A Wine Detective investiga Trás-os-Montes

Estarei louca por preposições? Depois de ter destacado, na edição de fevereiro, o que se ‘esconde por baixo’, irei explorar este mês o que se esconde por trás. Mais concretamente, por trás das montanhas, depois de passar três dias ‘velozes e furiosos’ em Trás-os-Montes.

 

Até março, a vasta região noroeste de Portugal era uma das poucas que ainda não tinha visitado. Távora-Varosa e Lafões continuam na lista de alvos. E porque escolhi Trás-os-Montes? Pode dizer-se que um rasto de migalhas de pão (garrafas) levou-me até lá. Primeiro veio a Valle Pradinhos, com o seu branco diferenciado. Atrativo e familiar para os britânicos e, mesmo assim, diferente, os ‘wine writers’ Tom Cannavan e Ollie Smith selecionaram o lote fresco e aromático de Malvasia Fina, Riesling e Gewürztraminer de Valle Pradinhos entre os 50 Grandes Vinhos Portugueses em 2013 e 2011. Em 2012, o Valle Pradinhos Porta Velha 2009 entrou nos meus Vinhos do Mês. Descrevendo-o como um 'vin de soif', saudei a frescura, a pimenta branca e a elevação floral deste lote de Tinta Roriz / Tinta Amarela / Touriga Nacional (agora infelizmente extinto).


Em 2017, os vinhos de lote totalmente portugueses de Alvarinho, Cercial, Codega e Arinto da Quinta de Arcossó, do produtor Amílcar Salgado, serviram para me lembrar o perfume, a definição de fruta e a acidez natural dos vinhos brancos de Trás-os-Montes. No ano seguinte, outro lote de Tinta Roriz/Tinta Amarela/Touriga Nacional de uma categoria totalmente diferente impressionou-me. Raúl Pérez é consultor de Romano Cunha e, tal como fez em Bierzo, o este enólogo espanhol pioneiro ultrapassou os limites da qualidade para Trás-os-Montes. Tendo anteriormente vendido o seu vinho a granel, Mário Romano Cunha vinifica agora um terceiro com o rótulo de alta qualidade homónimo, que só é lançado após significativo envelhecimento em garrafa. Com uma viticultura rigorosa, ele “escraviza” as vinhas para minimizar os rendimentos e maximizar a concentração, podando um quilo por videira para tintos e apenas 300 a 500 gr. para vinhos brancos. Maduros e sensuais, com uma bela profundidade de fruta, equilíbrio e comprimento, os vinhos de Romano Cunha são construídos para envelhecer; o tinto inaugural de 2008 – que acabei de provar – é deslumbrante, ainda com muito para oferecer.


Naquela breve janela de 2020, antes que a Covid se instalasse seriamente, o rasto da migalha de pão intensificou-se. Descobri o Palácio dos Távoras Gold Edition 2016 da Costa Boal Family Estates enquanto membro do painel da prova Top 10 – Vinhos de Portugal da Essência do Vinho. Classificado em terceiro lugar (para vinhos tintos), este blend de Touriga Nacional, Baga e Alicante Bouschet 100% estagiado em carvalho novo apresentou um estilo extrativista de Trás-os-Montes. Com uma ousadia rústica conhecedora e convidativos em primeiro plano, os vinhos da Arribas Wine Company e da Casa do Joa não poderiam ser mais diferentes. Elaborados com mais variedades do que temos nos dedos das mãos (e possivelmente dos pés), estes vinhos ‘field blend’ frescos, texturados e super-característicos seduziram-me e intrigaram-me em igual medida. Esta demonstração coletiva de força não me deixou dúvidas. Já era tempo de visitar Trás-os-Montes.

Corações ao alto

‘Alto’ é uma palavra apropriada para Trás-os-Montes. Faz mesmo parte da mensagem de marca da Casa do Joa - 'Amor ao Alto', sorriu Jorge Afonso. As vinhas variam geralmente entre os 400 e as várias centenas de metros, embora Francisco Gonçalves tenha enfrentado dificuldades ao plantar uma vinha 1.070m. Quando visitei o local atingido pelo vento, o ex-diretor técnico da Sogevinus admitiu: “É uma luta, uma batalha, mais difícil do que pensava”. Teve de adicionar 100 toneladas de estrume ao empobrecido 'solo' rochoso. Por estar tão exposto e frio, Gonçalves atrasa a poda até abril ou maio. A motivação do enólogo de Montalegre para trabalhar com altitude é simples – “os vinhos serão diferentes… sempre apreciei a frescura e a elegância”.


Estas qualidades sedutoras – frescura e elegância – vieram à tona repetidamente quando me encontrei com produtores das três sub-regiões de Trás-os-Montes: Chaves, Valpaços e Planalto Mirandês. Faz sentido porque, em altitude, a variação acentuada da temperatura diurna não só ajuda a preservar a acidez natural (por causa das noites frias), como também prolonga o período de maturação, explicando os taninos refinados de quase todos os vinhos que provei. Seguindo para leste até ao Planalto Mirandês, esta amplitude torna-se especialmente pronunciado à medida que o clima se torna mais continental. Quando visitou a aldeia do seu avô, a Bemposta, em junho, Frederico Machado foi surpreendido pelas temperaturas que desceram dos 30 graus centígrados durante o dia para zero graus à noite. De repente, a sugestão do seu pai sobre fazer vinho naquela localização já não parecia tão absurda. As vinhas velhas empoleiradas precipitadamente sobre o Douro conquistaram-no. “Tudo fazia sentido... era impossível que ninguém estivesse a fazer nada com elas”, disse-se. Ele e Ricardo Alves decidiram ali mesmo fundar a Arribas Wine Company.


Com as suas vinhas velhas em terrenos íngremes, esta parte do Planalto Mirandês fez-me lembrar a sub-região de Portalegre, no Alentejo, que vai de vento em popa. Frederico Machado e Ricardo Alves, da Arribas Wine Company, acreditam que justifica uma designação sub-regional própria (sugerem Arribas do Douro). As vinhas de Sendim, no planalto, amadurecem cerca de duas semanas antes, segundo António Picotês, outro ‘young gun’ cujos laços familiares incentivaram o portuense a fazer ali vinho. Ele também trabalha com vinhas velhas, assim como Aline Domingues (Menina d’uva), uma parisiense que faz vinho na aldeia do seu avô, Uva, onde, aos 32 anos, é de longe a moradora mais jovem.


Com um pé no Douro (onde a família faz Vinho do Porto há gerações), António Boal está otimista quanto ao futuro de Trás-os-Montes. Desde que começou a prestar consultoria há cinco anos, Paulo Nunes (da afamada Casa da Passarella) tem vindo a interpelar com firmeza as castas e o terroir, ampliando a gama Trás-os-Montes da Costa Boal de quatro para 27 vinhos diferentes (incluindo elegantes exemplares de Tinta Gorda e Bastardo). Boal disse-me que “o Douro vende cada vez mais e mais facilmente, mas talvez Trás-os-Montes seja a próxima grande novidade”. Concordo. Longe de arrefecer, essa trilha de migalhas de pão está a aquecer.

Partilhar
Voltar