A magia do mercado

Fotografia: Ricardo Garrido
Fátima Iken

Fátima Iken

Entrar num mercado é como dar um mergulho na Natureza pura, seja terra ou mar. Os olhos descansam no verde das tronchudas, atiçam desejos nos laranja-ocre das abóboras-menina e das tangerinas, fixam-se no carmim vibrante dos rabanetes e tomates, no brilho do peixe e marisco. Tudo tão fresco e acabado de colher ou pescar, paleta ideal para cozinhar e nos inspirar. O Mercado de Matosinhos é um daqueles sítios de eleição para reaprender o gosto pela vida que aqui fervilha entre legumes, peixes e frutas, numa imensa família de afetos. E, cereja no topo do bolo, pode saboreá-los nos vários restaurantes que povoam o espaço.

 

Mal se entra no Mercado de Matosinhos, parece que atravessamos outra dimensão. Perdemo-nos pelos labirintos dos cheiros de hortelã, do funcho e coentros, observamos um molho de nabos branco-róseo e suas nabiças, as pencas viçosas e as tranças de cebola roxa. Logo temos uma paleta que nos faz compreender como é ténue o laço entre arte e natureza.
Fugindo da chuva torrencial lá fora, aterramos num lugar quente e aconchegante, onde apetece ficar. Há sons, cheiros e cores que provocam os nossos sentidos e nos fazem logo sentir felizes. Sim, sentir felizes. Não são só as bancas de legumes e fruta, de hortaliças e flores, de peixes de vários formatos com brilho especial.


São as pessoas. A proximidade, a conversa com os vendedores, muitos deles património humano deste espaço que o torna ainda mais singular, estabelecendo assim relações de confiança.
Como a menina Olga, como lhe chamam, porque está aqui desde os 16 anos. “Tenho muitos fornecedores da Póvoa e lavradores de Lavra”, conta-nos enquanto arranja o cantinho das ervas aromáticas e já sentimos o perfume mesclado da salva, do tomilho-limão e do cebolinho, como se estivéssemos em plena na horta.


A mãe de Olga era galinheira, bem como a avó, por isso há um elo de gerações que viveu neste mesmo lugar. Ao longe, ouve-se, aliás, o caracejar aflito de galinhas que aqui se continuam a poder comprar.
Todos nós temos saudades do sabor da sopa da nossa infância ou de alguns cozinhados feitos pelos nossos ascendentes. É um facto que o apuro das mães é inatingível e por vezes irrepetível, porque ligado aos afetos. Mas, indubitavelmente, a matéria-prima que então era usada para cozinhar tinha muito mais qualidade exatamente pela forma artesanal e tradicional do cultivo dos produtos da terra. E é isso mesmo que aqui ainda podemos encontrar.
Fazer uma sopa com produtos da horta de lavradores locais é obter um prato nos antípodas de uma sopa confecionada com legumes e hortícolas produto de agricultura intensiva. Se a primeira é um portento de sabor, a segunda é usualmente insípida e deprimente.
Deambular por aqui e apreciar o verde viçoso da alface “bola de manteiga” ou “maravilha das quatro estações”, os nabos tenros e temporões, tomates carnudos ou as alcachofras rústicas é um momento memorável obviamente bem mais apetecível do que circular por bancas de supermercado, convenhamos. 


Muitas das novas gerações optam já pelo regresso aos mercados. A tendência “vegan” e o recrudescimento da leveza na cozinha dedicada aos legumes e hortícolas parecem obliterar o estádio caótico em que já nos encontrávamos. 
“Durante a pandemia, o negócio cresceu e até faziam fila para comprar aqui os legumes. Fiz muitos novos clientes das gerações mais novas por causa da pandemia” - confessa Olga. E o aumento da tendência vegetariana também ajudado a criar um nova dinâmica.
De facto, é um verdadeiro mundo de sabores e aromas que percorremos entre linhas de acelgas, batatas olho de perdiz, grelos, daikon, as cenouras, cherovias, couves de todas as espécies, da galega à pak choi, ervilhas, mandioca ou raiz de aipo. É, sobretudo, um mundo de sonhos para chefes de cozinha e não só, pela concentração de sabor.
Por isso, Olga conta que Vasco Coelho Santos, do Euskalduna (na véspera alcançou a almejada estrela Michelin) é cliente frequente.
O mundo micológico também não foi por aqui esquecido e há cogumelos para todos os gostos, dos marron aos Portobello, dos shitake aos shimeji ou eryngui.
De facto, o nosso distanciamento do cultivo da terra conduziu-nos a um nível obtuso que parece agora estar a regredir, para fazer renascer a necessidade de sentir de novo o sabor e o cheiro.
O resultado desta necessidade de regresso à terra, ao sabor, à “slow food” e aos gostos dos “millenials” tem sido o crescimento da agricultura biológica nos últimos anos, principalmente do mercado europeu.
Por isso mesmo até os restaurantes com estrelas Michelin não esquecem hoje o lugar aos menus de degustação “vegan”. As novas “trends” apontam a cozinha vegetariana como o futuro e por isso mesmo a Forbes a elegeu como comida do ano, recentemente. Tártaro de cenoura, caviar de beterraba ou carpaccio de alcachofra podem ser pratos deliciosos per si.
Muitos destes produtos aterram nos vários restaurantes que nasceram, nos últimos anos, no mercado, que assim podem contar com o sabor dos frescos, o que faz toda a diferença.
“Os restaurantes vieram criar uma nova dinâmica e outra força”. E ainda bem porque “muitos dos filhos dos vendedores já não queriam continuar o negócio dos pais e isto foi ficando mais reduzido” - sublinha.

