Uma ode à chanfana 

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Fotografia: Jorge Matos
Fátima Iken

Fátima Iken

É um prato intenso, com um molho suculento, onde a carne de cabra (mas também chibo ou ovelha) se desfaz na boca após uma lenta cocção numa caçoila de barro negro, em forno de lenha vedado. Falamos da chanfana, criação beirã que nos deixa de quatro, quando feita com todos os matadores. Uma tentação imperdível que exige uma incursão à Beira Litoral num triângulo desenhado por Mortágua, Miranda do Corvo e Vila Nova de Poiares, e ainda Lousã, Penela e Góis. Tudo na na majestade dos maciços serranos.

 

 

É um dos pratos mais representativos da cozinha tradicional portuguesa. Criado à base de carne de cabra velha (e ovelha ou carneiro), este pitéu elenca bem as noções de aproveitamento e sustentabilidade tão caraterísticos da nossa gastronomia. Na Páscoa, é um prato de referência, igualmente presente em todas as festas populares, religiosas e até nos casamentos.
Nascido no seio da ruralidade de poucos recursos, em zona montanhosa de pastoreiro, na Beira Litoral e zona pinhal interior norte, entre paisagens de xisto e uma orografia imponente, o prato aproveita a cabra ou a ovelha velhas, a priori sem mais-valias, por deixarem de se reproduzir e da sua carne ser demasiado dura, contornando o problema com uma lenta e demorada cozedura.


Se, depois de uma certa idade, a cabra já não produz leite e perde a função procriadora, há que encontrar sapiência para dar a volta à situação. E a criatividade popular é exímia em bons exemplos. Aliás, o procedimento foi replicado na Terceira, por povoadores beirãos na chamada “alcatra”, apesar de a carne ser, nesse caso, de vaca. E dentro da mesma filosofia de aproveitamento, o prato ainda origina mais dois petiscos: a sopa do casamento e os negalhos.


Quanto à sopa, nasce do molho da chanfana, rico nos sucos da carne, a que se junta pão e couve lombarda ou troncha, igualmente feita em caçoila de barro. Dispõem-se várias camadas até terminar com couves e leva-se ao forno. Tal como o nome indica, era servida pelos noivos ao almoço no dia seguinte ao do casamento, com os restos da pouca carne que havia sobrado. Como se vê, mais uma maneira inteligente de aproveitar sobras, dentro da mesma filoofia da cozinha tradicional portuguesa.
Igualmente, de forma a não desperdiçar as vísceras do animal, estas são utilizadas para confecionar os negalhos, outra receita característica da região.
O bucho e as tripas são lavados e deixados durante algumas horas com limão e sal e depois temperados com sal, colorau e piripíri. Dentro de cada bocado de bucho colocam-se pedaços de tripas e de toucinho e uma folha de hortelã, fazendo-se o enchido que se cose com linha. Cobrem-se posteriormente os negalhos de novo com vinho tinto e assam-se num forno a lenha. Um povo imaginativo.


Em Vila Nova de Poiares, criou-se a Confraria da Chanfana e, em Miranda do Corvo, a Real Confraria da Cabra Velha, bem como a marca registada Capital da Chanfana, num saudável despique. Confecionadas de forma similar, os temperos acabam por fazer a diferença, como o cravinho ou noz-moscada. No concelho de Góis a iguaria ganha ainda o nome de “fusca”. Também na Bairrada existe a tradição da chanfana, que surge igualmente nos casamentos.
O maciço montanhoso da Serra da Lousã é, assim, o palco natural e idílico desta iguaria das aldeias serranas que une uma legião de fãs. E da cabra velha se faz nova... Mas na nossa viagem, rebanhos de cabra foi coisa que não vimos, curiosamente. Existem hoje quatro raças autóctones no país, mas quatro delas estão já em risco extinção. Por isso a confraria tem também defendido a preservação da caprinicultura e o combate ao estigma da pastorícia entre as novas gerações, caso contrário é toda uma tradição que desaparece sem deixar rasto.

Um milagre feito de vinho e barro negro

Estamos junto ao forno comunitário da ADIP (Associação para o Desenvolvimento Integrado de Poiares) onde se conservam as tradições locais, nomeadamente a confeção da chanfana. Num dia de chuva e cinzento sabe bem ouvir o crepitar da madeira de pinho, oliveira e acácia. Um forno a lenha bem aceso, com labaredas encantatórias, uma caçoila de barro negro e pedaços de carne de cabra assentam já sobre a bancada e a cozinheira Lurdes, do restaurante Confrade, inicia já a confeção da especialidade onde o uso imprescindível do vinho lança no ar o aroma de uma bela marinada. Antigamente, aproveitava-se o calor do forno depois de cozer a boroa ou o pão (a poia) e a chanfana ia sendo cozinhada durante toda a noite a baixa temperatura. Neste caso, amaciar uma carne à partida incomestível passaria por deixá-la cozinhar várias horas em vinho tinto. E resultou.


