Esporão - inquietação e mudança

Fotografia: Ricardo Garrido
Célia Lourenço

Célia Lourenço

João Roquette queria ser músico. É músico. Durante três anos, o Hot Club foi a sua escola. O jazz deu-lhe a formação mas a liberdade criativa leva-o por outros estilos, sem rótulos. Improvisa. Tem uma banda e uma editora. O piano é libertador. João Roquette também estudou gestão de empresas. Esteve uns anos fora de Portugal, procurou o seu caminho e as dúvidas não foram suficientes para toldar o discernimento. Não amaria menos a música por não a escolher como profissão. Quando voltou, foi para o Alentejo, para a Herdade do Esporão, em Reguengos de Monsaraz, onde viveu durante algum tempo. Esse contacto diário e as conversas com o seu pai, José Roquette, ajudaram na decisão. Ficaria na empresa familiar.

 


A Herdade do Esporão foi comprada, em 1972, por José Roquette e pelo então sócio, Joaquim Bandeira. A ideia por trás desta sociedade era pioneira e passava por produzir vinhos de qualidade no Alentejo. Com o 25 de Abril de 1974, a herdade foi ocupada e só na década de 1980 foi possível retomar o projeto. Para o Estado Novo, o Alentejo era o “celeiro de Portugal” e, nos anos ’80, estava ainda a sair da fase em que os cereais eram a principal cultura. A história recente do Alentejo começa precisamente nesta altura, sendo o Esporão um dos primeiros projetos a alavancar a região.


Quando, em 2006, João Roquette, então com 32 anos, toma as rédeas da empresa, os vinhos do Esporão eram já líderes no mercado nacional, faltando cumprir um dos objetivos primeiros do seu pai, a internacionalização. A presença de João coincide com uma mudança de ciclo na gestão. Foi a partir da análise do alinhamento do projeto e da lógica do portfólio existente, a pensar nos mercados estrangeiros, que João Roquette começa a perceber que teria que mexer em princípios e em filosofia. Provavelmente, a mudança geracional que se verificava com o início da sua gestão, era o olhar fresco que faltava para ver o problema. E o problema, segundo o próprio João Roquette, estava na forma como o Esporão se relacionava com o território, como desenvolvia a sua agricultura. Se o que pretendia era vinhos que exprimissem a origem, não podia continuar a praticar uma agricultura que matasse a biodiversidade dos solos e comprometesse a sua riqueza.


A mudança começou a acontecer, com a ajuda de toda a equipa que se manteve, as pessoas que desde sempre tinham construído o Esporão. A solução passou pela prática biológica, numa agricultura sustentável. A nova forma de olhar para a riqueza do Esporão começou, também, a exigir mais estudo e uma aproximação mais exigente ao que aquela natureza pode dar. Os solos começaram a ser estudados rigorosamente e o seu mapeamento é, neste momento, um instrumento fundamental para decidir o caminho dos vinhos aí produzidos. O Esporão tem sete tipos diferentes de solos nas suas vinhas e a consciência dessa diversidade deu um novo entendimento ao projeto.
A partir do conhecimento do impacto da diversidade de solos nos vinhos, as castas existentes estão também a ser estudadas por um outro ângulo. João Roquette diz-nos que há necessidade de reduzir as variedades que existem atualmente nos encepamentos do Esporão, que ainda são muitas, cerca de 40 nos mais de 400 ha de vinha. Pretende-se chegar à selecção das melhores para a prática da viticultura biológica, que só por si, aporta alguns desafios, ao mesmo tempo que respondam bem às alterações climáticas. Como objetivo final, as castas que se irão manter, serão as que expressarão melhor a diversidade do Esporão. 


Com as condições extremas de “escaldão” que se viveram no início de Agosto deste ano, o que a equipa do Esporão pode observar foi a resposta pronta das variedades autóctones, com uma resistência e sobrevivência incomparavelmente melhores que as estrangeiras. João Roquette dá o exemplo do Petit Syrah, Petit Verdot e Viognier, no conjunto das que perderam grande parte da produção. Diametralmente oposta está a resposta da Trincadeira, do Aragonês, do Roupeiro ou da Touriga Franca. Entretanto, começam a ser alvo de alguma preocupação variedades como Syrah e Alicante Bouschet, tão expressivas no Alentejo, que também mostraram dificuldades perante condições que podem tornar-se mais frequentes que o desejável. No Esporão, encontra-se também um campo experimental com 189 variedades e 112 plantas por variedade. O objetivo passa exatamente por estudar, num projeto conjunto com Dois Portos, o comportamento das diferentes castas com as alterações climáticas, e a sua resistência a pragas e doenças, e o campo é também um banco de material vegetativo. Será sempre possível, a partir desses pés de vinha, desenvolver qualquer uma dessas 189 variedades. O que fica desta nova filosofia é que, associada à agricultura biológica, surge a vontade crescente de fazer vinhos que expressem a diversidade do território. Por isso, a importância da origem, sobrepõe-se à importância da casta (ou do lote).  

