Rui Paula

“Este seria o ano da minha vida”

Fotografia: Ricardo Garrido
Fátima Iken

Fátima Iken

Da terra transmontana para o mundo, Rui Paula trilhou um caminho suado para alcançar o estrelato. E conseguiu. Poucos seriam capazes deste percurso resiliente feito a compasso de projetos tão sólidos quanto diversos. Mas o homem com olhar de menino sabia o que queria. Naquele que seria o ano da sua vida, uma pandemia virou o mundo do avesso. Em tempo de Natal, um regresso simbólico à essência.

 

Lembro-me como se fosse hoje. Estava em reportagem no Douro e no alinhamento do dia havia um restaurante recente para descobrir. Chamava-se DOC, ficava num lugar com uma vista deslumbrante e eu pouco mais sabia sobre o dono e cozinheiro que nos recebia para além do seu nome. Numa altura em que a cozinha molecular começava a bombar por aqui, era um regalo saborear a cozinha tradicional portuguesa numa região idílica, a par da presença consistente de Rui Paula, já nessa altura um comunicador nato, mas ainda pouco conhecido.


Já não me lembro propriamente do que comi, apesar de tudo ter muito sabor e ser representativo da boa cozinha nacional, mas não esqueço, sobretudo, a garra daquele homem. Intuí que ele iria longe. Mas, sinceramente, nunca me passou pela cabeça que, passadas quase duas décadas desse almoço no Douro, aquele cozinheiro que me contava o que acabava de aprender rapidamente junto de Miguel Castro Silva, chegasse a arrecadar duas estrelas Michelin. Mas é isso mesmo que valorizo no seu percurso. A tarimba, o desejo de aprender, a curiosidade e inteligência de derrubar obstáculos e tornar-se quase imparável.


No início deste ano, Rui Paula havia conquistado o mundo. Este seria o ano da sua vida. Estava num dos picos da sua carreira e acabava de cumprir um sonho. As duas estrelas Michelin que arrecadou com o restaurante da Casa de Chá da Boa Nova não chegaram a cintilar na plenitude por causa da inesperada pandemia que virou tudo do avesso. Mas nem por isso, hoje, o mesmo brilho dos seus olhos esmorece, apesar do “chip” ser outro. É essa resiliência que se torna numa das suas facetas mais sedutoras. Para ele, desistir não faz parte do seu vocabulário.


Hoje, com a arrebatadora imagem do Atlântico encapelado como cenário quase dramático de um dos mais belos espaços de restauração do mundo, a Casa de Chá da Boa Nova, Rui Paula cavaqueia connosco num dia cinzento. Concorda que tudo mudou. A começar por si mesmo. Mas apesar da tristeza, sente-se que a perseverança é a mesma.


Basta observar o seu olhar coruscante e irrequieto de gaiato para descortinar que ainda há energia e imaginação para dar e vender, mesmo nos tempos em que tudo está periclitante e ficamos sem tapete.
Apesar de tudo isso, é o genoma da infância no Douro, que palmilhou desde pequeno, que lhe confere solidez. Mesmo que para desbravar terreno tenha corrido seca e Meca. Do recanto em Alijó para o Celler Can Roca foi a distância de um sonho feito realidade, onde aprender e descobrir se tornou o seu motor. Nesse percurso burilado a pulso e força de vontade criou três restaurantes que são emblemas no cenário da gastronomia nacional. É obra. Do DOC, onde o sonho começou, seguiu-se um palácio no centro do Porto, o DOP, mas Rui Paula queria mais. A Boa Nova foi um salto arriscado, mas deu-lhe a consagração que tanto ambicionava. Três espaços para diferentes experiências gastronómicas mas sempre alicerçados de forma sólida. Esteve quase para embarcar num quarto projeto mas a tempo recuou. Determinação não lhe falta. Teve muitas outras ocupações mirabolantes. Isso deu-lhe estofo e abertura mental para aprender sem preconceitos ou balizas. A lua era o seu limite. Por isso, uma terceira estrela parecia ser a meta seguinte. 

“Mais de 50% dos restaurantes vão fechar”

Em tempos conturbados e pouco auspiciosos para a restauração, nem por isso Rui Paula esmorece totalmente. Aproveita, sobretudo, para refletir. “Sinto que mudou muito em mim, houve um grande rebuliço aqui dentro. Quero agora ser mais poderado, mais calmo, arriscar menos, se calhar ser menos empreendedor, não querer abraçar tudo de uma vez”, enfatiza. Diz que a memória é a sua maior fonte inspiradora. Talvez esse seja o segredo da sua consistência. Concentração, foco e imaginação serão, mais uma vez, estratégias para tentar sair da crise em que a pandemia nos mergulhou, virando o mundo de pernas para o ar.


Há contas para pagar, nomeadamente as rendas altas dos vários espaços que explora, o que se complica com baixa faturação, num ano em que perdeu cerca de 75% do normal funcionamento das três casas que gere. Mesmo assim, até agora, conseguiu não despedir ninguém. “Só aqui, na Boa Nova, investi um milhão de euros. Tem de se estabelecer um compromisso entre os senhorios, os empresários e o governo para solucionar este aspeto. Se não houver apoio, será impossível continuar. Acho que mais de 50% dos restaurantes vão fechar”, alerta. Mesmo assim, não baixa os braços. A nova estratégia no DOP, por exemplo, passa pelo “take away” e “home delivery”, implementado neste mesmo dia.


