Entrevista a Pedro Silva Reis

O homem que resgatou a Real Companhia Velha

Fotografia: Ricardo Garrido
Luís Costa

Luís Costa

Numa entrevista à Revista de Vinhos quando cumpre 40 anos de carreira, Pedro Silva Reis, presidente da Real Companhia Velha, diz acreditar que, no Douro, o melhor está para vir: “Para quem já aqui anda há 40 anos e vi tantas alterações – mas não tantas como gostaria de ter visto – acredito que as novas gerações vão ser capazes de mudar a mentalidade no Douro, mudar as atitudes, mudar as práticas, encarar o negócio de outra forma, de maneira a valorizar o Douro e os seus produtos.”

 

Pedro Silva Reis, presidente da Real Companhia Velha, está a cumprir 40 anos de carreira na empresa, onde se iniciou em 1982 como provador de Vinho do Porto, então recém-regressado de Bordéus, onde se formou em enologia. 

Nas últimas quatro décadas revolucionou a empresa, com destaque para a segunda metade dos anos 90 quando contratou o conceituado enólogo californiano Jerry Luper – conhecido pelo seu envolvimento na produção do famoso Chateau Montalena Chardonnay 1973, em Napa Valley – e Jorge Moreira como enólogo assistente, que impulsionaram a então criada Fine Wine Division, setor da empresa voltado para a experimentação e inovação. 
Foi por essa altura, mais precisamente em 1997, que assumiu a gestão da Real Companhia Velha e iniciou uma profunda reestruturação com ênfase particular na viticultura, para isso contratando uma jovem equipa de agrónomos (Rui Soares, Álvaro Martinho Lopes, Sérgio Soares) liderada por Luís Carvalho.

De empresa num aparente beco sem saída, assente no volume e nos preços baixos, Pedro Silva Reis restituiu à Real Companhia Velha todos os seus pergaminhos de mais antiga empresa de Portugal, com quase 266 anos de atividade ininterrupta – uma empresa fundada a 10 de setembro de 1756 por Alvará Régio de D. José I, Rei de Portugal, sob os auspícios do seu Primeiro-Ministro, Sebastião José de Carvalho e Mello, Conde de Oeiras e Marquês de Pombal.

 

RV – Começou em 1982 como provador de Vinho do Porto. Duas décadas mais tarde chegou à presidência da empresa. Cumpre agora 40 anos de Real Companhia Velha. Ao longo destes 40 anos, qual a sua maior conquista? E a sua maior frustração?
PSR – A maior conquista foi ter conseguido revitalizar a empresa e torná-la outra vez jovem apesar da sua vetusta idade. Trazê-la para o século XXI com vinhos e produtos adequados às tendências atuais da procura do mercado. A maior frustração é sempre não ter ido mais longe. Um empreendedor, no dia em que estiver satisfeito, é porque o projeto estagnou.

A empresa é hoje muito diferente daquela que herdou do seu pai. A Real Companhia Velha estava num beco sem saída, mas o Pedro Silva Reis encontrou a saída, que passou por conseguir permissão para liquidar 75% do stock de Vinho do Porto. Não foi seguramente tarefa fácil…
Uma empresa só está num beco sem saída quando deixa de ter ideias. A empresa estava envelhecida, estava com um produto gasto, a ficar desfasado da tendência do mercado e, sobretudo, os seus mercados principais estavam a deixar de ter rentabilidade. De facto, são três coisas que se combinam para que a empresa comece a andar para trás. Por conseguinte, aquilo que se fez foi identificar os pontos fracos, as ameaças que a empresa tinha, e dar-lhe a volta. No fundo, focar naquilo que fazíamos bem, potenciar aquilo que podíamos fazer melhor, desinvestir um pouco no Vinho do Porto – um pouco que foi substancial, 75 por cento do stock – e aproveitar a parte do mercado do Vinho do Porto que ainda era rentável, potenciá-lo a partir daí, eliminar a outra parte e partir para uma área de negócios onde se procurasse rentabilidade, margens e uma sustentabilidade económica para a empresa.