Bom gosto

O Alentejo tem o encanto de ser uma região muito limpa de presença humana. Em termos de área, representa cerca de 1/3 de Portugal continental, enquanto a população pouco ultrapassa os 7% da população portuguesa. Com estes dados, percebe-se bem o que queremos dizer.
A Herdade do Esporão segue em absoluto esta dinâmica e a proporção de área ocupada é muito interessante. Dos seus 1.800 ha, apenas 1/3 da área está cultivada, o que mantém intacto o equilíbrio ecológico tão importante para a agricultura biológica.
O bom gosto da intervenção humana, na herdade, verifica-se para além da sustentabilidade da agricultura e da paisagem natural que sempre se procurou manter. As construções são cuidadas e há um equilíbrio que acontece naturalmente em cada edifício. Desde logo, o conjunto medieval, do qual se destaca a Torre do Esporão, uma torre fortificada que se acredita ter origem no séc. XIII. É simples na sua forma, quase infantil. Planta quadrangular, uma escada que conduz à entrada e que imaginamos continuar a subir para além dos pisos e das ameias.


Depois, a maravilhosa obra de engenharia que é, ainda hoje, a adega enterrada, de 1987. A partir do conceito de “túnel de metro”, foi concebida para criar as condições ideais de humidade e temperatura para o estágio das barricas. Uma sucessão de galerias de betão que nos leva por um percurso quase onírico, para culminar numa renovada sala de provas com a assinatura do atelier de Arquitetura SKREI. No meio da penumbra, surge um oásis de luz, com formas orgânicas que existem numa dualidade incrível de contraste e integração com a frieza estrutural do betão. Do conjunto que se formaliza em claro/escuro, luz/sombra, madeira/betão, impossível não referir a mesa de provas, pela inesperada forma, pela simetria, pela escala. Um objeto de grande beleza.
Quanto à vinificação, divide-se por três adegas distintas, vinhos tintos de grande volume, brancos e adega de lagares, para vinhos topo de gama. Na vindima de 2018, inaugurou-se a renovada adega principal, a de maior área, que passou a chamar-se Adega Monte Velho, em alusão óbvia ao vinho de maior volume da casa. Com esta reestruturação, modernizaram-se espaços e processos, e aumentou-se em 50% a capacidade produtiva, bem como a qualidade dos vinhos aí produzidos. A adega dos lagares, onde nascem os vinhos top premium do Esporão, tem um cuidado estético notável. Em tudo, desde a implantação dos equipamentos e articulação das várias zonas, ao revestimento do tecto, numa linguagem que iremos encontrar novamente no restaurante. Depois, cada talha, cada cuba, aporta detalhes de grande riqueza. As cubas de betão são “túlipas”, com uma forma que tirou todo o partido da plasticidade do material. Já nas talhas, existem exemplares da tipologia local, do Alentejo, mas também terracotas italianas, com formas e acabamentos distintos, que existem como esculturas.


Não podíamos deixar de referir a ligação dos rótulos destes vinhos ao mundo das artes plásticas. Tudo começou em 1985, quando Joaquim Bandeira decidiu usar uma pintura de um amigo no rótulo do primeiro vinho. A ligação que ele tinha ao mundo das artes certamente facilitou a abertura com que os artistas foram aderindo nos anos seguintes. Quando saiu do Esporão, no início da década de 1990, o acervo já tinha peso suficiente para continuar a seduzir os artistas para o projeto. João Roquette fala-nos do desgosto recente com a morte de Helena Almeida. É um enorme admirador da artista e o convite para fazer um rótulo aconteceu há um ano. Como Helena Almeida estava a preparar a exposição da Tate Modern para 2018 (que terminou a 4 de Novembro, já depois da sua morte), o trabalho com o Esporão seria desenvolvido no próximo ano. E João Roquette lamenta profundamente não ter concretizado um projeto que lhe dizia tanto.

