Tasca da Esquina, São Paulo

Vítor Sobral

Fotografia: Fotos D.R.
Miguel Pires

Miguel Pires

No ano em que a Tasca da Esquina de São Paulo faz 10 anos e volta a ser considerado o melhor restaurante português da cidade pelo influente guia da revista Veja, encontrámos um bom pretexto para uma conversa com Vítor Sobral. Falámos do significado do prémio, das diferenças entre a operação de São Paulo (SP) e a de Lisboa, das adaptações que teve de fazer, do seu conhecimento e gosto pelos produtos do país, de influências, do vinho português e, inevitavelmente, da pandemia. Sempre ao seu estilo: com uma certa cordialidade, mas direto e sem falinhas mansas. 

 

 
RV - O que significa para a Tasca da Esquina voltar a ser o melhor restaurante português de São Paulo no influente guia Comer & Beber da revista Veja? 
VS - Como é evidente é sempre bom. Deixámos de ser o melhor restaurante português na revista porque a categoria acabou durante uns anos, não sei muito bem porquê. Não tenho a menor dúvida que somos o melhor restaurante de cozinha portuguesa de São Paulo. Como é evidente, de uma cozinha portuguesa muito adaptada à cidade, à realidade do país, mesmo a nível dos produtos, ou de hábitos. Não nos podemos esquecer que para um português comer um prato de Bacalhau à Brás com batatas a murro é uma coisa estranha, mas para um brasileiro acompanhar com batatas a murro ou com arroz é uma coisa normal. Tivemos de ter essa capacidade de nos adaptarmos um pouco à cultura da mesa no Brasil.
 
RV - A Tasca faz 10 anos. Qual diferença entre o restaurante dos primeiros tempos e o de agora? 
VS - Quando abriu, a Tasca tinha mais semelhanças com a casa mãe. Como é evidente houve coisas que percebemos que não funcionavam, as pessoas não comiam. Por exemplo, fígado é uma coisa que em Lisboa sai muito bem, em São Paulo (SP) não funcionava. Então tivemos de adaptar os produtos que mais procurados: bacalhau, polvo, porco - por incrível que pareça, quando aparece no mercado, é uma coisa que sai muito bem. Tem muita aceitação ainda o cordeiro, os bifes, o bitoque, o pica-pau e, se estivermos a falar dos petiscos, tudo o que é frito: pastéis de bacalhau, bolinhos de alheira, etc. Ainda o camarão salteado, o atum, as lulas, que em Portugal são servidas com cogumelos, ao passo que em SP são com palmito fresco e que é muito melhor - o palmito é um produto fantástico! 
Uma grande diferença de SP para Lisboa é o menu de almoço do dia. Há tipo um combinado. É cultural. Há uma entrada/salada, prato de peixe ou de carne e sobremesa. Funciona muito bem. Em Lisboa já não tanto. Aliás, a Tasca da Esquina de SP trabalha muito bem ao almoço tanto durante a semana como ao fim de semana. 
 
RV - E onde fatura mais?
VS - Para o panorama dos restaurantes de SP, a Tasca é um restaurante que poderemos considerar barato. Em média, o brasileiro que nos visita é um cliente com poder aquisitivo médio/alto que gasta bem. E sobretudo lá, o vinho tem um peso enorme na faturação. Como é sabido, no Brasil, um vinho com os impostos e as taxas que os importadores colocam em cima, é caro. É extremamente difícil beber uma garrafa decente por menos de 150/180 reais (22/27 euros). E essa mesma garrafa em Portugal custa 10 ou 15 euros, no máximo. 
 
