Tricky's Lisboa, uma brisa de ar fresco com um toque picante

Fotografia: Rita Chantre
Miguel Pires

Miguel Pires

Quem mora no centro de Lisboa, reparou, certamente, que a oferta gastronómica mudou consideravelmente nesta última década, período em que a cidade se tornou num polo de atracção turística e de residência para estrangeiros. No início do boom foram vários os modelos com ADN luso que pareciam impor-se: novas tascas, redes de casas de pastéis de natas, bares de vinhos portugueses ou conceitos de restauração como o Mercado Time Out ou o Bairro do Avillez.

 

Porém, nos últimos cinco, seis anos (mesmo com dois de pandemia pelo meio), com a cidade a ganhar epítetos de “nova Berlim”, hub para nómadas digitais, bem como exílio fiscal e seguro para muitos estrangeiros, outro modelo veio rivalizar, seguindo algumas tendências internacionais. Umas mais ligadas a uma certa artesanalidade, como as padarias de pão de fermentação lenta, bares de vinhos naturais, gelatarias italianas, restaurantes e bares mais alternativos; outras mais conjunturais, como a nova vaga de restaurantes mexicanos, os brunchs, “breakfast all day”, e outros lugares “giros”, onde “ter onda” importa mais do que qualidade. Alguns destes lugares pertencem a portugueses que procuram surfar o momento, outros são de expatriados já estabelecidos por cá há algum tempo. E se uns aportam pouco ou nada de novo, outros acrescentam valor ou mesmo uma brisa de ar fresco. O Tricky’s, o restaurante sobre o qual escrevo hoje, encontra-se neste segundo grupo.

Pratos para dividir
Localizado no que foi uma antiga loja de móveis de design, o Tricky’s tem aquele lado de bar alternativo com comida meio negligé, mas assumido: materiais crus, acabamentos por finalizar, mobiliário e objectos em segunda mão ou de refugo, bom som, volume alto (mas sem exageros que impeçam uma boa conversa), traje “à vontade” e informalidade em barda. Porém, há um equilíbrio interessante entre esse cunho manifestamente descerimonioso e um lado sério e profissional. Jenifer Duke, (norte-americana) é proprietária da pequena distribuidora de vinhos naturais Rebel Rebel e é ela que se ocupa da sala e, claro, dos vinhos, bem secundada por uma bem disposta equipa de sala, enquanto a comida fica a cargo do amigo e sócio João Magalhães Correia - também chefe e co-proprietário (mas com outros sócios), do Água pela Barba e Season, situados não muito longe dali. A carta é composta por uma dezena de pratos para dividir – mais para o mar e para o vegetal do que para a carne - sem grandes distinções entre entradas e principais, ainda que os últimos da lista sejam normalmente os de maior substância.

Embarcámos numa degustação (que não vem na carta, mas que pode ser pedida) de oito pratos + sobremesa, em que algumas doses eram propositadamente menores – ainda assim, diria que uns cinco ou seis, para duas pessoas é suficiente. O estilo de cozinha João Magalhães Correia é bem livre, seguro, com um toque experimental e mostra talento a misturar sabores por vezes inusitados, mas equilibrados, que revelam influências de várias latitudes, em especial do lado asiático. E faz tudo isto debaixo de dois princípios base: produto local de pequenos produtores e sazonalidade. – e com uma equipa de cozinheiros transnacionais, entre eles, a franco-vietnamita Anh Dao Nguyen.

Confesso que não estava à espera de que o nível fosse tão elevado. No sabor, no produto, nos contrastes, e, acima de tudo, no factor surpresa a cada prato, começando logo pelo primeiro que nos chegou, a salada de lingueirão, pickles, amendoim e ervas aromáticas, servida nas próprias conchas. Estava divinal: ácido, picante quanto baste e fresco, características (com outros sabores) que se aplicaram também às duas entradas seguintes, o atum dos Açores com nectarinas, num tom mais adocicado, mas com um valente volte face dado pelo “leite de tigre” de kombucha e pepino; e, também, nos “tacos” de rábano cru, com pambo (igualmente cru) temperado com 'nduja e um molho verde de azeite, evas aromáticas e nuoc mam de gengibre.