Visitar o Esporão

O Esporão recebe 22.000 visitantes por ano, representando um valor de cerca de um milhão de euros. É uma atividade muito importante, que tem vindo a evoluir no conceito.
O Enoturismo começou a ser praticado, no Esporão, quando, em Portugal, não existia ainda a consciência de que se poderia aliar a atividade turística ao mundo do vinho. Há cerca de 20 anos, começávamos a ouvir falar de um restaurante, em Reguengos. Onde também se podia visitar a adega de engenharia grandiosa e provar vinhos. João Roquette diz-nos até que a palavra “enoturismo” tinha que ser explicada às pessoas.
O primeiro restaurante era uma concessão e era Júlia Vinagre, reconhecida pelo seu Bolota Castanha, na Terrugem, perto de Elvas, que comandava a cozinha. Depois, a partir de 2012, com a internacionalização do projeto - os visitantes são necessariamente o reflexo do negócio, sentiu-se a necessidade de ter uma oferta mais integrada, que mostrasse melhor o que era realmente o Esporão. Por esse motivo, repensou-se o conceito, o restaurante foi remodelado, contratou-se um chef de cozinha e construiu-se uma equipa, pretendendo uma gastronomia mais detalhada.


O período em que o chef Pedro Pena Bastos esteve no Esporão foi marcado pela atracão que a sua criatividade teve, sobretudo ao nível da crítica. Neste momento, é Carlos Teixeira, que está no Esporão há quatro anos e era sous chef de Pena Bastos, que assina a Carta do restaurante. A sua cozinha é fortemente marcada pela singularidade do território do Esporão, pelos produtos que existem em cada época e pela trilogia pão, azeite, vinho. 

A prova do tempo

Ainda muitos preconceitos resistem às evidências que os vinhos do Alentejo podem evoluir bem, com o passar do tempo. Como noutras regiões, existem os que envelhecem bem e os que não ganham com a idade. Estivemos com David Baverstock, australiano de origem e diretor de enologia, uma figura indissociável do Esporão, com Sandra Alves, também enóloga, e com João Roquette. Os vinhos que tínhamos à nossa frente eram supremos representantes da história do Esporão e iriam contar-nos o que as palavras não conseguem.


Para começar, o branco de 1996. É um vinho deliciosamente seco, com a boca surpreendentemente viva e aromas complexos, de frutos secos e mel. O lote tem Roupeiro, Arinto e Antão Vaz e, no estágio, o gosto de então privilegiava o carvalho americano. A verdade é que o tempo esbateu essa marca, resultando num vinho luminoso e que dá grande prazer com 22 anos de vida. Depois, ainda nos brancos, avançámos até 2007, já com a delicadeza do carvalho francês a conquistar algum espaço. O vinho tem grande frescura, com notas de laranja a dominar o aroma. Na boca, o perfil exótico das especiarias, o volume e a acidez conquistam imediatamente. É um vinho preciso e longo.


Depois, entramos nos tintos e recuamos ao primeiro capítulo da história do Esporão, com o primeiro vinho produzido na herdade, em 1985. As castas usadas foram Trincadeira, Aragonês, Cabernet Sauvignon e Touriga Nacional. Os aromas lembram chocolate e remetem, também, para carne e alguma terra. A boca conserva frescura, ligeira fruta e tanino, e vai evoluindo com charme. Depois, o Garrafeira 1997, com ótima concentração de cor. O Garrafeira era criado a partir do melhor Reserva, passando 18 meses em barrica. O lote era o mesmo, e, neste vinho, após arejamento, sobressai muito o Cabernet Sauvignon. A boca está muito viva, com taninos estruturantes e um perfil muito moderno. De seguida, conhecemos o Garrafeira 2001, feito já a partir de uma base completamente diferente do Reserva, na adega de lagares, com Alicante Bouschet e Syrah, e estágio em barricas de carvalho francês. Grande concentração de cor, com nariz muito limpo e complexo, com notas silvestres e anis. A boca está ainda jovem, muito intensa, quase pastosa, com taninos robustos e notas de chocolate evidentes. Por fim, o Private Selection 2012, que tem uma produção de 400.000 garrafas, com Alicante Bouschet, Aragonês e Syrah, com estágio em carvalho francês novo (30%) e de 2º ano (70%). É um tinto de cor violácea, de nariz fechado e grande concentração frutada. A boca é colossal, com um lado vegetal mais fresco e taninos robustos, mas não impeditivos que se beba desde já. É um vinho envolvente na sua monumentalidade.
A completar a história que estes vinhos nos contam, viajamos até aos nossos dias e percebemos a procura da autenticidade que guia todo o projeto do Esporão. Procura que revelou uma inquietação para perceber a terra, que conduziu à agricultura biológica, que mostra que é possível aliar o volume de milhões de garrafas, a qualidade e a práticas sustentáveis.