Hoje, o universo do Vinho do Porto não estará a atravessar uma fase parecida com aquela que viveu a RCV, assente num produto envelhecido, a enfrentar uma circunstância e um dilema um pouco parecidos com aqueles que a própria empresa enfrentou quando decidiu, por sua iniciativa, adotar uma estratégia diferente?
É diferente, são cenários diferentes. Quando falei em produto envelhecido, até estava a pensar mais nas marcas tradicionais de vinho de mesa. Ainda utilizávamos uma enologia mais antiquada, sem recurso a barricas. Eram vinhos mais evoluídos, com um estilo mais pró-oxidativo do que de frescura. Portanto, o nosso lado mais “démodé” estava mais nesse campo. No Vinho do Porto tínhamos uma estratégia de volume (que uma empresa de grande dimensão tem de ter…) e tivemos de fazer um corte com esse passado, focar exclusivamente na marca e reconstruí-la em termos de imagem.

Apostou primeiro num prestigiado enólogo norte-americano com trabalho reconhecido na Califórnia (Jerry Luper) e também num jovem enólogo formado na UTAD (Jorge Moreira) como seu assistente. Mas não se envolveu na adega, apesar da sua formação em enologia. Como (e porquê) desenhou esta estratégia?
Quando comecei a trabalhar na empresa, vinha de Bordéus cheio de ideias, e de facto era muito difícil aplicá-las nas adegas de dimensão industrial que tínhamos no Douro. E não havia praticamente enólogos. O António Agrellos, que trabalhava na nossa sala de provas, tinha vindo de lá formado – ele foi dos primeiros a ser formado em Bordéus – e não tínhamos, de facto, essa leva de enólogos que hoje temos. Na altura tive de enfrentar a realidade das nossas adegas, que eram adegas industriais, feitas para grandes quantidades. Era incompatível com uma enologia de rigor, de separação. Como é que se individualizava um tegão para receber umas uvas, ou uma parcela determinada, quando tínhamos [na adega] uma fila à espera a protestar que já estava ali há muito tempo? As próprias cubas eram de dimensões que dificultavam a experimentação. E, portanto, todas as ideias que trazia de Bordéus eram muito difíceis de pôr em prática. A empresa tinha uma abrangência muito grande e eu acabei por ir interessando-me por setores onde não entrava em choque tão direto com o meu pai, onde ele me dava mais espaço de manobra, como era o mercado de exportação, o marketing, e mesmo a parte comercial do mercado interno.

Foi a criação da Fine Wine Division em 1997 que lhe permitiu, anos mais tarde, avançar com os DOC Carvalhas e, sobretudo, com a criação da linha experimental de vinhos Real Companhia Velha Séries?
Foi o projeto embrionário no sentido de fazermos vinhos de qualidade com uma tecnologia de ponta, sobretudo abraçando as práticas mais avançadas do Novo Mundo (zero de oxidações, níveis de oxigénio baixíssimos, recurso à barrica, individualização de parcelas, ligação à viticultura). Todos esses procedimentos foram embrionários na empresa em determinado nicho – e depois tomaram conta da empresa.

Não receia que essa aposta na Fine Wine Division e nos vinhos DOC tenha relegado para segundo plano o Vinho do Porto no seio da Real Companhia Velha?
É provavelmente um facto. O entusiasmo do lado da novidade levou-nos a negligenciar um pouco o negócio tradicional, que ia andando e também teve as suas melhorias. Mas o mercado não lhe reconheceu o mesmo brilho. E tornámo-nos mais conhecidos por essa atividade do que pela mais tradicional. Queremos agora reverter. Temos feito aquisições de vinhas velhas nas proximidades das Carvalhas, vinhas contíguas, no sentido de revitalizarmos o setor do Vinho do Porto. Somos muito julgados pelo Vintage. Não se conseguindo brilhar nessa categoria, todo o resto do trabalho fica um pouco ofuscado, mesmo sendo de qualidade e de excelência. Estamos a tentar fazê-lo tornando-nos mais seletivos nos lotes que escolhemos para Vintage. Mas é uma batalha mais dura do que a outra. É difícil subir a esse palco que está tão institucionalizado.

