Restaurante Ofício - atipicamente bom!

Crítica Gastronómica

Fotografia: Fabrice Demoulin
Miguel Pires

Miguel Pires

O Ofício não é (ainda) um restaurante da moda. De uma forma egoísta, apetece dizer que ainda bem. Porém, a cozinha de Hugo Candeias e toda a equipa merecem mais frenesim à sua volta.

 

É espirituoso haver numa mesma rua dois espaços de restauração com uma assinatura idêntica: de um lado, o Bairro do Avillez apresenta-se como “Atipicamente Lisboeta”; do outro, o Oficio vende-se como “Tasco atípico”. Os objetivos de um e de outro são idênticos, os caminhos conceptuais para seduzir a clientela é que são distintos, até porque os campeonatos são igualmente diferentes. O primeiro compete numa superliga mais convencional, mas quer ter uma promessa diferenciadora; já o segundo joga na liga “Indie”, com uma piscadela de olho ao “mainstream”. Um e outro têm os seus predicados e ainda que não haja aqui propriamente um combate deixemos de lado o Golias e centremo-nos no David.


O Ofício tem três áreas distintas. Cá fora, uma esplanada algo indiferenciada, mas que foi importante, para não dizer obrigatória, em tempos de pandemia (mesmo prejudicada pelas obras do edifício em frente). Já no interior, há uma primeira sala com um balcão coletivo de 14 lugares (tipo bar de ostras – que servem) e, mais atrás, uma segunda sala com mesas, discretamente colorida, mas com uma luminosidade de fazer esquecer a origem austera e sombria daquele espaço que foi o antigo Convento da Trindade. 
Em termos de oferta temos um restaurante com pratos para partilhar onde se pode ir petiscar entre refeições, ou fazer um almoço/jantar completo. À frente da cozinha está Hugo Candeias, com rodagem por Espanha, onde chegou a ‘head chef’ do Hoja Santa (restaurante mexicano com uma estrela Michelin, do universo de Albert Adrià, entretanto encerrado) e se revelou por cá, em 2020, no The Art Gate, um pequeno projeto de ‘fine dining’ muito interessante (dos mesmos donos deste Ofício), que, entretanto, parou durante a pandemia e ainda não foi retomado. A proposta gastronómica de Hugo Candeias para este espaço mais informal é eclética: navega entre a tradição e a modernidade, a erudição e o popular, com um pezinho na cozinha de rua. Da carta tanto fazem parte um taco vegetal de mar, ou uma salada iceberg com abacate fumado, como um cachaço de bacalhau com molhos de grão e cebola ou um arroz de forno à antiga com carnes de fumeiro - sendo que este último poderia mesmo ser um prato de um restaurante tradicional, sem qualquer intervenção contemporânea, a não ser o facto de a sua confeção respeitar as técnicas de escola de cozinha (caldos e tempos de cozeduras, como mandam as regras). 
 
Cozinha voluptuosa

O repasto começou precisamente com o taco vegetal de mar. Uma folha de alface, a fazer a vez da tortilha de trigo, recheada com cubos de peixe, no caso espadarte, temperados com maionese de chipotle ligeiramente picante e amêndoas torradas laminadas, tudo para dobrar e comer com a mão, resultou num snack leve e agradável. Depois veio um tártaro de novilho com tutano. Boa carne, macia, cortada à faca, bem envolvida nos ingredientes clássicos, cebola, alcaparra, Worcestershire sauce (molho inglês), mostarda e gema de ovo. Para tornar o prato ainda mais voluptuoso, Hugo Candeias junta em cima uns pedaços de tutano e acompanha com uma torrada de brioche temperada com óleo de alecrim. Já o tinha comido e gostado muito deste prato numa outra ocasião. Porém, desta vez, ainda que estivesse bom, houve uma ou outra nota fora de tom: o tutano pareceu-me trabalhado de modo a dissipar o excesso de gordura, mas que acabou por lhe extrair também um pouco do sabor. Por sua vez, com o brioche, que já é bem amanteigado, passou-se o contrário: o óleo de alecrim deu-lhe gordura em demasia e também uma intensidade que fazia um certo bullying aos sabores delicados do prato.