E é neste enquadramento que olhamos para os Vinhos de Talha e para os Colheita. Relativamente aos primeiros, João Roquette coloca a questão de forma muito direta. Em vez de pensar “porquê a talha?”, pergunta antes “como é que a talha não está no Esporão desde o início?”. Considera que são vinhos que têm um papel fundamental no portfólio de uma empresa que produz vinhos no Alentejo, que têm uma história para contar, são únicos e, mais que tudo isso, a sua diferença surge associada a uma qualidade que interessa perceber. É um estilo necessariamente difícil produzir em quantidade, mas ao qual tem de ser dada mais atenção e mais corpo, para ser conhecido por mais pessoas. Com já dissemos, o Esporão conta com talhas alentejanas e italianas, de vários volumes e formatos, e aprende a cada ano como fazer estes vinhos da melhor forma. Até agora, podiam apenas ser comprados na loja da propriedade. Com os tintos de 2016 e o branco de 2017, estão a ser já a ser colocados no mercado. Ao almoço, tivemos o branco, que se impôs imediatamente pela sua diferença, por um aroma marinho quase deslocado, quase excêntrico. É um vinho da casta Diagalves, proveniente de uma vinha em pé franco em solos arenosos. É um branco com estrutura, seco e sério, óptimo na refeição. Será muito interessante perceber como evolui, já que os indícios de uma certa austeridade apontam para uma personalidade que se vai revelar com mais algum tempo.


Quanto aos Colheita, traduzem o conceito que os originou, “expressar de forma direta a tipicidade do ano da colheita, a diversidade de solos onde as vinhas estão plantadas e o carácter e identidade das castas selecionadas”. São vinhos biológicos, feitos nas túlipas de betão, processo a partir do qual se pretende respeitar as características primárias do vinho, procurando mais pureza, a par de condições ótimas para uma micro-oxigenação proporcionadas pelas singulares cubas. O branco 2017 é um varietal de Antão Vaz proveniente de solos derivados de rochas xistentas, de estrutura franco-argilosa. Tem uma boca séria, quase cremosa, seguramente aveludada. Quanto ao Colheita tinto 2016, que iniciou a fermentação em lagar e só depois passou para as túlipas, resulta de um lote de Touriga Franca e Cabernet Sauvignon, de solos graníticos, xistosos e franco-argilosos. É claramente um vinho sedutor. Muito limpo, com fruta muito definida, taninos sedosos, textura perfeita. Não tem qualquer peso a mais, nada se pode apontar que esteja fora do sítio. São ambos vinhos polidos, sem arestas, de grande nível na sua juventude.

A verticalidade de Murças

De Reguengos de Monsaraz, seguimos para o Douro, onde o Esporão está a produzir vinhos na Quinta dos Murças, em Covelinhas - margem direita do Douro, entre a Régua e o Pinhão. Quando João Roquette chegou ao Esporão, em 2006, impunha-se também a vontade de começar um projeto de raiz, de criar uma marca do zero e de aplicar os 30 anos de experiência numa nova região. A escolha do Douro prendia-se com o seu reconhecimento internacional face a outras regiões portuguesas. Em 2008, inicia-se o projeto Quinta dos Murças, uma quinta importante para a região e que, segundo João Roquette, estava à espera de alguém que lhe dedicasse atenção. Tem a sua origem no séc. XVIII, está localizada bem no centro geográfico da região, no início do Cima Corgo, e desenvolve-se em mais de 3 km ao longo do rio Douro. A sua dimensão, tanto em área, como em capacidade de produção tem a escala que João procurava. 155 ha de área total, com 48 de vinha, em altitudes entre os 110 e os 300 metros, todas com exposição sul-oeste, com exceção de uma única que está virada a norte, a Vinha do Assobio (a presença constante de vento justifica o nome).


