A sinceridade compensa?

Os espalha brasas das redes sociais e de alguma imprensa viverão alguns momentos de glória mas cairão no descrédito. Os influenciadores venderão banha da cobra a parecer informação, mas pouco serão relembrados pela vida e obra. Os grandes vinhos, obtidos nos grandes anos, entrarão na história e permanecerão como referências de um país, de uma região, de um autor. Os supostos grandes vinhos de anos de qualidade questionável serão golpes de sorte ou estranhos casos de sucesso, que raramente serão perpetuados na memória coletiva.

 

Mentir é feio. Essa será porventura uma das primeiras lições que nos ensinam em criança, sempre com o fito de criar uma saudável relação de confiança, que se pretende mútua e duradoura, de preferência à prova de bala. Já em adulto aprendemos a lidar e até a perdoar a mentirinha piedosa. Acaba por tornar tudo mais fácil, não obriga a grandes confrontações, muito menos a substanciar a divergência de opiniões ou de decisões.
Uns povos toleram mais isso do que outros. Por exemplo, admiro a forma quase sempre frontal com que alguns anglo-saxónicos tratam a mentira – evitam-na, optando pela sinceridade. Se isso custar um torcer de nariz ou um esbatimento de rosto na outra pessoa, paciência. Como diz o ditado, quem diz a verdade não merece castigo.


Somos por cá muito de paninhos quentes, numa espécie de linha de fronteira que chega frequentemente a roçar a falta de coragem, nalguns casos, e mesmo a hipocrisia, noutros. Há ainda casos e povos que gostam de levar a tal mentirinha piedosa ao cúmulo do exagero, tendo a capacidade de dizer olhos nos olhos que se apreciou muito determinada ideia ou gesto para, no segundo a seguir ao voltar de costas, destruir-se por completo o que se acabou de elogiar. Dupla personalidade? Casos compulsivos de mentira? Talvez o sejam mas, sinceramente, parecem-me traços de comportamento intrinsecamente ligados ao ADN de determinadas sociedades, algo que vai transitando de geração em geração, com tolerância geral em determinado meio.
As diferentes áreas da sociedade refletem muito os povos. Nas democracias mais avançadas do mundo, como as dos países nórdicos, político que mente ou esconde é descartado no minuto seguinte. Por aqui perdoa-se, minimiza-se, ignora-se, tenta-se esquecer, muito em particular se esse alguém que estiver na berlinda tiver feito algo pela nossa rua. Pode ter sido larápio, mas roubou a nosso favor ou fez outras coisas boas. Perdoe-se, parece assim ditar o julgamento popular. É necessário um roubo de igreja ou muita trapalhada grave e consecutiva para se confrontar esse alguém com a importância da verdade. Podemos olhar a política, a finança, o desporto, mas também podemos ver o vinho por esse prisma.


Enojo-me com frequência perante as tentativas diárias de assassinato de carácter nas páginas das redes sociais. Também em tempos fui vítima disso e cometi um erro: ter exercido uma espécie de defesa da honra tarde demais. 
Julgam-se vinhos que nunca se provaram, criticam-se estratégias só porque não são as mais populares, levantam-se todo o tipo de suspeições só porque parece ter ficado convencionado que nas redes sociais vomitar pensamentos gera “likes”. Mais gravoso é ocupar espaços supostamente de informação com formatos entretidos, que mais não são do que narrativas dignas de novelas ou revanchismo arcaico.  
Há porém um perigo nestas coisas. Pessoas mais incautas ou menos informadas podem acreditar na mentirinha, no engodo, na difamação, quem sabe até numa realidade imaginária, paralela.

Honestidade intelectual

“Fake News – Não te Deixes Enganar”, de Marc Planas, Simona Levi e ilustrações de Kim Amate, editado pela ASA, é um dos livros atualmente disponíveis nas livrarias portuguesas, literatura juvenil que recomendo. Ofereci um exemplar à minha filha, que por estes tempos de início de adolescência vai contactando assiduamente com a internet e as redes sociais. Por muita vigilância parental que exista, é sempre muito mais o que nos escapa.
A quem me questiona sobre como aprender mais sobre vinho recomendo que fuja das redes sociais, que não se deixe influenciar por opiniões de supostos prescritores. Aconselho sempre os livros clássicos, complementados pela experiência pessoal da descoberta. Evite-se, a todo o custo, educar o gosto pelo preço dos vinhos ou incorrer no seguidismo das modas. Descubra-se, de forma minimamente isenta e informada, para a partir daí ir educando o gosto pessoal.
A própria indústria do vinho, no entanto, nem sempre convive bem com a frontalidade das opiniões. Quando um produtor ou enólogo questiona-me sobre o vinho que acabo de provar parece muitas vezes esperar uma mentirinha piedosa em detrimento da verdade. Que raio, para isso não perguntava, dou comigo a pensar.


Mais gritante é o caso das apreciações de anos vitícolas. Quem estiver atento ao que se diz facilmente conclui que todos os anos de vinho são muito bons ou excecionais, faça chuva ou sol. Mesmo nos anos mais ingratos, o discurso acaba invariavelmente na ladainha da menor quantidade mas uma qualidade acima do expectável. Fake news?


Há um exercício de honestidade intelectual que produtores e enólogos terão que praticar mais vezes – assumir que trabalham numa indústria ao ar livre, profundamente ligada a episódios e factos climatéricos impossíveis de domar. Uns anos serão certamente excecionais, muitos outros bons, alguns serão apenas os possíveis. Não há mal nenhum em assumi-lo e é totalmente errado pensar-se que isso ditará, por si só, o comportamento das vendas.
Praticar o exercício da honestidade intelectual é gerador de confiança e, acredito convictamente, motivo extra de valorização de um produto. Se não há dois vinhos iguais, não há mal algum admitir que nem todos os anos são bons para a produção de vinho. Assuma-se, nesses anos menos bons, que a produção é menor, que a qualidade foi a possível, que esta ou aquela referência ficaram por lançar porque a céu aberto, por várias mezinhas que se façam nas vinhas ou pozinhos que se coloquem na adega, nem sempre é possível assegurar a obtenção de grandes vinhos.


Os espalha brasas das redes sociais e de alguma imprensa viverão alguns momentos de glória mas cairão no descrédito. Os influenciadores venderão banha da cobra a parecer informação, mas pouco serão relembrados pela vida e obra. Os grandes vinhos, obtidos nos grandes anos, entrarão na história e permanecerão como referências de um país, de uma região, de um autor. Os supostos grandes vinhos de anos de qualidade questionável serão golpes de sorte ou estranhos casos de sucesso, que raramente serão perpetuados na memória coletiva.


A sinceridade compensa? Talvez seja ingénuo em acreditar que sim. Pode custar ou ser até inglório, mas adormecer de consciência tranquila é algo que não tem preço.

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