Tanoeiros, cirurgiões da madeira

Fotografia: Daniel Luciano
Marc Barros

Marc Barros

Atores incontornáveis no universo dos vinhos, os tanoeiros são verdadeiros resistentes – resistem à introdução da maquinaria que substitui a arte e a força de braços, resistem aos ditames contabilísticos das empresas, resistem à invasão de inox, talhas e ânforas. Nas Caves de Vinho do Porto ainda há quem mantenha uma tanoaria, que alberga sete homens, de diferentes idades, mas com um único fito: preservar um stock de milhares de cascos.

 

 

Sete homens mantêm viva, nas Caves de Vila Nova de Gaia, uma atividade que o tempo, as conveniências empresariais e folhas de Excel foram encarregando de reduzir até ao seu quase desaparecimento do coração histórico do Vinho do Porto.
Ser tanoeiro é mais do que uma profissão: é uma arte, cuja mestria é alcançada ao longo de muitos anos, por mãos hábeis e braços fortes, que remonta a um passado e a uma sabedoria transmitida de geração em geração, as mais das vezes de pais para filhos ou tios para sobrinhos.
As caves Cockburn’s albergam hoje a última tanoaria de Vila Nova de Gaia. Sete, como dissemos, a fazerem lembrar “Os Sete Magníficos”, verdadeiros cirurgiões da madeira, que têm como única missão manter e reparar os cascos de todo o grupo Symington, detentor daquela marca de Vinho do Porto desde 2007.
A Symington Family Estates detém 11 mil cascos, dos quais 270 balseiros e 175 tonéis, nos cerca de seis hectares de armazéns em Gaia, que incluem ainda as caves Dow’s e Warre’s; nos armazéns da Cockburn’s repousam 6518 pipas de Vinho do Porto em envelhecimento, para além do equivalente a mais de 10.056 pipas em tonéis e balseiros. Trata-se de um stock valioso, cujas vasilhas em madeira necessitam de atenção e reparação constante. A Symington Family Estates é uma das poucas empresas de Vinho do Porto que possui uma equipa de tanoaria própria.

António Sá, o mestre

António Sá já leva mais de 40 anos de profissão. “Acabei a escola com 14 anos e entrei como aprendiz de tanoeiro”, recorda. “Aos 18 cheguei a tanoeiro de primeira, depois de passar por barrileiro, casqueiro, tanoeiro de terceira e tanoeiro de segunda, até estar preparado para ser tanoeiro de primeira”. Há “cinco anos na Cockburn’s”, o chefe desta tanoaria assume-se como o guardião de uma arte que teima em resistir. Como? “Pelos anos de casa, pela experiência e sabedoria” adquirida junto “dos mais velhos”.
Estes tanoeiros têm a responsabilidade de reparação e manutenção dos cascos. Aqui não se fazem cascos novos, até porque as instalações onde operam não permitem já a utilização do fogo ou do vapor, tão indispensável à moldagem da madeira. “Além de repararmos os cascos, balseiros e tonéis em Gaia, temos também a responsabilidade de manutenção dos cascos que estão nos armazéns no Douro”, explica. “Sempre que vem o lote, fica uma equipa a vistoriar os cascos e quando se deteta uma pipa ‘rota’ ou a madeira partida, esse casco vem para a tanoaria para ser reparado”. Estes ‘cirurgiões’ operam apenas utilizando “madeira de outros cascos, já avinhada”. A madeira nova, “que não tem avinhação, larga para o vinho os taninos” que vão alterar a perceção organolética dos vinhos.


Em que consiste, na prática, este ofício? “Recebemos a pipa velha e analisamos quantas aduelas tem o casco”. Em seguida, “verificamos qual a madeira que está partida e marcamos”. Para que o casco seja intervencionado, “metemos a mole de virar” (primeiro arco em ferro), “pomos o casco ao alto, numeramos todas as aduelas a partir da aduela do batoque - caso tenha o azar de cair ao chão sabemos onde está”. As aduelas contíguas “são corridas na máquina para que, ao entrar, possam fazer a vedação do casco”. Depois juntamos “as parceiras que estão partidas” para que, “quando entrar a madeira nova, possa casar direitinho com as restantes”. Nas juntas, entre aduelas, são colocadas palhas que vedam o casco de madeira. 
Dito assim parece fácil. Mas se pensarmos que para colocar adequadamente todos os arcos em ferro de cada casco - mole, javre, colete, rabo-palhas, sobrebojo e bojo – são utilizados malhos (marretas de bastir) cujo peso pode ir dos dois aos cinco quilos, num percutir constante que marca a toada regular (o ritmo, se preferirmos) da tanoaria, fica-se com uma leve ideia da dureza do trabalho. Mas também o seu nível de especificidade – basta referir algumas das dezenas de ferramentas que podem ser encontradas numa tanoaria, com nomes tão incomuns como alheta, baixete, cunha de empalhar, descravadeira, gato, goiva, moço, pareia, ponção, repuxo, travadeira ou tufo, para além de outros mais familiares, como compasso, fogareiro, funil, mola ou talhadeira. 
Após um período de receio quanto ao desinteresse dos mais jovens pela arte, António Sá mostra-se confiante na continuação do ofício de tanoeiro. “Temos dois jovens a aprender e prometeram-me mais, pois outros estão a aproximar-se da idade da reforma”. E, apesar de já não se construírem cascos de novo como já fez nos seus primeiros anos, António Sá pode ainda ir explicando “como se faz uma pipa nova”.
Na casa, o mais velho tem 61 anos de idade e o mais novo 24, sendo que o membro mais recente deste grupo dos sete tem 28 anos. Para António Sá, cativar os mais novos para a profissão “passa por maior divulgação sobre a arte”. Desta forma, acredita, “podíamos passar o bichinho de trabalhar a madeira e a importância que tem no vinho”. Para que, no futuro mais próximo, não seja necessário explicar o que é “ser tanoeiro – temos que dizer que é compor uma pipa”.