A riqueza da propriedade era reconhecida mas intuía-se que um estudo aprofundado da sua diversidade viesse revelar detalhes importantes para a filosofia dos vinhos. Assim, com a ajuda de um grupo de especialistas do Loire, foi desenvolvido um trabalho de mapeamento da quinta, que a dividiu em “unidades de terroir”, identificando talhões muito diferentes que, à semelhança do que acontece no Esporão com os tipos de solos, vieram servir de base para o conceito dos vinhos. O que João Roquette destaca com a experiência do Douro, são as diferenças que se encontram em pequenas parcelas que existem lado a lado, e a cadência com que se sucedem essas diferenças.
A toda esta riqueza, junta-se o tipo de vinhas que aqui se desenvolvem. Ao contrário da maioria das vinhas dos Douro, na Quinta dos Murças, estamos perante “vinha ao alto” ou “vinha vertical”. Ou seja, em vez de terem sido criados patamares segundo as curvas de nível, a vinha foi plantada perpendicularmente a elas, tendo na maior parte dos casos, inclinações tão acentuadas que, vistas do rio parecem, estar na vertical. Existem zonas completamente impróprias para quem tem vertigens e que desafiam a imaginação relativamente à forma de tratar a vinha e de fazer a vindima.


Manuel Pinto de Azevedo foi o visionário que, em 1943 compra a quinta e que em 1947 implementa pela primeira vez no Douro vinhas verticais, com a ajuda de engenheiros suíços. Depois, entre 1978 e 1994, João Nicolau de Almeida é o responsável técnico, começando a perceber melhor a relação entre a qualidade dos vinhos e a técnica da vinha ao alto, através de experiências por microvinificação. É a partir do resultado destas experiências que, até hoje, mais de 80% das vinha da Quinta dos Murças são ainda verticais.


A família Pinto de Azevedo conserva a propriedade até 2008, data em que, como vimos, o Esporão concretiza a compra. Em 2010 são realizadas as obras de remodelação da adega, com a separação de brancos e tintos, à semelhança do que acontece no Alentejo. Todo o processo passa também pela recuperação da vinha e por novas plantações. Neste momento, toda a propriedade está com agricultura biológica, e podemos encontrar várias idades nas vinhas. As mais velhas, dos anos 1940, depois, as que foram plantadas nas décadas de 1970 e 1980. Por fim, as que partiram já da iniciativa do Esporão, em 2011.


João Roquette e o enólogo José Luís Moreira da Silva, acreditam que a vinha ao alto é muito mais saudável para os solos, porque evita a erosão, pelo que as vinhas foram recuperadas com esse pressuposto. Para eles, tudo isto faz sentido no cenário de agricultura biológica. João Roquette relembra que toda a experiência deste tipo de agricultura no Alentejo tem de ser completamente enquadrada no Douro. Houve que reaprender tudo. Aqui, existe uma agricultura de montanha, com todas as variáveis que não têm significado no Alentejo, exposições, altitudes, field blends. O clima é completamente diferente. Se no Esporão o míldio e o oídio não são uma preocupação, porque não há humidade, aqui são. Se a cicadela e as pragas de ácaros são o principal inimigo a combater na planície quente, aqui não são um problema.


O que João sublinha é a tentativa de, com a humildade necessária, querer dar a uma região com 300 anos de história, uma visão diferente, sobretudo para os vinhos de mesa. A identidade clássica dos vinhos do Douro está encontrada e o que acha interessante é o que pode trazer de novo. São as alternativas a essa identidade. E o que o está a fascinar é a microescala de uma propriedade no Douro, onde se consegue vinhos completamente diferentes a menos de 200 metros de distância entre as parcelas.
O que toda a equipa da Quinta dos Murças pretende é ver reflectido nos vinhos o que sentimos quando passeamos pelas vinhas. Mais uma vez, é a agricultura biológica o veículo para isso acontecer: “a partir do momento que se começa a perceber o papel da biodiversidade num solo vivo, não há outra agricultura possível”, diz-nos João Roquette.
À semelhança do que se passa no Esporão, também aqui apenas 1/3 da propriedade está plantada, sendo os restantes 2/3 montanha e mata.
Entretanto, a casa da quinta foi recuperada e tem 5 quartos para receber os visitantes que queiram pernoitar. O enoturismo compreende provas, visitas, passeios no barco da quinta e, agora, estadia. A casa foi recuperada mantendo a atmosfera de uma casa de família, privada. O mobiliário, a sala de jantar para as refeições, as zonas de estar, a própria cozinha, todo o programa lembra mais a “nossa casa” que um hotel. E isso faz-nos sentir bem.