 

Enchidos, mariscos e peixes-monumento

Enquanto provamos uma azeitona bical da banca da D. Emília, senhora que aqui está há já 27 anos, sentimos o cheirinho de enchidos na grelha e vamos diretos ao “Petiscos do Mercado”, (antes apelidado Mercado de Enchidos), onde se pode degustar queijos, sobretudo da Beira Baixa, de cabra, ovelha e vaca, com um picante especial, bem como pães e enchidos de Trás-os-Montes, sobretudo Lamego e Bragança. Prendem-se os olhos numa alheira de caça de Vinhais, mas há barriga de bísaro, salpicão, presunto ou paio.
Os vinhos são do Douro e Trás-os-Montes e o lugar é um sucesso, sobretudo na harmonização do vinho com as tábuas de queijo e enchidos para petiscar e ficar à conversa, provando ainda os frutos secos.
Ao lado, o Maria Lisboa é outro espaço recente onde se pode saborear pratos sedutores feitos a partir de marisco e peixe fresco. Mais à frente, se nos aparecer uma moqueca, confecionada por mão de mestre brasileira também se pode.
Ficamos já algo tontos porque a fome aperta, mas é hora de descer até ao mar, ou melhor, às bancas de peixe, marisco e moluscos que povoam a ala inferior.
Mal descemos as escadas, apreciamos a beleza arquitetónica desta imensa nave alva que é o mercado de Matosinhos, acabadinho de fazer 70 anos, mas mais jovem e fresco do que uma alface repolhuda.
Risco dos arquitetos Fortunato Cabral, Morais Soares e Cunha Leão, em 1939, está classificado como imóvel de interesse público e percebe-se porquê. Ao fundo, junto ao relógio, um peixe cor-de-laranja, um rascasso, do artista Xico Gaivota (que faz arte com desperdícios de plástico que limpa do mar), encima o teto branco.
Por falar em peixe, nada como a banca do Tó Peixe, como é conhecido, para apreciar os belos exemplares que o nosso mar oferece, verdadeiro tesouro. Ficamos zonzos a observar a frescura dos gorazes, linguados, pregado, sargo, salmonetes e pescada, lulas e camarão. Apetece levar todos.


Tó Peixe corta agora um espadarte de Sesimbra - peixe de boca pontiaguda que lhe dá o nome, porque parece mesmo uma espada - para um dos vários clientes da restauração, no caso a Marisqueira de Matosinhos.
“As pessoas podem escolher o peixe que nós arranjamos como quiserem e podem levantá-lo aqui até à meia-noite, apesar do mercado geral já ter encerrado”.
Tó Peixe veio trabalhar com 14 anos para aqui e também aprecia o facto de se notar a cada vez maior presença de clientela jovem.
“Muitos vêm atraídos pelos restaurantes ou a padaria, entram e tornam-se clientes assíduos, o que veio avolumar o negócio”, enfatiza.
O pescado vem das várias lotas do país, de Matosinhos a Angeiras, de Peniche a Sesimbra e nas mãos tem agora um exemplar glorioso e impactante de cherne, com nada mais nada menos que oito quilos.
“As pessoas escolhem o peixe ou marisco que mais gostam e podem comê-lo aqui no restaurante ao lado, o que trouxe uma nova dinâmica e mais movimento. Nada como escolher o peixe e degustá-lo pouco tempo depois”. 

Escolher peixe e comer logo, ou comprar pão artesanal
 
Muitos destes peixes frescos ou mariscos – sapateira, lagosta, lavante, camarão, ostras da Ria Formosa ou percebas - podem ser apreciados mesmo ao lado, no “Mercado Food & Drinks”.
O mentor é Pedro Brito que, há quatro anos, reparou existir quem quisesse apreciar o peixe na hora, sobretudo turistas, e lembrou-se de criar um restaurante nesse sentido. “As pessoas vão às bancas escolher peixe ou marisco e confecionamos aqui conforme entenderem. Na maioria dos casos, é grelhado ou assado no sal. Tivemos a ideia porque muitos turistas manifestavam a vontade de provar o peixe que fotografavam e pelo qual ficavam rendidos”.
A decoração é aconchegante, entre o azul ultramarino, o aquário e o peixe colorido na parede de Xico Gaivota. Os vinhos são, sobretudo, do Douro e vinhos verdes.
Pode ainda aproveitar para degustar sushi no mercado, ou ir à Taberna Lusitana para provar a cozinha tradicional.


Resolvemos ainda dar uma saltada à padaria artesanal Pão da Terra, já no exterior, onde se usa a fermentação natural lenta e farinhas biológicas. 
Mónica é a padeira de serviço, uma antiga engenheira ambiental que se fartou da profissão para abraçar a paixão de colocar a mão na massa, evocando a memória gustativa do pão alentejano.
“Usamos massa-mãe, isco natural, que confere esse travo ácido que não só as leveduras como as bactérias conferem”, assegura. 
Por aqui há uma imensa panóplia de pães à escolha, de sementes, nozes, espelta, alfarroba, centeio, focaccia ou brioches, entre muitos outros.
Só observar a imensa variedades de pães já nos faz salivar e não resistimos a levar vários para casa. Mas também pode sentar-se e acompanhar com uma bebida, bem como petiscar umas tostas ao almoço.
O Mercado de Matosinhos é, como vê, um mundo. De que está à espera para sentir os abraços desta imensa família e, sobretudo – convenhamos - o sabor dos produtos frescos que pode, aí mesmo, também degustar à mesa? Mais tradução “do prado/mar à mesa” não há. 

 

Mercado Municipal de Matosinhos 
R. França Júnior
4450-135 Matosinhos
T.22 937 6577

Horário 
Segunda-feira: 7:00 às 14:00
Terça a sexta: 6:30 às 18:00
Sábado: 6:30 às 16:00