Merino Negro, são a nossa ajuda. E fecham um ciclo: comem pequenos rebentos que as oliveiras emitem – os chamados ‘ladrões’ - e que não servem a produção de azeitona. Enquanto fazem isso, estão a alimentar-se e a estrumar o solo”. Uma combinação que tem milhares de anos e que volta a ser posta em prática nesta produção. E são ainda generosas noutro trabalho: o de equilibrar contas. O olival está ainda a ser recuperado e a produção é relativamente baixa: cinco mil litros de azeite que serão mais daqui a uns anos. Enquanto isso, a carne vendida das ovelhas ajuda a injetar algum dinheiro na exploração que já é, ainda assim, sustentável.

Seguimos entre oliveiras, ovinos, cães e tudo o que uma quinta tem para oferecer. Tiago confessa, enquanto passeia. “O nosso objetivo é fazer deste espaço um modelo. Um modelo que possa ser replicado tantas vezes quantas forem possíveis. Pensamos ter aqui não um ovo de Colombo mas um modelo que serve muitas regiões do interior do nosso país”. Ricardo, num tom pausado, adverte para as dificuldades sem desencorajar: “Isto não é a profissão do rápido. Projetos de agricultura são a sete anos. Muitas pessoas vêm mas poucas ficam”. Seguimos caminho e vamos a uma parcela com oliveiras centenárias, também a serem recuperadas. Mais à frente, a desejada colheita. Usam-se não os vibradores de tronco, que agarram as árvores e fazem-na vibrar, mas os ‘bate-palmas’, uma ‘geringonça’ elétrica, com um mecanismo que tateia as folhas e faz cair boa parte da azeitona. Por baixo, estão umas redes onde caem não apenas as azeitonas mas também as folhas. Uma vez recolhidos, é tempo de separar o mais possível umas de outras e colocar a azeitonas em pequenas cestas. Seguem assim para o lagar e neste caso, depois de moída e armazenada, irão para umas garrafas com o rótulo “Egitânia”. Esta é a marca do azeite do Ricardo e do Tiago e também, claro, o nome dado pelos suevos e visigodos a uma cidade erguida pelos romanos e que hoje se chama Idanha-a-Velha.

Do olival ao lagar em 24 horas. Ou menos

“O nosso objetivo é que o azeite tanha qualidade nutricional e também virtuosismos”, explica Tiago Lourenço. Isso reflete-se nos frutados, nos picantes e também nos amargos. E reflete-se mais ainda no equilíbrio entre os três. Para isso, a colheita deve acontecer em boas condições e deve ser feita com um fruto completamente são, no estado de maturação perfeito ou se possível ainda um pouco verde, para emprestar ao produto final alguma intensidade. Depois, segue-se o processamento da colheita que deve acontecer tão rápido quanto possível. Isto é, no máximo até 24 horas após a colheita e sempre a baixas temperaturas. Tiago não abranda no entusiasmo que tem pela região e também não abranda nos muito frequentes avisos que faz. “Temos o olival da Beira Baixa votado ao abandono. Como está votado ao abandono em várias regiões do país. É um subaproveitamento enorme, ainda mais quando sabemos das potencialidades maiores que estão aqui. As variedades autóctones são imperiais e todo o modo de vida que se construi à volta do olival tradicional: a preservação paisagística, ambiental, da biodiversidade e da economia local que se gera, tão importante para regiões esquecidas”, lamenta.

Nos planos da quinta segue-se um plano de turismo. Sustentável, claro, como toda a energia gerada para a produção agrícola que provém de painéis solares. Serão uma meia dúzia de quartos que virão fechar o que uma quinta pode oferecer. Por falar em oferta, da oliveira só chega a azeitona? Ricardo Pereira avança com outros produtos e subprodutos: “Da folha de oliveira podemos fazer chá; existe ainda a possibilidade de fazermos conserva de azeitona e não estar apenas concentrado na moagem para azeite; e ainda uma manteiga que estamos a ensaiar”.
 

2. A chegada ao lagar

Muita da produção de azeitona da região chega aos lagares da Cooperativa Agrícola dos Olivicultores do Ladoeiro, a COOPAGROL. Uma organização fundada há 35 anos que nasceu da vontade de 60 produtores que queriam ver o trabalho agregado. Durante vários anos desativada, reabriu portas e vontades em 2005, quando um grupo de produtores voltou a tornar operacional, com o apoio do município de Idanha-a-Velha. Hoje tem quase 300 produtores que fazem a entrega da azeitona nos lagares da COOPAGROL. E o processo é rápido q.b. e aparentemente simples.