Vinhos diferenciados

Em 1994 surge o primeiro vinho DOC Douro da Quinta dos Murças, já que até então a quinta apenas produzia Vinho do Porto. Com a marca Esporão, o lançamento dos primeiros rótulos acontece em 2011, com dois tintos, o Assobio 2009 e o Quinta dos Murças Reserva 2008. Estes vinhos foram feitos por David Baverstock que sempre teve particular gosto por fazer vinhos na região. Desde 2015, o enólogo residente é José Luís Moreira da Silva. Na magnífica sala de provas que se localiza na cave da casa da quinta, começámos por conhecer a gama de entrada, Assobio, com branco, rosé e tinto. A vinha do Assobio tem altitude, está virada a norte e pretende-se, com estes vinhos, tirar partido de toda a sua frescura, com foco nas castas tradicionais do Douro. São vinhos que representam um volume considerável, o branco com 100.000 garrafas, o rosé com 30.000 e o tinto com umas expressivas 400.000 garrafas.


No Assobio branco 2017, é a boca que comanda a prova, que encanta com a sua cremosidade. É um vinho cristalino, com acidez de arestas vivas. O lote inclui Rabigato, Viosinho, Códega, Gouveio e Verdelho. Foi vinificado em inox, mantendo uma frescura declarada, à qual se acrescentou a textura dada pela battonage. De 2017 é também o rosé, cuja vindima foi muito precoce, tendo sido simultânea com a do branco. As castas são Rufete, Tinto Cão, Touriga Nacional e Tinta Roriz. É também um vinho muito fresco, com notas vegetais que vêm temperar da melhor forma o seu carácter frutado. Na boca, é seco e sente-se algum tanino que lhe confere uma fibra particular.
No Assobio tinto 2016, valorizou-se a maceração pré-fermentativa, a frio, de forma a extrair tudo o que a película pode dar. É, assim, um vinho com muita cor. As variedades que constituem o lote são Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz. 10% estagiou em barricas de carvalho francês, usadas, durante 6 meses, tendo o restante vinho estado em cubas de betão. É um tinto que privilegia a frescura e a fruta, que tem algum nervo e um perfil vegetal que se vai descobrindo no final. Para o Quinta dos Murças Minas 2016, foi-nos explicado o nome a partir da localização das vinhas, em encostas onde existem várias minas de água que permitem o equilíbrio entre a maturação (as vinhas estão expostas a sul) e a frescura necessária. Este vinho tem uma quantidade de 40.000 garrafas e resulta de um lote de Touriga Franca, Tinto Cão, Tinta Francisca e Touriga Nacional. Esteve em lagares, com pisa a pé, e fermentou com leveduras indígenas. Depois, estagiou em túlipas e cubas de betão tradicionais, e uma parte em barrica usada, cerca de nove meses. É um vinho com uma dualidade muito interessante entre aromas mais quentes, com fruta madura bem vincada, e uma boca de grande frescura, com um final que lembra pedra molhada.


Já o Quinta dos Murças Margem 2016 tem origem em vinhas localizadas na margem do rio Douro, com baixa altitude e exposição maioritária a sul, e estão entre as mais velhas da quinta. São uvas muito concentradas e que atingem um elevado grau de maturação. Deste vinho, produziram-se 6.500 garrafas e usaram-se as duas Tourigas, Franca e Nacional. Teve pisa a pé nos lagares de granito, tendo estado nove meses em barricas usadas de 500 litros. É um vinho muito bonito, com nariz exuberante, fruta quase insinuante, boca potente, taninos, concentração, com muita acidez. Tudo podia ser excessivo, mas… não é. É muito elegante.