O vinho tinto (tradicionalmente usava-se o morangueiro) ajuda a macerar a carne, quebrando fibra do tecido conjuntivo, já mesmo na marinada. A par das especiarias, contraria a formação dos compostos que se formam e a carne fica tenra, a desfazer-se. Mas quanto melhor a qualidade do vinho, melhor o resultado final. E depois o calor modorrento faz o resto. Por isso se confeciona na véspera e deixa-se ficar no forno até à hora de ser servida. Serve-se, geralmente, com batata cozida e grelos, sendo no caso da lampantana a batata cozinhada com casca (fardada).


O milagre faz-se apenas com carne de cabra velha, vinho tinto, alho, louro, colorau e sal. Vai ao forno de lenha, previamente aquecido, na tal caçoila de barro negro e durante o tempo em que a Chanfana está a assar, várias horas, a boca do forno deve ficar hermeticamente fechada com barro. No final, um molho negro e suculento envolve a carne depois de destapada a caçoila e a iguaria é um manjar dos deuses.
O barro é assim fundamental aqui e outro símbolo da tradição local para uma fórmula imbatível. Tanto o barro negro de Molelos como os caçoilos de barro vermelho do Carapinhal ou preto de Olho Marinho são de importância fundamental na confeção em lenta cozedura do forno de lenha. O resultado é de uma memorável sapidez. A porosidade do barro negro acaba por funcionar como uma esponja, filtrando boa parte da gordura, segundo garante a vice-presidente da Confraria da Chanfana, Sónia Duarte. A confraria tem tido um papel decisivo na manutenção da tradição gastronómica e da olaria, incutindo nas novas gerações o apelo à preservação deste património. A abertura do restaurante Confrade, sede da confraria, foi outro projeto fulcral.
A olaria de barros mantém-se hoje devido à ligação com a gastronomia local, mas são cade vez menos os oleiros artesanais. Em Olho Marinho, por exemplo, já apenas sobrevive um único oleiro de tradição. Antigamente, cozia-se o barro numa cova no quintal, a chamada “soenga”. Hoje, as câmaras de cozedura do forno têm baixo oxigénio e o fumo libertado enegrece a louça, defumando o barro.

Os árabes como fonte de inspiração

Existem uma série de lendas sem o mínimo de credibilidade acerca do surgimento do prato, normalmente apontando as invasões francesas e o consequente défice alimentar das populações para a criação do petisco. Mas o mais certo é que as origens sejam árabes, tal como a etimologia da palavra. Aliás, este modo de cozinhar em caçoila de barro associa-se à cozinha mourisca (tal como a alcatra à moda da Terceira, levada pelos primeiros povoadores beirãos para os Açores, mas feita com carne de vitela), já que habitualmente os árabes cozinhavam em barro os guisados (a tajine ainda hoje é disso um exemplo).


De facto, os procedimentos da confeção da alcatra e da chanfana ou lampantana são muito similares, apenas diferindo a matéria-prima (ovelha na lampantana). Já na Idade Média era muito comum, mas certo é que já no século XVIII a chanfana é referida em várias fontes, equiparando o prato ao bazulaque. Provavelmente porque no início era confecionado com as vísceras da cabra.
No Dicionário da Lingua Portugueza de Antonio de Moraes Silva, este diz que Rafael Bluteau (Lisboa, 1789) se refere ao significado de “Chanfana” como “guisado de fígado, cosido em caldo com especiarias v. badulaque”. E sobre “Badulaque” (p. 157): “guisado de fígado, e bofes em pedaços pequenos. V. chanfana.; Coisas miúdas, trastes de pouco valor. Houaiss atribui-lhe também o significado de guisado de miúdos equiparando-o de novo a bazulaque (ou badulaque), sarapatel e sarrabulho. Como equivalência a estufado de vísceras de cabrito, cabra ou carneiro, com vinho, feito em caçoilas de barro guisado de vísceras preparado com cebola e outros fígado, bofe, coração, rim e até uma pequena quantidade de carne da aba”.
Se inicialmente o bazulaque era um guisado de vegetais, torna-se a base do mesmo procedimento mas com entranhas de anho, prato equiparado a “chanfaina” . Tem ainda o nome de “samfaina” e o prato percrusor é a “alboronía” (do árabe al-baraniyya), guisado feito com beringela e que significa manjar.


Nicolau Tolentino (1714-1811) desenha-a num soneto magistral mas numa descrição algo intimidante: “Grato manjar, mas que por causa justa/Dá um sabor, que nem o demo o atura/Isto é chanfana; e sei quanto ele custa”.
Mas já desde o século XII existem referências à chanfana, sempre feita com fressura, ou seja, entranhas de animais. A ideia de adicionar carne de cabra velha foi posterior. Mas o facto é que com aproveitamentos se faz um petisco inigualável, sempre associado às festividades locais populares. Por isso, nesta Páscoa, por que não optar por esta receita portuguesa tão tradicional? O resultado é divinal e, ainda por cima, não dá trabalho quase nenhum a confecionar. Bom apetite!

 

Restaurante O Confrade
Largo Dr Daniel de Matos 
3350 Vila Nova de Poiares
M. 911 571 100