Código da Estrada para amantes de vinho

Barossa Valley está para a Austrália como Rioja está para Espanha. Ambas estão entre as marcas regionais genéricas mais reconhecidas do mundo. Mais perto de casa, o Douro também aspira a criar reconhecimento mundial para os seus vinhos tranquilos.

 

No papel, poderíamos ser levados a pensar que os vinhos do Douro eram mais conhecidos do que os seus homólogos de Barossa Valley. A prestigiada reputação global do Vinho do Porto foi polida ao longo de centenas de anos, colocando verdadeiramente o Vale do Douro no mapa. Quanto aos vinhos tranquilos, o Douro partilhou com Barossa um momento divisor de águas quando, inspirando-se em Bordéus, dois enólogos ambiciosos, alicerçados na produção de vinhos fortificados, criaram o Barca Velha e o Penfolds Grange. Feitos para durar, estes tintos encorpados foram lançados oficialmente com a colheita de 1952 e logo tornaram-se ícones.


O Penfolds Grange marcou o início de uma nova era para os vinhos de Barossa (e australianos). Na década de 1970, a produção de vinhos tranquilos australianos ultrapassou a produção de fortificados e, durante a década de 1980, os Shiraz de Barossa começaram a ascensão inexorável, tornando-se uma marca global por direito próprio. Por outro lado, o impulso para o crescimento dos vinhos do Douro não se verificou antes da mudança de século, sendo que os vinhos generosos ainda representam a maior parte da produção do Douro, especialmente em anos como 2020. Dito isto, os volumes de vinhos do Douro estão no encalço do Vinho do Porto e, ao contrário do Porto, as vendas de DOC Douro estão a crescer. Parece-me um bom momento para fazer um balanço e rever a direção da viagem dos vinhos do Douro. Estando um pouco mais adiante no seu caminho de desenvolvimento, a evolução de Barossa é esclarecedora.


A casta Shiraz tem sido uma constante, dominando a oferta de vinhos de Barossa. Com razão. A variedade apresenta-se bem e distintamente, com uma bela intensidade de cor e fruta. Dentro disso, a expressão foi mudando. Os estilos ‘blockbuster’, com alto teor alcoólico, frutas hedonistas e expressões de carvalho (americano, depois francês) formaram o estereótipo por cerca de uma década na mudança do século. Antes disso, os vinhos eram relativamente comedidos. Na última década, o pêndulo voltou a mudar. Mais importante, há um impulso para evitar quem sejam mais uma vez ‘enformados’. Hoje, os Shiraz de Barossa surgem num espectro mais amplo de estilos que refletem o 'terroir' no sentido mais amplo, ou seja, refletindo tanto a assinatura do local (clima, solos, orografia) como a impressão digital humana (decisões de viticultura e enologia). Isso soará familiar aos apreciadores de vinhos do Douro?


Em 2008, a Barossa Grape & Wine Association colocou em destaque a identidade do local. O projeto 'Barossa Grounds' destacou 12 sub-regiões, com a ajuda dos principais cientistas do solo, viticultores, enólogos e especialistas do sul da Austrália. Embora em prova cega seja possível discernir os principais sabores e características de cada local, o projeto concluiu pela identificação  de três áreas distintas mais amplas em Barossa Valley (Northern Grounds, Central Grounds e Southern Grounds) e duas zonas menores (Eastern Edge e Western Ridge) - nenhuma das quais veio a tornar-se sub-região oficial. Estas são, no entanto, utilizadas para promover uma melhor compreensão da diversidade de Barossa.

Os perigos do ângulo morto

Um ‘webinar’ recente intitulado “As Muitas Faces dos Shiraz de Barossa” explorou o papel da intervenção humana. Como notou o moderador Mark Pygott MW, “seja por humildade ou desejo de o ressalvar na mensagem, os produtores e enólogos dizem que 99% da magia acontece na vinha, mas o enólogo representa muito mais do que 5%. É este quem dá o tom”. Para Daniel Hartwig, da Chaffey Bros Wine Co., foi importante 'desempacotar a Shiraz', vinificar lotes individuais e “retirar um pouco de carvalho e do artifício, o que o teletransporta para as vinhas com tanta clareza”.
“Todos nós queremos que os nossos vinhos sejam acessíveis enquanto jovens, com um carácter frutado patente”, concordou Andrew Quin, da Hentley Farm (embora a sua preferência seja por vinhos na janela entre oito a dez anos de idade, “quando a fruta primária fica em segundo plano e entram os aromas secundários)”.


O veterano do painel, Craig Stansborough, da Purple Hands, abordou a importância de vindimar mais cedo – uma tendência recente – dado que o clima de Barossa naturalmente tende para níveis de álcool em torno de 14 graus Baumé (e podem facilmente ultrapassar esse nível). Assim, diminui os níveis de álcool e aumenta a frescura. Fatores “um por cento”, como o uso de cubas de fermentação abertas, leveduras naturais e condições de armazenamento frescas e húmidas, também ajudam a manter os níveis de álcool sob controlo, disse.


Com maior aporte do carvalho e mais pesado do que os outros com 14,5% de álcool, o Shiraz William Randell de Thorn-Clark estava mais próximo em estilo dos sucessos dos anos 90, mas manteve a frescura e a definição de estilo. Descrevendo-o como “um vinho elástico”, Peter Kelly reconhece no vinho um perfil que remonta a uma ou duas gerações, mas “segura uma das extremidades de maneira que reconhece o passado, mas também permanece deliciosamente relevante para o mercado dos dias de hoje”. O seu último ponto atinge um nervo. Embora Barossa seja uma das regiões australianas mais conhecidas no país e no exterior, um relatório da Wine Intelligence de 2021 mostra quedas significativas nos últimos seis anos na consciencialização entre os consumidores regulares australianos. Uma queda de quatro por cento que a empresa de pesquisa do consumo de vinho atribui aos consumidores mais jovens e ecléticos que, além disso, olham para o vinho como parte de um reportório mais amplo de bebidas.

Como os produtores de Vinho do Porto bem sabem, manter-se relevante é um desafio ainda maior para regiões estabelecidas há muito tempo. A evolução de Barossa ilustra a importância de conhecer a força do seu núcleo, mas deixando espaço para respirar e crescer. Como Hartwig apontou, “quem conduz em frente a olhar apenas pelo espelho retrovisor, vai bater”. É uma analogia útil. O Código da Estrada aconselha o uso de todos os espelhos com frequência ao longo da viagem, “para que o condutor saiba sempre o que está atrás e ao lado”. E adverte os automobilistas a olhar em redor, porque haverá sempre ângulos mortos. O vinho existe apenas porque os homens o fazem e bebem-no e, uma vez que a cultura do vinho evolui, os próprios vinhos também deveriam evoluir. As regiões não devem ficar presas ao passado.

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