Passamos para o clássico da casa, o Quinta dos Murças Reserva 2012, com 36.000 garrafas. Este é o vinho que mais tempo é guardado até ser lançado. Após o estágio de um ano em barricas usadas de carvalho francês e americano, o vinho fica três anos em garrafa e só depois sai para o mercado. José Luís explica-nos que os outros vinhos são engarrafados e lançados novos com uma intenção. Acredita que quanto mais novo é o vinho, mais se percebe a sua origem. Com o tempo, as diferenças, que são evidentes na juventude, tendem a esbater-se. Por isso, o Minas, o Margem e o VV47 são dados a conhecer muito jovens.
Voltando ao Reserva, é proveniente de algumas das vinhas mais velhas, viradas a poente. O lote é composto por Tinta Roriz, Tinta Amarela, Tinta Barroca, Touriga Nacional, Touriga Franca e Sousão. Os aromas estão um pouco fechados e, na boca, tem volume, sente-se a tosta da barrica, os taninos são areados, existe uma textura bem vincada. Demonstra uma personalidade mais calma, por contraste com o nervo dos “origens”, chamemos-lhes assim.
Depois, conhecemos um vinho que fará certamente história entre os grandes vinhos do Douro. O Quinta dos Murças VV47 2013, cuja primeira edição foi o 2012 (o 3º VV47 será da colheita de 2015). Este vinho foi criado a partir da vinha vertical mais antiga do Douro, plantada em 1947, como tivemos oportunidade de referir anteriormente. Tem uma inclinação (extrema e assustadora) de 40% e uma exposição sueste. A vinha tem castas misturadas, com predominância para Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinta Amarela, Touriga Nacional e Souzão. É um tinto de lagar, com pisa a pé e passou 12 meses em carvalho francês de 3º e 4º uso. É um vinho com um lado misterioso muito sedutor. A boca é enigmática, sedosa, longa. Tem frescura, charme e equilíbrio. É, sem dúvida, um vinho que vamos seguir com curiosidade.


E, se falamos em vinhos que fazem história, a prova terminou com o primeiro vinho de talha do Douro, Quinta dos Murças Ânfora 2017, certificado como DOC Douro. José Luís e João Roquette explicam-nos que existe um conceito sólido neste vinho, que tem a ver com a procura pela expressão mais pura de cada unidade de terroir da quinta. Aqui, estamos novamente a falar das vinhas Minas, escolhendo a menor intervenção enológica possível. Por isso, foi escolhida a talha. Foram feitas apenas 1000 garrafas e o lote tem as variedades Tinta Francisca e Tinto Cão. É um vinho completamente diferente, um pouco desconcertante. A boca viaja entre uma leveza aparente e uma complexidade escondida. Há uma alegria notória, um brilho difícil de traduzir por palavras. Tem um final terroso e aromas com alguma redução. Tem, decididamente, um carácter muito particular, que vem acrescentar algo aos vinhos do Douro.
Conhecemos o Alentejo e o Douro de João Roquette. Percebemos a autenticidade do seu percurso. Estará para breve outra região? Diz-nos que não sabe. Nunca será um objetivo, mas poderá ser um meio. O fundamental é continuar a enriquecer a oferta e, se isso passar por outras regiões, poderá acontecer. Continua a pensar de forma aberta. O Esporão já saiu do Alentejo e até já saiu do vinho (ver caixas). Mais que uma região, João Roquette procura sempre encontrar entusiasmo em produtos que enriqueçam o que o Esporão tem para oferecer às pessoas. E isso passa, certamente, pela alegria e pelo bom gosto que encontramos em tudo o que faz. 
 


 

AZEITE
Quando João Roquette chegou ao Esporão, a produção própria de azeite já tinha 10 anos. À semelhança do que havia acontecido com o vinho, também o azeite foi um projeto pioneiro. O mercado do azeite é um mercado difícil. Os primeiros dois anos de João foram, de certa forma, uma prova de resistência. Era notória a fragilidade deste segmento de produção, mas, ao mesmo tempo, representava já uma marca reconhecida pelos consumidores. João Roquette diz-nos ter demorado a ter a coragem necessária para colocar mais recursos no azeite, mas quando decidiu começar a acreditar seriamente no projeto, as coisas começaram a acontecer, ao mesmo tempo que, por coincidência, se começava a assistir a um crescimento da procura internacional de azeite.
O processo de revitalização passou pela reorganização da parte de produção, tendo-se tornado evidente que havia que construir um lagar dentro da herdade, junto ao olival, que foi inaugurado em 2016. Só dessa forma, se podia garantir que as azeitonas chegassem no seu estado ótimo para que o sumo, ou azeite, fosse também o mais puro.
Quanto ao olival, foram plantados 80 ha em modo de produção biológica, apenas com variedades de azeitona portuguesas, aproveitando as zonas de transição entra as vinhas e as áreas florestais. Além destes 80 ha, que constituem o olival dos Arrifes, existe também um pequeno conjunto de oliveiras centenárias. O Esporão conta com oito azeites diferentes que, no seu conjunto, atingem quase 20% da totalidade das vendas globais da empresa, o que é bem representativo da importância deste produto. No Douro, a produção de azeite na Quinta dos Murças é residual. Existem oliveiras na propriedade, que são um óptimo complemento à vinha, e é a partir das suas azeitonas que é feita uma pequena quantidade de azeite, de grande qualidade, apenas vendido na loja da quinta.