Quando assumiu a liderança da RCV, há 25 anos, apostou seriamente na viticultura. Percebeu que, até então, a viticultura estava num plano secundário? E foi a UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro) que abriu portas aos protagonistas do Douro para encararem a viticultura de um outro modo?
O Douro estava muito atrasado em termos de viticultura. Quando começámos a desenvolver alguns projetos no âmbito da Fine Wine Division encontrámos logo uma barreira enorme na viticultura. Por tradição, as quintas do Douro eram geridas pelos caseiros. Portanto, havia muito pouco conhecimento científico disponível. A tradição e o conhecimento empírico imperavam. Por conseguinte, tivemos de ir à raiz do problema. Só se consegue fazer uma boa enologia se tivermos uma perfeita ligação à vinha. Os projetos têm de nascer na vinha. Não adianta depois tentar remediá-los. Não diria que a UTAD abriu as portas, mas forneceu a matéria-prima necessária, que foi haver jovens formados, sem experiência nenhuma, mas que tinham as bases para poderem evoluir muito rapidamente.

É inevitável falarmos do episódio, ocorrido no início deste ano, em que foi posta em causa a datação do vosso Tawny 10 anos com base no estudo de uma universidade holandesa, de Groningen, feito por uma equipa de investigação especializada em determinar a idade de materiais orgânicos com base em carbono-14. Que lhe pareceu a reação do IVDP (Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto) a esse episódio negativo?
O IVDP acabou por ser eficiente no sentido em que resolveu, estancou e esclareceu a questão. Mas, provavelmente, foi um pouco lento. Sobretudo quando sabíamos que o problema já existia a partir do momento em que fomos contactos por investigadores a levantar questões completamente desfasadas da realidade. E que poderia surgir uma imprensa negativa, como aconteceu. Houve um sensacionalismo com base em pressupostos académicos que fugiam a todos os cânones e a toda a ética que é suposto existir na investigação académica. Não havendo certezas, ou havendo apenas probabilidades e resultados incoerentes, deve aprofundar-se a investigação em vez de se publicitar logo. E, por conseguinte, assim nasceu uma perfeita atoarda e um atentado à dignidade e à reputação do Vinho do Porto como não há memória. Isso obrigou a uma resposta, que foi difícil, porque é sempre difícil combater notícias sensacionalistas. É que o desmentido nunca tem o mesmo impacto que a notícia. Enfim, esclareceu-se o assunto nos meios de distribuição, ficou o problema circunscrito ao mercado holandês, não houve vasos comunicantes para os outros mercados. Agora é o reverso da medalha: pedir contas e responsabilidades a quem fez afirmações irresponsáveis. Não temos dúvida nenhuma que a medição da idade do nosso vinho é absolutamente ilógica e irresponsável. Como é que é possível comercializar-se um vinho de 10 anos que só tem entre zero e cinco anos? Basta provar o vinho! O IVDP faz os seus controlos, o vinho é certificado, foram feitas contra-análises, foi feita uma verificação aos lotes existentes, tudo estava conforme. Mas demorou umas semanas a desmentir e a reparar o dano feito no mercado. Mesmo cientificamente, não há ainda um conhecimento rigoroso sobre a datação para vinhos de lote e Vinhos do Porto. Estamos a ser assessorados no sentido de conhecer mais sobre o assunto. Ainda não temos conclusões, a não ser que não se pode concluir tão levianamente, formulando uma acusação daquela natureza à empresa, a congéneres e, sobretudo, ao organismo regulador, porque a determinado ponto pôs-se em causa a certificação. Se o Vinho do Porto fosse francês, certamente que não o teriam tratado da mesma maneira.

Continuamos a ver Vinho do Porto a preços escandalosamente baixos e a produção a queixar-se de que as uvas são mal pagas. Parece haver aqui um ciclo vicioso. Como é que se pode dar a volta a isto?
Eu penso que só com a mudança de mentalidades e de atitudes. É desse segmento de preços baixos – que não remuneram a atividade – que a Real Companhia Velha teve de sair. Somos o exemplo vivo de que é possível alterar as coisas.

Neste domínio, os vinhos DOC Douro podem dar uma ajuda?
Os vinhos DOC Douro podem dar uma ajuda – e a atitude na comercialização de Vinho do Porto muito mais. Ninguém é obrigado a atuar em segmentos que não têm rentabilidade e que não trazem sustentabilidade à região. E, portanto, acho que Real Companhia Velha protagonizou um ato de coragem ao provar que é possível sobreviver redimensionando a empresa, saindo desses segmentos e apostando noutras áreas. 