Aos tegões de receção chegam pequenas carrinhas, semirreboques puxados por tratores e até carros familiares. Todos trazem a mesma matéria-prima: a azeitona, de produção maiores ou mais pequenas. O tegão de receção não é mais do que um buraco no chão, no exterior da unidade, com umas barras metálicas. A azeitona é lá depositada e segue caminho para o interior da cooperativa. Os técnicos fazem uma análise visual naquilo a que se chama a “unidade suja” e apuram a qualidade e o grau de maturação dos frutos. Segue-se uma lavagem e a separação de todos os resíduos, sejam pedras ou pequenos paus. Pesa-se o produto e a próxima paragem é o tegão de espera. Essa unidade termina num muito industrial moinho de martelos que tritura de forma impiedosa a azeitona que ainda há umas horas estava penduradas nas oliveiras da região. Depois, é hora de extrair o tão desejado azeite. Do trabalho do moinho resulta uma massa que entra para uma batedeira, qual fábrica de bolos. Essa massa é batida, a uma temperatura alta, para se tornar homogénea. Uma vez terminado esse processo, é tempo de chegar ao “Rolls Royce” do lagar: o decanter. Faz a separação da fase líquida da fase sólida, o que em termos percentuais normalmente equivale a uma relação 30 – 70%. A componente sólida não é mais do que bagaço, como no vinho, que é usado para abastecer a caldeira da Cooperativa e assim fechar um ciclo no aproveitamento de resíduos. Por fim, o azeite é encaminhado para um crivo e depois para a centrífuga vertical, onde lhe são retiradas as impurezas. Pesado de novo, termina no armazenamento.

Joana Rossa, presidente da direção da COOPAGROL, orgulha-se do trabalho ali feito. “Não somos só uma empresa, ou um espaço, que recebe a azeitona das produções locais. Somos uma estrutura agregadora e temos sabido diversificar a nossa oferta”. Afinal de contas, feita a colheita do fruto, fica um espaço longo de tempo até ao final da próxima campanha. “Temos uma loja agrícola que vende os produtos da cooperativa e outros projetos que ajudam a manter este grupo de produtores unidos”, afirma.
 

3. Provar azeite?

A prova de azeite continua para muitos ainda a ser uma ciência oculta. Se a de vinhos está altamente disseminada e tida como natural, a do azeite, uma vez mais, ainda está a fazer o seu caminho. Há até quem tenha dificuldades em colocar um líquido que normalmente vê a marinar no prato entre as batatas e o bacalhau cozido. Vamos por passos.

     1. Os copos não são os de vinho, como seria de esperar. Para provar azeite, usam-se copos de vidro azul-escuro para que a cor não seja apreciada. Deitam-se cerca de 15 ml de azeite no copo.

     2. De seguida, não se agita. Em vez disso, usam-se as duas mãos. Uma para colocar por baixo do copo e outra por cima. A ideia é envolver aqueles 15 ml de líquido e aquecê-lo com a temperatura corporal. Aos 28 graus temos a temperatura ideal para apreciar de forma profissional o azeite. Note-se que a maioria dos componentes do azeite são voláteis e que se libertam mais facilmente a essa temperatura.

     3. Agora sim, pode-se agitar. Mas de forma muito lenta, sem a rapidez que o mundo do vinho gosta de exibir. Depois, retira-se a mão que estava por cima do copo e cheira-se uma primeira vez. Volta-se a tapar e destapa-se de seguida para fazer uma breve prova. Uma vez na boca, sempre em pequena quantidade, deve-se fazer percorrer o líquido por toda a boca e deixar escorrer pela garganta. Quando esse percurso está a ser feito, deve-se inspirar para que se tenha uma perceção das sensações retronasais.

     4. Entre cada azeite provado, é aconselhável beber água para limpar a cavidade bocal e comer maçã para fazer um ‘reset’ ao sabor.

     5. Para os que não se sentem capazes de provar azeite a cru, podem fazê-lo com a ajuda de pedaços de pão branco, tão neutro quanto possível. A prova não será tão profissional no sentido em que é mais difícil apurar todas as características do azeite.
 

4. A Beira Baixa

A região da Beira Baixa está apostada em fazer ver ao mundo as ofertas endógenas daquele espaço geográfico. Situada no centro de Portugal, junto à raia, é constituída por seis municípios: Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Oleiros, Penamacor, Proença-a-Nova e Vila Velha de Ródão. “A Beira Baixa é um destino que está numa posição estratégica: a duas horas de Lisboa e também a duas horas do Porto, com uma ligação quase direta a Madrid”, sublinha Hélder Henriques, secretário da direção da Comunidade Intermunicipal da Beira Baixa.

Em 2019 a Comunidade Intermunicipal lançou um roteiro, “Trilhos da Beira Baixa”, com um slogan que é ao mesmo tempo uma sugestão: “3 dias, 3 experiências”. A proposta acomoda-se à disponibilidade do turista. Se é apenas um dia de turismo, então a guia sugere conhecer os municípios; se são dois, então a proposta é trilhar uma experiência; se são três os dias dedicados à região, então a escolha passa por descobrir um território. “Temos recursos naturais, paisagísticos e culturais importantes. O azeite é um desses casos. Queremos atrair pessoas. Queremos provocar uma intensão de visita à região”, refere Hélder Henriques.

Entre natureza, cultura ou gastronomia são muitas as possibilidades de escolha e os pretextos de visita. Da natureza, o Parque Natural do Tejo Internacional ou as Portas de Ródão são dois exemplos; de cultura, o Museu do Cargaleiro, em Castelo Branco, ou a aldeia histórica de Monsanto são duas boas escolhas; de gastronomia, o azeite DOP, claro, ou o cabrito estonado são opções a ter em conta. E porque a região está atenta às novas tecnologias, a app Visit Beira Baixa (disponível para iOS e Android) congrega muita informação e dá boas dicas.

FOTOS: Fabrice Demoulin e D.R.