Madrid é na atualidade das mais fervilhantes cidades espanholas a visitar. A capital parece querer, de uma certa forma, recuperar parte do protagonismo extra político que pareceu entretanto perdido para localizações como Barcelona ou San Sebástian. Afirmam-se restaurantes de autor (por curiosidade e para quem o segue, contam-se hoje 28 restaurantes madrilenos estrelados no Guia Michelin), há spots bem interessante para tapear, os bares de vinhos, espirituosas e cervejas sabem sempre bem com uma mera tábua de presunto e, a par de tudo isso, está incrementada uma indústria de luxo e exclusividade que oferece experiências ao nível de outras grandes capitais europeias.
Neste regresso a Madrid, já nos primeiros e bem frios dias deste novo 2025, o contexto foi familiar e sobretudo voltado para iniciar a criançada na descoberta de algumas das mais notáveis obras de arte em termos de pintura. Sim, as coleções artísticas que figuram nos fantásticos museus de Madrid são de valor ímpar e a política cultural espanhola convida ao usufruto em grupo, sem preconceitos de nenhuma espécie. Crianças e velhos não pagam, estudantes não pagam, investigadores ou jornalistas que estejam a desenvolver algum tipo de trabalho relacionado com arte ou investigação artística são bem-vindos.
Por contraponto com a miserável política cultural dos sucessivos governos portugueses, dá gosto perceber que no país vizinho o valor dado ao acesso à cultura é tremendo. Aliás, não por acaso os museus estão repletos de milhares de visitantes e dezenas de funcionários, os processos são descomplicados e facilmente interpretáveis, criam-se as condições que permitem gerar uma indústria cultural que, em última análise, promove a imagem de cidades e a cultura de um país.
Espanhóis e outros europeus, americanos e muitos asiáticos, é vê-los horas a fio a percorrer corredores de cultura, numa espécie de fórum democrático mundial onde, como que por magia, todos falam uma só língua - a da contemplação. Picasso, Miró, Velásquez, Rembrandt, Goya, Dali, El Greco, o nosso Almada Negreiros, entre tantos e tantos outros, e isto só para mencionar coleções expostas no Museu do Padro e no Museu Reina Sofia.
Obviamente, no final de cada visita os pais auscultam os mais novos acerca das preferências e a votação nesta família pendeu claramente para as pinturas mais próximas temporalmente de nós sendo que, como obra de arte individual, o impacto de Guernica sobressaiu. Eu, analfabeto confesso de artes plásticas, continuo fiel a Salvador Dali, o pintor surrealista que considero ter sido um génio e sobre o qual, ao longo dos anos, tenho procurado saber e conhecer mais.
Conduzir, não impor
Nos derradeiros dias do ano findo, num dos enésimos contextos sociais em que o vinho estava por lá, dou por mim a ser chamado para um acalorado e despropositado debate sobre as virtudes do vinho A em detrimento do B, havendo o advogar do primado de um determinado estilo sobre o outro. E eis que do nada começam a discorrer sobre regiões e produtores, sobre castas e tempos de estágio em barrica, frequentemente confundindo conceitos e misturando o que não é recomendável fazer-se.
Confesso que a minha paciência - perdão, a minha pachorra - para esta espécie de debate começa a ser cada vez menor. Quando chamado a intervir, dou por mim a ser aquele chato que procura explicar a razão pela qual provavelmente o vinho A é como é e o B também tem lugar por ser como se apresenta.
O vinho, tal como uma expressão artística, tem uma amplitude de gosto tão extensa que é apenas imbecil tentarem-se padronizações deste ou daquele estilo, qual trincheira em tempos de guerra.
Em 2024 tive a felicidade de provar vinhos extraordinários, tal como centenas de vinhos corretos, daqueles pensados para serem apenas o que são. A generalidade de uns e outros cumpria os desígnios a que se propunha, tendo uma elite conseguido elevar-se a um estatuto superlativo. O disco rígido da memória permite-me ainda recordar os mais entusiasmantes embora, em contextos extra provador, tenham sido os momentos em que determinadas garrafas se abriram a contribuir para a efetiva recordação. Um provador de vinhos, talvez como um crítico de qualquer outra coisa, também é um vulgar humano, sujeito a contextos e a momentos específicos.
Neste arranque de 2025 parto com a ilusão, essa expressão tão querida dos espanhóis, de continuar a ser surpreendido. Estou pronto para o dever de provar vinhos corretos, esperando não ficar toldado pela emoção sempre que me confrontar com um vinho superlativo.
No julgamento de ambos espero ser justo e democrático, uma vez mais, em nome da amplitude do gosto.
Quem trabalha diretamente na indústria ou com a indústria do vinho incorre frequentemente no erro crasso da imposição de um gosto. Nos próximos anos, essa postura revelar-se-á suicida, na medida em que só afastará eventuais consumidores de um primeiro ou mais assíduo contacto com o vinho. E a indústria, não esqueçamos, está sedenta de novos consumidores que, mesmo bebendo menos, estarão disponíveis a pagar mais mas, acima de tudo, a serem corretamente
guiados num caminho de descoberta que, a longo prazo, lhes possibilite identificar e evoluir no próprio gosto.
Um dos desafios familiares será, a curto prazo, ver os filhos a desinquietar os pais para a descoberta de uma coleção de um pintor menos óbvio. E se o ciclo regular não for interrompido, haverá o médio prazo em que serão os filhos a abrir uma garrafa que seja uma absoluta ou até mesmo inusitada novidade. Em qualquer circunstância, espero ter o discernimento de manter uma boa troca de ideias em vez das infantis discussões sobre o quanto devemos ser pró-A ou pró-B. O objetivo é manter e reforçar laços, não afastar ainda mais aquilo que os loucos dias de hoje tantas vezes já insistem em esfriar.
Seja em Madrid, Londres, Paris, Nova Iorque, Tóquio, São Paulo, Lisboa, Porto ou Fornos de Algodres, as virtudes de uma criação podem ser contempladas se houver respeito pela amplitude do gosto. E, claro, facilitar o acesso, evitar irracionalidade ou pedantismo ajudará sempre.