 

CERVEJA SOVINA
Há quatro anos, João Roquette viveu uma experiência, para ele, inédita. Um amigo, o designer Eduardo Aires, levou durante o Verão umas caixas de cerveja artesanal Sovina e João entrou num universo de onde, até hoje, não quis sair. Pelo contrário. Quis perceber como é que uma cerveja pode ser tão diferente, com sabores tão distintos. O produtor de vinho começou a pensar que talvez pudesse alargar o portfólio e ser, também, produtor de cerveja. Dentro do Esporão o assunto foi discutido e percebeu-se que podia ser interessante. O mercado da cerveja, que movimenta milhões em Portugal, mas onde a cerveja artesanal ainda representa apenas 0,5%, vai certamente mudar. Vai evoluir. Já aconteceu noutros países. E, quando acontecer, o mercado vai privilegiar quem já lá está. João lembra a história do Esporão. Começaram a fazer vinho, nos anos 1970-80, quando o vinho ainda era apenas uma commodity. O mesmo aconteceu com o azeite, nos anos 1990. E com a cerveja está a acontecer o mesmo. Em Portugal, é uma commodity. O Esporão, mais uma vez, começou antes dos outros e está a construir uma cultura.
Sendo o Esporão uma empresa com base agrícola muito forte, há uma faceta nas cervejas, que tem a ver a agricultura, que João Roquette gostaria de experimentar. Perceber se poderão acrescentar alguma coisa, com a capacidade de produzir cereais e lúpulo.
Quanto à Sovina nasceu a partir de uma amizade, Pedro Sousa, Alberto Abreu e Arménio Martins, e foi a primeira cerveja artesanal a ser produzida e engarrafada em Portugal, em 2011. Hoje, contam-se mais cem produtores independentes no nosso país e a grande maioria terá começado exatamente através da Sovina, já que na loja se podem adquirir todos os equipamentos e produtos, existem workshops, livros e toda a partilha de conhecimento relacionado com a cultura da cerveja. A Sovina foi comprada pelo Esporão já em 2018, localiza-se na zona industrial do Porto e é uma das marcas líderes no mercado de cervejas Premium em Portugal. A produção situa-se nos 70.000 litros por ano e o mestre cervejeiro é Arménio Martins. Das suas mãos saem seis tipos de cervejas, de produção regular durante todo o ano, bem como algumas cervejas sazonais e produções limitadas. O perfil das cervejas Sovina varia entre as mais fortes, com muito lúpulo e maltes mais poderosos, até às mais suaves e leves.

 

MISSÃO: FAZER OS MELHORES PRODUTOS QUE A NATUREZA PROPORCIONA, DE MODO RESPONSÁVEL E INSPIRADOR
João Roquette diz-nos que a Missão aceita que a natureza tem o seu ritmo, as suas regras. Aceita, até, um ano como este, no qual a produção estava favorável e, em três dias, o escaldão fez perder uma grande parte. “Temos que aceitar e gostar disso”, sublinha, “quando bebemos os vinhos, lembramo-nos disso”. Na missão, cabe também a investigação, para encontrar as melhores soluções para cada local, para conseguir obter o melhor que a natureza pode dar. Já a “responsabilidade”, prende-se muito com o facto de o Esporão ser uma empresa familiar. A responsabilidade com o futuro e com as próximas gerações. João Roquette termina com a imperativa responsabilidade de perceber o papel do Esporão na sociedade, “Somos nós que trabalhamos para a sociedade e não a sociedade que trabalha para nós. As empresas só vivem se existirem pessoas para comprar os nossos produtos. Temos que perceber se aquilo que estamos a fazer é relevante para as pessoas.”

 

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