Para além da Real Companhia Velha, também tem um percurso assinalável no associativismo empresarial. Pensa que é importante unir esforços, partilhar, dialogar, assumir causas comuns?
Exatamente. Um dos problemas do Douro é a desunião. Eu costumo dizer que os problemas do Douro são criados pelos próprios durienses. É a desunião duriense que está na base da maior parte dos nossos problemas. O Douro não é capaz de se reformar, de se organizar, de se modernizar. Pensa-se sempre em termos médios – e a média é um fator terrível e pernicioso para a qualidade. Porque depois não se consegue ir à procura da qualidade se estamos sempre a pensar em termos médios. Temos um desafio pela frente. E temos necessariamente de valorizar o nosso produto, o que passa por uma oferta equilibrada em relação à procura.

Apesar desse contexto, sei que é um otimista…
Eu acho que o melhor está para vir. Para quem já aqui anda há 40 anos e vi tantas alterações – mas não tantas como gostaria de ter visto – acredito que as novas gerações vão ser capazes de mudar a mentalidade no Douro, mudar as atitudes, mudar as práticas, encarar o negócio de outra forma, de maneira a valorizar o Douro e os seus produtos.

Já vimos, a dada altura do seu percurso, que o IVDP foi essencial para que conseguisse liquidar 75% do stock de Vinho do Porto da Real Companhia Velha. Hoje continua a encarar o IVDP como um parceiro estratégico, como uma peça essencial para o negócio dos DOC Douro e do Vinho do Porto?
O IVDP demonstrou, até nesta crise – a chamada “crise holandesa” –, uma importância fundamental na defesa do prestígio do Vinho do Porto. Naturalmente que tem as suas incongruências, sendo um organismo que vive 100 por cento fora do Orçamento Geral do Estado. É a própria fileira a gerar todos os meios financeiros para operar o Vinho do Porto. Não faz sentido, em pleno séc. XXI, o IVDP estar sujeito às regras da gestão e da administração estatal com todas as limitações que isso acarreta. O IVDP devia ter a autonomia financeira própria de quem vive dos fundos do setor. E, portanto, não devia ter limitações nos gastos à promoção, nos gastos internos, no desenvolvimento técnico, na investigação, nos equipamentos, nas instalações. Não faz sentido termos um organismo que chega ao fim do ano com saldos de exploração de vários milhões de euros e depois não consegue progredir, não consegue investir nisto, não consegue investir naquilo, não consegue atrair novos talentos porque está sujeito às regras da contratação da administração pública. Temos aí uma incongruência que faria todo o sentido ser revista. Na minha opinião e na opinião de praticamente todo o setor.

Acha que essa batalha pode ser vencida? Que vamos chegar lá? Já houve governos de todos os quadrantes e tudo continua na mesma…
É curioso, porque os discursos são muito diferentes, mas depois as práticas são as mesmas. Ninguém a nível governamental conseguiu dar esse passo, de ter a coragem de criar um estatuto diferente para que o IVDP pudesse ser ainda mais dinâmico e mais eficiente.

O Douro divide-se em Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro Superior, mas sabemos que os “terroirs” do Douro são muito mais do que isto. Não é tempo de repensar a região? De reclassificá-la?
Seguramente que sim. Sou apologista que o Douro tem de ser repensado de acordo com os vários “Douros” que temos. É o problema das “médias” – não podemos tratar o Douro como um todo quando o Douro é muito diferente. A valorização e diferenciação dos DOC Douro e do Vinho do Porto terão de ter um papel fundamental no desenvolvimento comercial da região.

Onde vamos encontrá-lo quando deixar a liderança da Real Companhia Velha?

Seguramente na sala de provas, a provar Vinho do Porto. É um dever preparar as empresas para estar sempre atualizadas. O seu líder tem prazo de validade. Pelo menos em funções executivas, gostaria de pensar que em meia dúzia de anos estarei a passar a pasta à próxima geração, mantendo um acompanhamento muito mais distante do que aquele que tenho hoje no desempenho de funções executivas.