A raia é um peixe com os seus adeptos, mas não é das espécies mais valorizadas no nosso retângulo, quer seja pela sua textura mole, quer por uma boa parte das vezes ser empurrada para a caldeirada, devido à fama de indestrutível (o que até nem é verdade). Ora, Hugo Candeias dá-lhe aqui um tratamento vip, vestindo-a com um manto de molho holandês, junto com uma manteiga ligeiramente queimada (beurre noisette). Depois, acrescenta-lhes um óleo de ervas e mais uma mão delas e transforma-a na rainha da divina Trindade. Não veio com acompanhamento, mas é algo que está a ser pensado, segundo informaram. E acho que fazem bem. Toda a rainha precisa de assessor.
Outro prato que me encheu as medidas foi o de línguas de bacalhau com emulsão de tinta de choco. As línguas foram cozinhadas em vácuo, a baixa temperatura, técnica que lhes atribuiu uma maciez apreciável e que se transformou numa luxuria total depois de levar uma emulsão elaborada com a gelatina que largam na cozedura, azeite, e tinta de choco, como num molho al pil pil basco.


Um outro prato muito bem conseguido foi o de pleurotus com caramelo de frango. Estes cogumelos são uma espécie de carne vegetal (proteica, e tudo) que tem um sabor próprio do fungo, mas que absorve muito facilmente molhos e temperos. No Ofício são assados no forno, bem pincelados com um caldo de frango reduzido a ponto quase de caramelo e coberto com um pó de cebola queimada que lhe dá um tom dramático. Alguns poderão achar estranho a um prato coberto de tons escuros e cinza. Porém, será só até provarem.


Em relação às sobremesas, Hugo Candeias até se pode esforçar por criar doces diferentes, como o diospiro ao cubo (“ao cubo”, acho que já li este nome em algum lado...) que em plena época deste fruto deve ser muito bom. Todavia, uma das verdadeiras razões de entrarmos ali, acreditem, tem a ver com a brutal tarte de queijo - de filiação espanhola, onde se tornou um fenómeno – que ele faz com especial competência: ligeiramente queimada no topo e cremosa no meio, tipo treme mas não cai. É tops!, como diria um millennial.


Em termos de vinhos, tal como nas comidas, o Ofício rege-se por uma certa descontração. As datas de colheita são negligenciadas na carta, mas os copos e as temperaturas das bebidas não. A carta tende para o lado dos pequenos produtores (uns de intervenção mínima, outros nem por isso) sem ostracizar médios e grandes. E escolha não falta, entre cerca de seis centenas de rótulos, das várias regiões do país. Há ainda outras opções fora da carta (e da caixa), pelo que vale a pena perguntar por elas. O mesmo se passa no vinho a copo: se nenhuma das mais de dez opções disponíveis o satisfizer pergunte se não podem abrir alguma garrafa que lhe tenha chamado à atenção - pode ser que tenha sorte. Acompanhámos a refeição descrita com um Textura da Estrela 2018, um elegante branco do Dão que foi bem com a generalidade das propostas do chefe.


Uma nota final para o serviço comandado por João Pombo (que é também responsável pelos vinhos), efetuado com competência e hospitalidade - ainda que, na verdade, não tenha dado para fazer o “teste do algodão”, uma vez que a afluência ao almoço foi calma. 
O Ofício não é (ainda) um restaurante da moda, daqueles que geram falatório que extravasa o meio. De uma forma egoísta, apetece-me dizer que ainda bem. Porém, a proposta global, a cozinha de Hugo Candeias e toda a equipa merecem mais frenesim à sua volta. 

 

Restaurante Ofício
R. Nova da Trindade 11, 1200-301 Lisboa. Horário: Terça a Sábado, 12:30–00.00h. Encerra domingo e segunda-feira. Telefone: 910 456 440
Preço médio com vinho 40,00€, por pessoa. 
 
Cozinha 17
Sala 16,5
Vinhos 16