RV - No início, lembro-me que havia alguma resistência, alguma desconfiança em relação ao menu “fique nas mãos do chefe”. 
VS - Os clientes habituais, sobretudo quando o Luís Espadana estava lá, não escolhiam à carta, ficavam mesmo. E, atualmente, com o Renan (Lorencetti), que é brasileiro, mas está connosco quase do início, continuam a ter essa confiança. Contudo, em SP, o brasileiro não é um cliente muito disponível para ficar nas mãos do chefe. Mais, tem sempre alguma tendência para mudar o prato. Se um bacalhau vem com batatas e uma cebolada, pede para vir um arroz à parte, se não for possível tirar as batatas. Há muito essa tendência no Brasil. Inclusive, no início, tive alguma resistência, porque os dois restaurantes portugueses de SP mais conhecidos faziam uma cozinha à medida do que o cliente pedia e isso, em termos de padrão de qualidade, mexe com a cozinha. Tive de lutar para que não acontecesse. Não foi fácil, porque se existe aquele ditado de que o cliente tem sempre razão, no Brasil tem mesmo 100% razão!  
 
RV - Há uma grande cultura de serviço, não é? 
VS - Servir bem é fundamental e os brasileiros são fantásticos nisso, mas muitas vezes servir no improviso é uma coisa que na cozinha não resulta muito bem. Na cozinha, se não houver uma ‘mise en place’ alinhada, se não houver um propósito, as coisas podem não correr assim tão bem.


 
Matriz portuguesa, cozinha tropical

RV - Sempre teve em SP um chefe português em permanência, mas atualmente isso não acontece...  
VS - O Renan e o Mateus (ambos brasileiros) estão connosco há oito e dez anos. É verdade que depois há as outras equipas. Mas um dos meus segredos, quer em Lisboa quer em SP - e aqui têm muito mérito os meus sócios - foi manter a espinha dorsal. A grande importância é essa: ter equipas fiéis, sobretudo nos cargos de maior responsabilidade. Se for sempre um entra e sai a cozinha desvirtua-se.  
 
RV - O que é que a experiência da Tasca de SP deu à de Lisboa e ao Vítor Sobral como cozinheiro?
VS - Na verdade, não foi a Tasca porque eu vou ao Brasil há 28 anos. O Brasil e a cozinha regional brasileira deram-me muita coisa. Tanto que eu hoje assumo que faço uma cozinha lusófona. Evidente, com uma base grande de cozinha tradicional portuguesa, mas não posso descurar aquilo que tive oportunidade de aprender e de provar por esse Brasil inteiro. Conheço todas as cidades do litoral do país e já estive em todos os seus mercados. Lá ficam muito ofendidos quando eu digo isto, mas se descobrirem um prato da cozinha regional brasileira, cuja matriz não seja portuguesa, que me apresentem. Até hoje não conseguiram. Isso é, sem dúvida, uma grande inspiração para nós. Os brasileiros, com os produtos, o lugar onde estão e até o estrato social, aproveitaram a matriz da cozinha portuguesa para fazer uma cozinha regional. E é fantástica. Até o cabrito e o borrego fazem direito - nos estados em que eles existem. 
 
RV - Quais os teus produtos preferidos no Brasil? 
VS - Em termos de proteína, a lula é muito boa, o camarão também. Depois, alguns peixes são bons se forem bem tratados. O namorado, o pargo, o peixe porco, a raia. Se estiver no Recife e em João Pessoa, tenho cherne, atum, que são peixes de profundidade, de água mais fria. Na carne, a bovina é maravilhosa, já há um borrego muito interessante e na Tasca costumo ter um porco cruzado de javali que é muito bom. Recuso-me a usar salmão e frango. Só numa situação muito pontual. Embora, às vezes, com portugueses, fazia aí uma cabidela e usava galinhas caipiras, que há.


 
Vinho é português e ponto final

RV - Em termos de vinhos, tem-se feito um trabalho muito importante em termos de promoção dos vinhos portugueses no Brasil. Como é na Tasca?
VS - Quando abrimos pensei em fazer 50% de vinhos portugueses, 50% de outros lados, incluindo brasileiros. Não queria ser arrogante, tipo “vêm aqui têm de beber vinho português”. Posso dizer que 40% do que não era português que tínhamos na carta fomos nós, os sócios, que o bebemos. O cliente pede um ou outro vinho da América do Sul, mas o que quer é vinho português e ponto final. 
 
