Sardinhas e Vinho

Fotografia: Ricardo Garrido
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Não há para mim cena gastronómica mais marcante em Portugal do que as sardinhas assadas na brasa aos cardumes, em churrasqueiras improvisadas por toda a Lisboa. Os locais e turistas tão alegres, entre toda aquela fumaça de peixe, a partilharem essa iguaria numa fatia de pão, acompanhada por vinhos simples, brancos ou tintos, mas sempre vibrantes. Como pode a técnica da harmonização explicar, ou melhorar, essa experiência venerável e tão legitimamente portuguesa?

 

A paixão (ou aversão) pelas sardinhas na brasa
Na minha condição de efusivo apreciador de tudo o que vem do mar, os aromas que se desprendem das sardinhas, assim que uma parte dos seus mais de 10% de gordura de composição da carne começam a derreter e pingar na brasa, levantando uma fumaça densa e inebriante, são o ápice da experiência de um aficionado por peixes grelhados. De forma inversa, a culminação do ódio de peixe por parte de alguns, dada a força aromática literalmente visceral destes fabulosos peixes pelágicos da família Clupeidae, da qual fazem partes outros “cheirosos”, como o arenque.


Ainda me lembro muito bem, logo que cheguei para viver em Portugal, de uma visita a Setúbal com familiares, no mês de julho. Parece que a cidade inteira rescendia a sardinha na brasa, para minha imensa alegria. A premonição de que seria obrigado a comer mais de uma dúzia daqueles peixinhos azuis tão perfeitamente desenhados por milénios de evolução concretizou-se mais uma vez. Na altura bebi um Vinho Verde branco, simples, com alguma doçura, agulha e esfuziante na vibração e capacidade de limpar a gordura do peixe. Sinceramente, não prestei muita atenção ao aspeto técnico da harmonização, mas aquele momento soube-me tão bem, que julgo que tenha sido um êxito do ponto de vista enogastronómico.
Como parte da categoria dos peixes azuis, oleosos e pelágicos, neste caso aqueles que vivem em mar aberto e, no caso das sardinhas, em grandes cardumes que se alimentam sobretudo do plâncton, sabor é o que não falta a esta radiante iguaria. Um dos fatores que explicam a força aromática das sardinhas é justamente o alto teor de gordura presente não somente nas suas vísceras e, em particular, no fígado, como é comum em peixes brancos, mas igualmente entremeada nos músculos. Para a nossa imensa sorte do ponto de vista salutar, essa é a gordura boa, composta principalmente por ácidos gordos polinsaturados, nomeadamente os ómega 3. Isto porque os compostos aromáticos que fazem da sardinha um animalzinho imensamente mais saboroso que um linguado, por exemplo, são lipossolúveis e não hidrossolúveis. Peixes gordos sabem mais e também são mais sensíveis aos maus tratos depois de pescados, rancidificando mais depressa ou absorvendo aromas menos agradáveis de peixe que não está muito fresco. 

Características para harmonização

Conforme já discutimos anteriormente neste espaço da Revista de Vinhos, há três parâmetros fundamentais que os sommeliers levam em conta e que os entusiastas das boas harmonizações deveriam observar, para maximizar a escolha dos seus vinhos, ou pelo menos não comprometê-los, com peixes e frutos do mar: 1. O teor de iodo; 2. A carga de umami; 3. O conteúdo de gorduras polinsaturadas. 
Os alimentos ricos em iodo tendem a metalizar os taninos dos vinhos na boca e nas sensações finas da prova. Isso explica porque o bacalhau, tão naturalmente rico em iodo - e ainda concentrado pela salga - na minha pespetiva não liga bem com os vinhos tintos, nem com os brancos de curtimenta ou mesmo marcados pela presença de taninos elágicos do estágio em madeira. As sardinhas são uma boa fonte de iodo, com aproximadamente 30 mgr. por 100 gr., ainda que contenham menos de 1/4 da quantidade do príncipe dos mares, o bacalhau. 

O quinto sabor essencial dos orientais, o umami, está muito presente em diversos alimentos marinhos, através do trio de aminoácidos – glutamato, inosinato e guanilato, os quais atuam em sinergia e realçam o sabor de tudo em seu redor e intensamente os elementos de dureza de um vinho, que são os taninos, a acidez e a sapidez mineral. As algas kombu e nori são verdadeiras bombas de glutamato, assim como as anchovas salgadas e as amêijoas. Os inosinatos abundam nos peixes azuis, como nas sardinhas (280 mgr. por 100 gr.), cavalinhas, no bonito e no atum e, em termos de glutamato, as nossas protagonistas desta vez ainda superam o atum em quantidade (20 mgr. contra 10 mgr. máximas). Ou seja, quanto maior for a carga destes aminoácidos no alimento, mais fruta e maciez teremos que retirar dos vinhos, uma vez que ela será amainada na harmonização, e os elementos do lado da dureza na balança do equilíbrio do vinho, realçados.

Por fim, a tão saudável gordura polinsaturada ómega-3 das sardinhas é desastrosa para os vinhos que ostentem teores maiores de ferro na sua composição, o que ocorre sobretudo nos tintos, vinificados em contacto com os engaços, cascas e sementes. Desta interação, investigadores japoneses descobriram em 2009 que um desagradável “fishy flavour” emerge e toma conta da harmonização, porque os íons Fe2+ nos vinhos podem catalisar a oxidação lipídica através da quebra de hidroperóxidos lipídicos presentes nos peixes. 

