A Wine Detective investiga a filoxera

Nestes últimos tempos tenho andado a provar amostras de Porto Colheita. Da Kopke, os distintos Colheitas Branco e Tawny de 1940 (com os 2003, 1980 e 1960 para contextualizar) e, da Taylor’s, o Colheita Tawny de 1970. O inebriante Colheita Tawny da Kopke, de 1980, proporcionou-me uma doce viagem nostálgica aos meus anos de adolescência - música eletrónica new wave, a minha camisa favorita aos folhos New Romantic. Que dias! E que escape...


No período de confinamento, o filme da Netflix com maior audência no Reino Unido foi 'Contágio'. Não consegui forçar-me a vê-lo. No entanto, senti-me inexoravelmente atraída pelo livro de Christy Campbell, 'Phylloxera - How Wine was Saved for the World'. Os problemas de biossegurança que emanam do seu relato sobre o caos causado pela phylloxera vastatrix mostram-se demasiado familiares – e próximos. Tal como o parecem a negação, os atrasos alimentados pelos grémios de viticultores, a incerteza e o puro desespero que afetaram a resposta ao afídeo microscópico que destrói as vinhas, agora conhecido como Dactylasphaera vitifoliae.

Ao investigar as misteriosas mortes das videiras no Rhône, Jules-Émile Planchon foi o primeiro a “apanhar em flagrante” o afídeo, em 1868. O botânico de Montpellier identificou de forma correta que aquele estava a alimentar-se de raízes, literalmente sugando a vida das vinhas. No entanto, alguns acreditavam que a predação do inseto era oportunista - um sintoma de deterioração da raiz, não a causa. Campbell escreve que, “a partir de 1869, quando o afídeo começou a sua marcha de 20 anos pela Europa, o rasto da descoberta biológica seria revelado na imaginação intelectual francesa como um romance policial em folhetim… com reviravoltas no enredo, enganos e pistas falsas”.

Quando, em 1870, o Ministério da Agricultura da França Imperial ofereceu uma recompensa de 30.000 francos por uma cura, abundaram as receitas charlatãs, incluindo o tratamento das vinhas com urina (humana, cavalo ou vaca), baba de caracol e o enterro de sapos vivos para retirar o veneno do solo. Ou até com bandas marciais, para fazer bater em retirada os insetos do chão, algo muito parecido com a música clássica bombada na minha estação local de metro para desencorajar vagabundos indesejáveis! Estremeci ao ler a crítica de Planchon do discurso público, onde diz que “[argumentos] fáceis, desprovidos de factos, precisam apenas de um pouco de retórica para seduzir não apenas os ignorantes, mas muitas pessoas educadas e sensatas”.

Tendo percebido que os afídeos tinham vindo para a Europa à boleia de porta-enxertos americanos ('vitis labrusca'), por volta de 1875 Planchon defendia o enxerto de bacelos de vitis vinifera em porta-enxertos americanos resistentes à filoxera. Finalmente, no Congresso da Filoxera de Bordéus, em 1881, a vitória foi entregue à facção 'americainiste' de Planchon sobre os 'sulfuristes'. Sem surpresa, talvez, devido ao 'duplo golpe' infligido pelo comércio de porta-enxertos de vinha americanos (na década de 1850, expôs a vitis vinifera à devastação do oídio, um fungo parasitário), houve forte resistência ao aumento das importações. Afinal, o tratamento das folhas da vinha com calda bordalesa mantinha o oídio sob controle. Os ‘sulfuristes’ argumentavam a favor dos inseticidas químicos, embora o repetido - e oneroso - tratamento das raízes das vinhas, por oposição às folhas, se mostrasse proibitivo, mesmo para os ricos.

Apoiada por porta-enxertos subsidiados e moratórias tributárias, na década de 1890 a França começou a apreender as vantagens da replantação de vinha em larga escala. Em 1893, a produção nacional excedeu os níveis de pré-filoxera pela primeira vez em 15 anos. À medida que recuavam os receios de que os porta-enxertos americanos transmitiam sabores desagradáveis  aos vinhos, o 'novo normal' pós-filoxera de vinhas enxertadas tornou-se normal. O que não quer dizer que as plantações de vitis vinifera da “velha escola” tenham desaparecido. Remotas, agora com leis rígidas de quarentena, há vinhas enão-enxertadas na América do Sul e em grandes extensões da Austrália, livres de filoxera.

Porquê correr o risco?

Em outros locais, bolsas de solos de areia fina resistentes à filoxera, incluindo Portugal, permitiram que as plantações tradicionais em pé franco tivessem continuado, nomeadamente em Colares, mas também na margem esquerda do rio Guadiana, na Granja-Amareleja, bem como na Quinta do Ribeirinho, na Bairrada (origem do primeiro Baga Pé Franco de Luís Pato) e um atípico posto avançado no Douro - as encostas de granito arenoso e decomposto da Serra do Reboredo, onde Luís Leocádio (Titan do Douro) cuida de vinhas com 150 anos plantadas pelo bisavô da sua esposa. As vinhas em outros solos vivem perigosamente. Os exemplos mais ilustres de Portugal incluem o Nacional da Quinta do Noval (em xisto) e a segunda parcela em pé franco de Luís Pato, localizada em Valadas (em solos argilo-calcários). Mas porquê correr o risco?

Luís Pato plantou vinhas não enxertadas na Quinta do Ribeirinho “para demonstrar, experimentar, se a Baga em pé-franco mostrava um perfil diferente nos dois tipos de solo da Bairrada”. E a resposta? “Vinhos totalmente diferentes”, disse-me, porque estas vinhas produzem um décimo das vinhas enxertadas, com maturações mais prolongadas e melhoria na concentração e equilíbrio - o Ribeirinho Baga é mais cheio e poderoso, o Baga de Valadas é mais cheio, com “taninos muito mais suaves”.

Leocádio concorda com o rendimento mais baixo, acrescentando que as vinhas velhas “mostram a pureza da casta” e “dão uma melhor expressão do carácter e identidade do local, combinada com a mistura das diversas variedades”. Embora essas qualidades superem o risco da filoxera, as preocupações continuam a existir. Por precaução, Leocádio desinfeta as tesouras de poda antes e depois de as utilizar. Uma decisão sábia pois que, na Austrália, Franco D’Anna, presidente da Yarra Valley Wine Growers’ Association, acredita que “potencialmente 1.500 dos 2.500 hectares estão infetados com o afídeo”.

De acordo com o responsável de viticultura da De Bortoli, Rob Sutherland, apesar de terem sido registadas apenas algumas objeções quanto a declarar “confinada” toda a região de Yarra Valley como Phylloxera Infested Zone (‘PIZ’) após o primeiro surto, em 2006, o Governo optou por círculos de PIZ em 5 km ao redor de infestações individuais. Desde então, surtos regulares, que culminaram em várias deteções da praga em toda a região em 2016, levaram a repensar a estratégia. Sutherland (e D’Anna) não estão sós. Aprendendo, diz ele, com os erros do passado, Sutherland está a aproveitar a oportunidade “para usar novas ferramentas capazes de minimizar a exposição às alterações climáticas e à redução do período de vindima, experimentar novas combinações de clones e porta-enxertos e estabelecer modelos adaptáveis ao desenvolvimento de novas tecnologias”. A revelação do livro de Christy de que “as vinhas de Sancerre, outrora dominadas por Pinot, foram refeitas por enxertos de Sauvignon para fazer um vinho branco que faria furor em Paris”, sugere que o “novo normal” de hoje pode tornar-se a tradição de amanhã.

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