RV - A carta de vinhos é muito diferente da de Lisboa? 
 VS - Sim. Tem a ver com a disponibilidade, com o preço. Por exemplo, fiz um espumante com o Luís Pato que em Lisboa comprava por 3,50€, mas aí custava-me sessenta e muitos reais (à volta de 10€ hoje, na casa dos 30€ há 10 anos).   
 
RV - E bebe-se mais tintos do que brancos...
VS - Sim, o que é estranho para mim, embora, na verdade, eu venda muito vinho branco. Há o estigma que vinho branco não é vinho. 
 
RV - E o vinho a copo, não há um certo receio?
VS - No vinho a copo desconfiavam que as garrafas podiam estar abertas há muito tempo. Porém, com a máquina que temos agora, criou alguma credibilidade.
 
RV - Em termos de regiões, alguma preferida?  
VS - Alentejo. Também o Douro e as grandes marcas, que conhecem bem. Por exemplo, o Pera Manca é um vinho que se vende bem – já em Lisboa não tenho clientes (portugueses) para tal. 
 
RV - O sucesso da Tasca ajudou a melhorar o panorama dos restaurantes portugueses na cidade? 
VS - Acho que não mudou muito, sinceramente. Há um restaurante de um casal, o Quinta de Santa Maria, que tem uma boa cozinha portuguesa e é autêntico, mas o resto está muito aligeirado.


 
As pessoas vão querer juntar-se

RV - Não podemos fugir ao tema da atualidade, a pandemia da Covid-19. Onde é que o negócio está a ser mais afetado, em Lisboa ou em SP? 
VS - Está a afetar igual. Em Portugal estamos esperançados que venham a existir apoios. Já houve alguns, mas não são suficientes. A Tasca e a Peixaria, mesmo com o Estado a pagar lay-off, perdem uma média de 58.000 euros de seis em seis meses. Em São Paulo os restaurantes têm estado abertos, com alguns períodos em que estiveram fechados, mas a faturação desceu muito. Não sei dizer quanto mas, garantidamente, na ordem dos 50%. 
 
RV - E como se contraria isso? 
VS - Vai-se empenhando, vai-se pedindo empréstimos, vai-se jogando com os fornecedores. Vai-se fazendo uma ginástica financeira que na verdade não sabemos até quando se consegue. Caiu muito, em geral, almoços e jantares. O receio de contágio, a quebra do poder de compra... tem a ver com tudo. O consumo retrai-se. Quer queiramos, quer não, o cliente da Tasca é um cliente mais informado e tem mais receio de sair de casa. 
 
RV - Fala-se muito de take-away. Independentemente da pandemia, São Paulo sempre teve uma tradição de comida para fora.
VS - Funciona muito melhor do que em Lisboa. Já tínhamos antes. A comida para fora, em São Paulo, é um negócio bem oleado. O Edrey, nosso sócio, tem pizzarias e por isso tem muita experiência nessa área.
 
RV - Mas compensa ou é só um balão de oxigénio? 
VS - É apenas um balão. Não tem nada a ver. Não deixam grande gorjeta para o funcionário. Não te esqueças que em SP os funcionários ganham 13% da faturação. 
 
RV - O que achas que vai mudar quando tudo isto passar? 
VS - Acho que os jantares vão voltar porque as pessoas vão querer juntar-se. Já aqueles almoços de grandes centros de escritórios e os almoços de negócios é que vão ter uma quebra grande. 
 
RV - Como é que se gere um negócio à distância? 
VS - Mando as fichas técnicas e quando precisamos mudar vou a São Paulo. Agora não dá, por isso vamos mantendo as coisas. A gestão é feita pelo meu sócio local, não tenho outra hipótese. E quando há decisões de fundo temos de falar. 

 

Tasca da Esquina – São Paulo
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