Alto e pára o baile (perdão, a dança)

José Morais Paradança é hoje o mais velho da equipa, tendo entrado no mesmo dia que Gil Moreira, outro “veterano”. Com 41 anos de casa, recorda o tempo em que o chão era em terra e os tanoeiros não usavam calçado adequado como hoje, apenas umas madeiras amarradas com fivelas.
O seu nome original é motivo constante de brincadeira entre os colegas: até porque, com o passar dos anos, José Paradança afinou de tal forma o ouvido que consegue, com o bater dos dedos nos cascos por onde passa, detetar falhas e fugas. Mesmo assim, a dança não pára para José. “Vim para aqui em 1973 com 15 anos, foi o meu tio que me meteu; já trabalhava aqui e geralmente só pessoas de família vinham para cá. Como estavam a precisar de tanoeiros vim para a tanoaria”. “O meu falecido pai também já o era, não aqui na empresa mas fora”. José Paradança percorreu todas as secções: “Estive na tanoaria 10 anos; depois desse período abriu uma vaga para fogueiro na caldeira”. 
A “caldeira”, como diz José, é uma máquina a vapor da Robey & Co., de Lincoln, Inglaterra, produzida em 1921, tendo sido usada até finais do século XX para gerar o vapor com que se aquecia a madeira empregue no fabrico de pipas e para aquecer a água da cantina. Esta que é agora uma das peças museológicas com mais interesse do espólio das Caves Cockburn’s foi colocada à força de grua, tendo obrigado ao levantamento do telhado para ser depositada no local onde repousa hoje, na sala contígua à tanoaria.
Ser tanoeiro no tempo em que José Paradança começou o ofício era bem diferente da atualidade – desde logo porque não despertava a curiosidade turística de hoje. “Mudou muita coisa”, recorda. “Fazíamos pipas de novo em carvalho, francês e nacional; no meu tempo não se faziam em castanho, isso era no tempo dos velhotes”, atira com um sorriso a dançar nos seus olhos alegres. Na tanoaria “já corri as profissões todas, fui carpinteiro e eletricista, mas sempre com a coisa de ser tanoeiro”. E também dá uma ajuda “a ensinar os mais novos quando é preciso”. Até essa aprendizagem é hoje diferente: “As pessoas de idade eram mais rudes – se fosse preciso pegavam numa aduela e davam no moço - ainda apanhei um bocadito, mas depois do 25 de abril isso acabou”.

O guerreiro de Sandim

Dá pelo nome de Pedrinho na sua outra atividade - jogador de futsal do Modicus, que milita na I Liga de Futsal, na posição de ala. Pedro Cruz, 28 anos de idade, está na casa há cerca de um ano, trazido por um tio que por lá passou. “Estive no engarrafamento como trabalhador temporário mas surgiu a oportunidade vir para aqui, fui a uma entrevista e fiquei”. Das conversas de família, em casa, Pedro ouvia falar na arte mas nunca soube ao pormenor o que era – “só quando vim para aqui fiquei a saber”. “É muito duro, não estava habituado e é pesado. É uma arte que demora a aprender, mas estou a gostar”. 
Os primeiros seis meses foram de aprendizagem com o chefe António Sá. “Agora vou-me lançando aos poucos, acho que já consigo fazer a maior parte das coisas sozinho, mas ainda falta muito para ser tanoeiro”, assume.
Conciliar a profissão de tanoeiro com a faceta de jogador de futsal “é complicado”, resume. Depois de um dia de trabalho parte para o treino diário, a que soma os jogos aos fins de semana. “Chego ao final da semana um pouco mais cansado mas tento descansar o melhor possível à noite”. Afinal, “é uma questão de hábito – gosto de dar o máximo, quer no trabalho, quer no campo”. Quando “tento explicar aos colegas de equipa que sou tanoeiro ficam a olhar para mim, mas digo que faço pipos e já percebem. Dizem que sou um guerreiro porque isto é uma arte dura”.


O Centro de Visitas das Caves Cockburn’s tem um dos seus pontos altos na possibilidade que confere aos turistas de assistirem in loco aos trabalhos dos tanoeiros. A entrada não é permitida, por razões de segurança, mas todas as explicações são asseguradas pelos guias turísticos da casa. A sua formação é uma das funções de António Sá, que garante desta forma que todas as perguntas dos visitantes não fiquem sem resposta.
Pelo centro de visitas, dito das Coradas, que abriu há cerca de 18 meses, deverão passar, segundo Zélia Reis, responsável de marketing e enoturismo da Symington, 35 mil visitantes em 2019. É esta divulgação, acreditam, que contribuirá para perpetuar a arte do tanoeiro, preservando o carácter e a magia das Caves de Gaia. Ao ritmo do pulso destes artesãos, verdadeiros cirurgiões da madeira.