Em resumo, as diretrizes técnicas para harmonizarmos bem as nossas deliciosas sardinhas, são: 1. Vinhos igualmente ricos na carga aromática, para não serem obliterados na sua expressão; 2. Alguma presença fenólica de brancos com madeira, curtimenta, rosés ou tintos seria tolerada do ponto de vista da carga moderada de iodo das sardinhas, mas as suas gorduras polinsaturadas poderão chocar com o ferro e trazer para o palato e, sobretudo, o retropalato do vinho um poderoso ranço de peixe; 3. Todo o lado da dureza dos vinhos será realçado pelo glorioso umami das sardinhas, pelo que é importante trazer para a mesa vinhos com alguma riqueza de fruta, álcool ou açúcares residuais; 4. A gordura sólida entremeada na carne e nas vísceras das sardinhas precisará ser limpa pelos elementos que geram salivação do vinho: a acidez, a sapidez mineral, ou as bolhinhas de gás carbónico.

Branco ou tinto?

Interessantemente, muitos amigos adeptos das sardinhadas aqui em Portugal, dos que peregrinam a todas as tascas para devorá-las no auge da sua carga lipídica e saporífera entre os meses de julho e setembro, não fazem objeções em acompanhá-las tanto com vinhos brancos, quanto com vinhos tintos de muita frescura, rústicos e limpadores de palato. Até percebo muito bem a justificativa da maioria, de que tintos como um Vinhão do Minho servido refrescado, obtuso na sua acidez cortante e com o seu poder adstringente, seja um perfeito instrumento de emulsificação de gorduras e limpeza do palato. Aprecio estes vinhos com enchidos, secretos de porco, com as lampreias, feijoada brasileira e outras maravilhas de que o meu cardiologista não gosta. No entanto, conforme vimos, a questão com as sardinhas é bem mais ampla: precisamos de limpar a gordura, mas com muito cuidado para não realçarmos de sobremaneira, através do umami, toda a dureza dos taninos, adstringência e amargor do vinho escolhido, e também evitando que ele carregue para as sensações finais um travo de “lixo de mercado de peixe” pela interação com o ómega-3.

Testes

Para estrear a temporada de sardinhas deste ano cheio de desafios, levei a uma das minhas mesas preferidas no país, o Forninho Saloio, em Lisboa, três garrafas para os meus testes. Queria provar dois clássicos das tascas portuguesas, um Vinho Verde branco com todos os seus apanágios de ésteres intensos de fruta, frescura, agulha e leve toque de açúcar residual, e um belo Vinho Verde tinto à base de Vinhão, com a sua cor impenetrável que manchou a minha camisa para sempre, além de um cardume de taninos e ácidos pontiagudos a aflorar no equilíbrio, totalmente inclinado para o lado da dureza. E também queria levar uma proposta de sommelier guloso, que segue as técnicas da harmonização, mas também que procura sempre o aspeto hedonista do jogo. Pois bem, deveria ser um branco intenso nos aromas marinhos, com excelente estrutura, mas sem os taninos elágicos da madeira, com a acidez e a sapidez mineral em grau suficiente para lavar a gordura das sardinhas, ainda que amparado por um bom grau alcóolico e fruta densa do lado da maciez, de modo a enfrentar todo o umami. A minha escolha foi o Verdelho Magma 2018 da DO de Biscoitos, da Ilha Terceira, nos Açores, um vinho absolutamente incrível dos craques Anselmo Mendes e Diogo Lopes.


Quando as sardinhas chegaram à mesa, tive que conter a minha excitação de vê-las novamente, as primeiras do ano; mas afinal de contas, estava ali a labutar. A cada garfada um gole de um dos três vinhos e muitas impressões registadas. Não perdoei as cabeças ou as vísceras, naturalmente. Em resumo do meu árduo trabalho de campo, gostava de partilhar com os leitores da Revista de Vinhos que o Vinho Verde branco - não cito aqui o produtor ou a marca porque há inúmeros nesse perfil no mercado e normalmente muito bem conseguidos -, confirmou que é um ótimo e despretensioso companheiro das sardinhas. Limpa muito bem a sua gordura e, embora o umami recrudesça o lado da dureza, há fruta e doçura residual do lado da maciez para suportá-la. Numa avaliação técnica mais minuciosa, diria que faltou um pouco mais de densidade e estrutura para acompanhar a riqueza dos sabores marinhos até o final do retropalato.


O Vinho Verde tinto, todavia, e apesar da sua tipicidade e qualidade, foi prejudicado na prova por todos os aspetos que discutimos acima. Já de largada, não consigo ver um diálogo no seu perfil de aromas de fruta vermelha e terra com os aromas da sardinha. Ao lado das lampreias em vinho tinto e sangue, sim, senhor! Depois, como era esperado, a sua aspereza implacável explodiu com o umami, e um fim-de-boca a óleo de peixe tomou conta das sensações finais. Porém, pela carga de iodo comedida das sardinhas, os taninos do Vinhão não se metalizaram ou “enferrujaram” tanto na boca, há que dizê-lo.


Por último, fica aqui a minha dica para a vossa próxima sardinhada, caro leitor! Estes vinhos vulcânicos dos Açores, com o seu vincado carácter marinho, sapidez mineral, densidade e verve eruptiva, como o Verdelho Magma, ficam absolutamente divinais com as nossas veneradas sardinhas. O umami ressaltou o lindo lado vulcânico e a sapidez. Por outro lado, a acidez foi implacável para limpar cada naco gorduroso e levemente fumado das sardinhas. E os dois filhos do oceano seguiram juntos no retropalato e às profundezas da nossa alma, quando encontramos uma harmonia perfeita.