O “boom” do turismo que trouxe tantas mais-valias à cidade foi, na sua opinião, mal estruturado, o que faz com que o Porto, por exemplo, hoje esteja deserto. “Mesmo antes da pandemia já achava que qualquer coisa ia dar errado. E deu. Milhares de hotéis e hostels. Hoje, nas ruas de Mouzinho da Silveira e das Flores vivem apenas oito pessoas. A cidade não estava preparada para isto. E nós sempre trabalhamos com turistas, mas também muito com clientes nacionais ”, declara. Por esta altura, no ano passado, todos os seus restaurantes estavam já lotados com marcações para o Natal e fim de ano. Até agora, há apenas uma marcação feita. “Assim, não é possível. Aguentei sempre, mesmo no confinamento, em que encerramos os restaurantes três meses, mas agora não sei. Regressámos em junho e tudo voltou à normalidade até setembro. Aí foi o descalabro”, lamenta. Finalmente, este era o seu grande momento. “Era o ano em que iria recuperar tudo o que investi. E tinha tudo bem organizado, não devia nada a ninguém”. Antes da pandemia, a Casa de Chá da Boa Nova, num dia como estes, estaria cheia. Hoje, há duas mesas ocupadas. “Tinha planos, já para este ano, abrir um deck no exterior com espaço de fogo lá fora. Só um prato iria custar 12 mil euros. Também no DOP iria criar uma zona de cozinha à vista. Tive de desistir de tudo isso”.


Os conceitos dos três restaurantes sempre se distinguiram. Mas indelével na sua filosofia era o constante apelo à terra, à matriz nacional do produto. E se houve fases em que Rui Paula se deslumbrou, nem por isso deixou de refletir no caminho que estava a tomar e infletiu, mergulhando em si mesmo. “Houve uma altura em que fiquei ébrio com isto tudo. Cozinhava com muitas texturas. Um dia, estava a folhear o meu livro e estaquei no timbale com foie gras. O que é isto? Isto não sou eu. Mas tinha que passar por isso. E ajudou-me a encontrar o meu perfil, o meu caminho”, recorda.


Em boa hora decidiu colocar os pés na terra e ser ele mesmo. Personalidade não lhe faltava. “Era altura de ser eu mesmo, acabar com as texturas, optar pela pouca manipulação, deixar a terra falar, regressar ao básico. Procuro cada vez o produto mais fresco. O simples é o mais belo possível”, conta. Essa foi a fase em que cresceu, a fase da maturidade. E isso refletiu-se na sua cozinha. “Foi assim que consegui as duas estrelas”. Essa característica é outra das vertentes que o lapida. Interrogar-se a si mesmo. “Hoje tenho a minha linha. Estes anos todos de experiência, de viagens, de leitura, de contactos, ajudaram-me a ter outro olhar. É só preciso ter coragem”. Como agora.

 O regresso à essência

O sinal do “back to basics” acaba por ser o chão deste homem que alcançou o estrelato. O mar encrespado lá fora não o deixa esquecer a terra que palmilhou em São Mamede de Ribatua e Favaios. Não se perde na imensidão do oceano. Lembra a memória do fogo, da lareira com os avós, das memórias da cozinha simples duriense. Essa linha não deixa que se disperse em tempos de tempestade. “Essa é a essência, a minha família no Douro”.
Por isso mesmo, aceitou o desafio da Revista de Vinhos para criar duas receitas com espírito natalício, apesar do “mood” não ser dos mais reverberantes. Um dos ingredientes principais, como sempre, é a emoção. Mesmo a propósito da época, apesar de este ano tudo parecer mais cinzento. Para combater esse estado de espírito, nada como experimentar variações ao bacalhau, como é o caso de um prato de atum e ostra. “Natal é quando e como um homem quiser”, declara. Por isso, o prazer é algo essencial, para momentaneamente esquecer os tempos que correm. “O Natal não pode ser redutor. Se quisermos, pode ser ostras com espumante ou champanhe”. Boa ideia.


Natal era apenas quando os avós eram vivos. “O arroz de polvo, o bacalhau cozido, o fogo. Hoje só se pensa em abrir presentes. Essa fartura material dos presentes não me diz nada, perdeu-se a essência”, afirma. Para evocar essa memória, deixa-nos uma versão diferente do bacalhau com todos, mas com o mesmo sabor. O bacalhau, a brandade escondida num rolinho de couve, o puré de grão. Aqui mesmo lhe deixamos estas duas sugestões para fazer em casa. Entre o homem que abriu, em 1994, o restaurante Cepa Torta, em Alijó, com cozinha tradicional de Trás-os-Montes, e os dias de hoje, muito mudou, é certo. Das pataniscas com arroz de feijão ao cherne num saco de papel, fumegante e no ponto, houve um caminho feito a compasso do labor. Mas a sua cozinha continua a ser emocional, burilada pelas reminiscências telúricas, pelo contacto com os outros. Depois de 26 anos de carreira, três restaurantes, 70 funcionários, duas estrelas e de ser chefe do ano, pareceria, a priori, não existir muito mais a alcançar. Mas os desafios a isso o obrigam, seguindo o mesmo lema: “Ter a capacidade de ouvir e aprender sempre”.


Casa de Chá da Boa Nova
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