A cavala é um peixe que ainda faz torcer o nariz a muita gente, porque quando é maltratada adquire um sabor a “peixum” pouco agradável. Porém, quando trabalhada com cuidado e competência pode ser extraordinária, como foi o caso, aqui, num conjunto de sabores bem definidos, com dois lombos em cima de uma alface crocante, pimentos assados, molho com amendoins e uma fatia fina de lardo e ervas aromáticas no topo.

Depois de todo este frescor, mudámos para um padrão mais substancial, para acalmar a salivação, com a as beterrabas fumadas sobre um creme de caju. Physalis, salicórnias e outros elementos crocantes deram o equilíbrio necessário. O único prato que me pareceu excessivo (mas ao que parece faz grande sucesso) foi a stracciatella, com verduras da época, um prato que me pareceu com doçura e gordura em demasia – além do queijo cremoso levava óleo de chili à fartazana. Senti a falta de algo fresco, mas admito que tenha muito a ver com gosto, porque uma das propostas seguintes, numa onda mais de conforto, não era propriamente a rainha da frescura e devorei-a como um Obélix acabado de cair num pote de poção mágica. Era um prato de fregola – uma massa rústica da Sardenha com aparência de um grão, semelhante aos nossos cuscos transmontanos – com cogumelos shitaque e um ovo cru no cimo para ser misturado, como numa açorda. Estava cremoso, cheio de sabor, uma bomba de umami.

Ainda antes da massa tinha-nos cativado, igualmente, um croquete de fritura imaculada, envolto em pão panko com um recheio feito a partir de uma sopa de peixe. Por cima um gamba braseada e uma salada de algas e salicórnia. Utilizando uma linguagem millennial: “tava tops!” Antes da sobremesa, ainda tivemos outro momento nos píncaros, com uma língua vaca grelhada, tenra e suculenta, como raramente se come por aí, servida com feijão preto fermentado e uma muito bem-vinda salada com um toque avinagrado. Para terminar, no momento doce levámos com mais um valente twist. Em Barcelona, existe a tradição de fazer uma mousse densa de chocolate (tipo ganache) e servir com azeite e pão. No GPS do Tricky’s, essa ideia é conduzida mais para o  Oriente, sendo o azeite substituído por um óleo picante, de malagueta. A ideia é interessante e resulta de forma semelhante à versão catalã, porém, até era mais comedida no picante do que esperava, o que foi bom, porque perdeu alguma potência mas não o carácter.

Na oferta “líquida”, o domínio é o do artesanal/craft, com bebidas fermentadas feitas na casa, como a kombutcha, ou o tepache, cervejas artesanais e vinhos naturais. Nestes últimos, a primeira evidência, quando se olha para a carta, com duas dezenas de referências, é a ausência de rótulos portugueses. Achei estranho porque embora os vinhos que distribui e importa na Rebel Rebel sejam todos estrangeiros, Jenifer Duke tem uma boa relação com produtores nacionais e os vinhos deles várias vezes marcam presença nos eventos que costuma organizar. A justificação é que quer dar a conhecer vinhos de outras paragens e que, no início, quando teve uma ou outra referência lusa, grande parte dos clientes acabava por se refugiar nela. Deste modo, ainda que a opção possa causar alguma estranheza inicial, os clientes, assegura, acabam por ficar satisfeitos por descobrirem algo que desconheciam e que de outra forma nunca iriam pedir. No nosso caso, os dois que foram servidos a copo mostraram-se bastante adequados aos pratos - entre eles estava um delicioso e compulsivo espumante de método ancestral, de malvasia di candia, Tenuta Croci Campedello 2020 (Emilia Romagna, Itália). De destacar ainda que praticamente todos os vinhos podem ser pedidos desta forma, a copo.

Ainda voltando ao assunto da ausência de vinhos portugueses, a opção é discutível e causa algum falatório, claro, mas este não é um restaurante convencional nem consensual. Isto sem qualquer arrogância. De facto, em nenhum momento senti alguma atitude de sobranceria, antes pelo contrário. Uma das (boas) marcas do Tricky’s é a hospitalidade. O serviço é bem descontraído e, para o tipo de casa em questão, surpreendentemente profissional e cordial no trato. Atrevam-se e deixem-se levar pela brisa de ar fresco com um toque picante.

 

TRICKY'S
Rua da Boavista, 112, 1200-262 Lisboa
T. 212 417 718
Horário: terça-feira a sábado. Encerra: domingo e segunda-feira