2022: uma vindima de enólogo

As geografias que passaram pior foram as que possuem menores índices anuais de pluviometria ou que têm escassos recursos hídricos. Por exemplo, em zonas como o Douro Superior, as novas áreas de vinha que têm sido plantadas nos últimos 20 anos estarão nos locais certos ou estão a revelar-se dramáticos erros de casting?

 

“A vinha é uma planta do caneco”. A expressão é do enólogo Jorge Rosa Santos, atirada no final de um telefonema em que lhe pedia um comentário acerca do decorrer das vindimas. Ainda não eram meados de setembro e a sensação partilhada tinha contraditórios – a apanha decorria sem sobressaltos relevantes no Alentejo, a preocupação estava toda com o Douro, havendo já confirmação de perdas de mais de 50% de uva branca no Douro Superior.
Em finais de agosto, já com os trabalhos a grande ritmo por todo o país, chegavam relatos de temor de diferentes regiões. Casos havia em que a entrada de uva na adega suscitava uma dupla intervenção enológica, muito pouco comum quando necessária em simultâneo: corrigir açúcares e acidez (!).


O nervosismo era evidente e mais ou menos generalizado. Porém, à medida que o mês de setembro fora passando, os ânimos também recuperavam. Rui Reguinga, autor de vinhos pessoais e consultor em regiões como o Tejo, Alentejo, Península de Setúbal, Beira Interior ou Dão, admitia temer “o pior quando a vindima começou”, mas a pouco a pouco “a coisa compôs-se”.


Várias outras citações poderia aqui trazer, nem todas convergentes com as que acabo de citar. Mas, uma coisa é unânime: 2022 não é um ano fácil também no vinho.
O comportamento diverge de região para de região e até mesmo dentro de uma mesma denominação de origem. João Rosa Alves, diretor de produção da Menin Wine Company, dava conta do aumento da quantidade de uvas no Baixo Corgo, manifestando satisfação com a qualidade genérica das uvas que iam entrando na adega. O Douro, aliás, terá sido a região dos principais contrastes.
As vinhas de cotas mais baixas, mais próximas do rio e viradas a poente e a sul, foram as que mais sofreram. Curiosamente, essas são as localizações privilegiadas das vinhas Letra A, as que recebem maior benefício... A Touriga Franca, esteio da região e quase sempre a última variedade a ser colhida, foi este ano das que mais vacilou, tendo boa parte sido apanhada bem antes da plena maturação para evitar que ficasse passa na videira. Os primeiros vinhos brancos não foram nada promissores, mas quem teve nervos de aço nas localizações de maior altitude saiu beneficiado. Em finais de setembro, nos altos do Douro, incluindo até no madrasto Douro Superior, estavam ainda a ser colhidas uvas brancas em pleno estado de maturação, bem depois de terem já sido apanhadas as tintas – presenciei isso em Foz Côa e na Mêda.


Nas regiões de perfil mais fresco, seja pela influência atlântica ou pela maior altitude, as dores de cabeça durante a vindima foram menores. A maioria dos problemas ficou lá mais atrás, na sequência de alguns episódios severos de escaldão ou doenças na vinha (míldio, nalguns casos, oído, noutros). 
O Douro tem estimativas de perdas de produção acima dos 30%, Lisboa na fasquia dos 20%, o Dão e a Beira Interior podem ter quebras em torno dos 10%, que são de menor expressão na Península de Setúbal e no Alentejo. Vinhos Verdes, Tejo e Algarve aumentam o volume, Bairrada fica semelhante ao ano anterior. Nos arquipélagos, perdas de 7% a 10% na Madeira e Açores, respetivamente.

As vinhas velhas e a água

É normal tentar-se paralelismos com colheitas mais próximas na nossa linha temporal, mas não consegui identificar um consenso nesse ponto. Alguns produtores e enólogos relembraram o que se passou em 2009, outros o que aconteceu em 2013, outros ainda acentuaram não terem memória de algo assim. Tudo o que aconteceu suscita reflexões .

A primeira relaciona-se com a impressionante capacidade de resistência das vinhas velhas. Os melhores bagos da vindima de 2022, sobretudo nas regiões de maior adversidade no ano vitícola, foram os das vinhas antigas, o das verdadeiras vinhas velhas. Por si só menos produtivas, também registaram quebras de produção mas a sanidade e qualidade foram praticamente irrepreensíveis. Os bagos eram pequenos, alguns não tinham o melhor aspeto visual, mas o interior estava impoluto. A esmagadora maioria destas vinhas tem raízes bem profundas, que conseguem resgatar água e nutrientes necessários face à inclemência das temperaturas altas e da seca. Muitas delas estão plantadas em vaso, sem qualquer armação, próximas do solo e com bastante folhagem, o que ajuda a um maior emsombramento e menor necessidade de recursos a extrair do solo. Vinhas tridimensionais, antíteses dos sistemas de condução moderna… que se riem das mais novas em anos de maior dificuldade.
As geografias que passaram pior foram as que possuem menores índices anuais de pluviometria ou que têm escassos recursos hídricos. Por exemplo, em zonas como o Douro Superior, as novas áreas de vinha que têm sido plantadas nos últimos 20 anos estarão nos locais certos ou estão a revelar-se dramáticos erros de casting?
Sendo a água um bem escasso, como anos quentes e secos como comprovam, faz sentido continuar-se a discussão acerca de ser ou não permitida rega nas vinhas? E como estamos em matéria de discussão de dessalinização de água do mar para a aplicar na agricultura em geral?


Perante a aridez a que estamos a assistir, as regiões portuguesas de maior exposição ao calor e de menor ensombramento serão as apostas a fazer na viticultura?
Há debates que continuam por fazer, decisões empurradas com a barriga, cinismos e medos de colocar o dedo na ferida. Sem nenhuma tentativa de alarmismo, é por demais evidente que estamos confrontados com a necessidade de refletir acerca da sustentabilidade da viticultura em Portugal. Até quando continuaremos a fugir?


Noutro nível de discussão, a jusante, algo igualmente significativo merece análise pela fileira do vinho – o vinho português à venda nas prateleiras do mundo por tuta e meia continuará a ser um negócio de futuro?
“Os vinhos do Douro a 5,00€ na prateleira têm os dias contados”, vaticinava Rupert Symington, CEO da Symington Family Estates, no recente lançamento do Chryseia 2020. 
Ao presenciarmos uma vindima no Douro, ao respirarmos por momentos o pó, ao sentirmos por instantes o calor, ao observarmos as rugas de esforço de quem ainda se sujeita a apanhar uvas só podemos concordar que não, que não será possível continuar por esse caminho. Mas, quem está disponível a ir apenas pelo caminho alternativo?


No meio de tudo isto, algo é reconfortante. Contra ventos e escaldões, contra secas e secões, ela continua a resistir e a dar fruto, mesmo em anos agrestes como este 2022. A vinha é mesmo uma planta do caneco!

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