A fronteira entre rosés escuros e tintos leves

Será que o mercado quer vinhos rosé sérios? Por vezes, aquilo que os ‘geeks’ do vinho apreciam e o mercado deseja são coisas muito diferentes.

 

O vinho costumava aparecer em três cores. Tintos, brancos e rosados. Os tintos e os brancos eram capazes de grandeza, mas o rosado era apenas para diversão. [Ultimamente, têm surgido vinhos de uma quarta cor - vinhos laranja, feitos de uvas brancas fermentadas nas películas, mas esta ainda é uma categoria menor]. Os vinhos rosé, no entanto, cresceram em popularidade em muitos mercados. Em França, as vendas de rosé alcançaram as dos brancos e, de maneira geral, a quota dos vinhos rosados no mercado global é agora superior a 10%.


Mas a categoria rosé tem lutado para ser levada a sério. É difícil elaborar uma lista de vinhos rosé que sejam considerados parte integrante do mercado de vinhos de patamar superior. E não é que os operadores não o tenham tentado. Duas notáveis exceções do topo vieram do sul de França. Desde logo, a impressionante linha de rosés caríssimos e lindamente embalados de Sacha Lichine do Château d'Esclans, na Provence, com o icónico Garrus na liderança do mercado (PVP em torno de 100€). E o novo Clos du Temple rosé de Languedoc, de Gérard Bertrand, que vai ainda mais longe, sendo vendido a 200€.
No geral, porém, a tendência - liderada pela Provence, a capital dos vinhos rosés - tem sido fazer vinhos cada vez mais pálidos, com cores delicadas que parecem mais atraentes quando engarrafados em vidro transparente. [Como um aparte, o vidro transparente é uma má jogada para a qualidade do vinho, por causa da potencial influência nefasta da luz direta].


As tentativas para produzir vinhos rosé sérios têm sofrido com a ênfase colocada na cor pálida, pois limita a capacidade dos produtores de vinho em extrair compostos aromáticos da película das uvas. Além disso, muitos dos rosés mais claros tiveram a sua cor alterada pelo uso de carvão ativado que, ao tornar os vinhos mais pálidos, também remove um pouco do sabor. Isso fez com que os produtores, ao procurar fazer vinhos rosados com forte personalidade, tenham que correr em busca do sabor. 
Os produtores de rosé mais ambiciosos tiveram que explorar novas maneiras de dar sabor aos seus vinhos. Uma destas formas passa por usar a fermentação em madeira, que corre o risco de transmitir sabores de carvalho que podem estar um pouco fora do lugar. Outra é usar a estabulação do mosto [no original, ‘stabulation’], que envolve misturar o mosto com as borras após a prensagem, a baixas temperaturas. A operação decorre ao longo de vários dias. Também ouvi falar de produtores que fermentam variedades brancas aromáticas com as películas depois de serem prensadas.

O que pede o mercado 

Mas o mercado quer vinhos rosé sérios? O sucesso sugere que, aquilo que os ‘geeks’ de vinho apreciam e aquilo o mercado deseja são, por vezes, coisas muito diferentes. Mas, na procura de vinhos rosados mais sérios, um caminho a seguir é o renascimento de uma velha tradição: os vinhos palhete ou clarete, que eram, antigamente, coisa séria em Portugal e Espanha.


São vinhos tintos mais leves feitos de uma mistura de uvas tintas e brancas e posicionam-se em algum lugar entre as categorias rosé e vinho tinto, habitando uma fronteira entre territórios intermediários na paisagem do vinho, que podem ser sérios e distintos e, ao mesmo tempo, possuem essa característica tão procurada – serem bebíveis. É uma categoria que me interessa muito. O vinho palhete nunca teve a intenção de ser sério: originalmente, estes eram vinhos um tanto rústicos, elaborados num estilo leve e bebível, com níveis de álcool modestos. Seriam os vinhos que os trabalhadores rurais beberiam durante o dia. Mas o surgimento do movimento do vinho natural e a tendência para vinhos tintos de estilo mais leve abriram uma oportunidade para os produtores começarem a fazer interpretações modernas desse estilo antigo e elaborar algo mais sério, mantendo a essência do palhete: a dita ‘drinkability’.
Alguns exemplos. Folias de Baco é um projeto do Douro e o seu Uivo Renegado é um grande exemplo de palhete. É uma mistura 50/50 de uvas tintas e brancas de muitas variedades. Provêm de vinhas velhas plantadas num planalto do Douro a 550-700 m, com solos argilosos e graníticos e também xistosos. As uvas são fermentadas em cachos inteiros em lagar e depois estagia num ‘mix’ de carvalho usado e cimento. O vinho resultante é de cor rosada / rubi brilhante e tem uma elegância adorável – e bem mais do que um toque de seriedade.


Em Ribera del Duero, um grande exemplo de palhete (aqui chamado clarete) é o Picaro del Aguila, de Aguila - um dos maiores produtores da região. Apresenta-se cheio, de cor rosada / laranja e é um vinho marcante, com um toque saboroso e picante de cereja doce e frutas silvestres, mostrando uma complexidade adorável.
Ricardo Santos é o responsável pela XXVI Talhas, que tem sede na Vidigueira. Ricardo e os seus colegas assumiram a adega do Mestre Daniel (Daniel Tabaquinho dos Santos), que possui 26 Talhas (300-1200 litros) que estavam inutilizadas há 30 anos (desde a morte do Mestre Daniel em 1985). Um dos seus vinhos é o Tinto de Tareco Palhete, ‘field blend’ de castas tintas e brancas feito numa talha de 600 litros que foi revestida a cera nesse ano. Sabe como um tinto leve, com um pouco mais de garra.
Outro bom exemplo é o vinho verde Aphros Phaunus Palhete, também feito em ânfora, sem recurso a quaisquer maquinarias elétricas. Combina Loureiro e Vinhão e o resultado é um tinto mais claro, complexo e intrigante. Embora esses rosés mais escuros e tintos mais claros possam não ser populares no momento, é encorajador ver o surgimento dessa nova categoria.
 

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