Contra o louco da guerra, os vinhos ucranianos!

Quero acreditar que a história dos vinhos ucranianos não se fará somente de vestígios de prensas e de ânforas de tempos idos, mas de vinhos autênticos, que expressem o pensamento livre. O vinho também pode ser uma arma e trazermos um vinho ucraniano para a nossa mesa pode até não passar de um tiro no porta-aviões de Putin, mas certamente será mais um grito de revolta pelos dias de cólera que a todos nós está a fazer viver.

 

Não me recordo de algum dia ter provado vinhos ucranianos, mas a bestialidade de Putin despertou-me a vontade de os conhecer como nunca.
Espreito mapas em livros, porém não vislumbro grande coisa. A geografia leva-me a crer que a haver vinha ela estará pelo sul do país, para os lados do Mar Negro. Atiro-me à Internet, à procura de mais informação. Confirmo a suspeita. 
Dou comigo a ler artigos nalguma imprensa internacional, que à medida dos penosos dias de guerra procura novos ângulos de análise, com isso entreabrindo portas e imagens de devastação e sofrimentos extra. 
A imagem com a qual mais vezes me cruzo é a de Mishail Molchanov, que posa para a fotografia de telemóvel ao lado de uma bomba russa não detonada, já enfiada um meio metro no chão de uma vinha ainda sem folhas. O filho, Georgiy, é também produtor na Slivino Village, em Mykolayiv. Nestas primeiras semanas do novo ano decorriam os trabalhos de poda.
Na germânica Wein Plus (wein.plus) descubro outro relato.


Zorick Umanskyi era o gestor da importadora Good Wine, que até ao rebentar da invasão de Putin empregava 800 almas. Após o início do ataque, pegou na família e voou para a Moldávia, depois para Bucareste, finalmente até Telavive, para junto dos pais. É agora a partir de Israel que coordena ajuda humanitária que tem por destino a equipa que ficou em Kiev – uns a sobreviver, outros a dar o corpo às balas. Parte também saiu, para outras zonas do País, para a Polónia e para a Alemanha.
Os armazéns da Good Wine localizavam-se a 15 quilómetros do centro da capital ucraniana e já foram reduzidos a escombros pelos ataques de Putin. 
“Os vinhos e a comida valiam 15 milhões de euros”, calcula Zorick. A importadora também detinha a maior loja delicatessen da Ucrânica, com wine bar e restaurante associados. 
O sítio web da Wines of Ukraine (ukr.wine) é simples mas eficaz, de algum modo a lembrar a comunicação ucraniana em tempos de guerra – simples mas eficaz. Aqui ficam os headlines: 41.500ha de vinhas, mais de 50 produtores ativos, 180 castas plantadas, 133,4 milhões de litros produzidos. 
O futuro?...


O Mar Negro e uma cultura desde IV a.C.

A cultura de vinho no território que hoje reconhecemos como Ucrânia existe desde o século IV a.C.  Na costa sul da Península da Crimeia, que Putin reclama dele, foram desvendados vestígios de prensas e de ânforas. No entanto, apenas a partir do séc. XI a cultura da vinha ganhou um impacto significativo através da intervenção dos monges cistercienses, que tanta importância tiveram no desenvolvimento e sistematização agrícolas europeus.
Até à invasão de Putin, em 2014, a Crimeia era a maior região vitícola da Ucrânia, produzindo sobretudo vinhos doces e de sobremesa, boa parte consumida no mercado russo. Aliás, o desfiar histórico mostra como a Ucrânia tem abastecido as gargantas dos regimes soviéticos, a ponto de, a dada altura, ter ficado conhecido o “Soviet Champagne”, espumante elaborado nos arredores de cidades como Kiev, Bakhmut, Lviv, Odessa ou Kharkiv, obtido a partir de castas como Aligoté, Feteasca, Pinot Blanc e Riesling.
O conflito da Crimeia alterou o cenário tendo – “ironicamente”, como sublinha o sítio da Wines of Ukraine – impulsionado a produção de vinhos secos na Transcarpátia e nas zonas a sul de Odessa e de Kherson. Antes do atual conflito, os ucranianos garantem que a produção de vinhos, desde 2015, estava a aumentar entre 7 a 9% anualmente.


Existem três regiões onde a produção está concentrada. Mais de metade a sudoeste da cidade de Odessa, nas proximidades da Transcarpátia, que a Hungria e a Roménia partilham, e a sul do rio Dnipro, junto às cidades de Kherson e de Dnieperpetrovsk. O clima continental, grosso modo caracterizado por verões quentes e invernos frios, permite uma viticultura bem-sucedida.
Formalmente, a região de Bessarabia tem as margens do rio Dniestre por fio condutor. A região do Mar Negro é considerada a mais antiga para viticultura, com heranças da cultura greco-romana, povos que identificaram aquelas terras como as mais propícias para a vinha. Odessa, Mykolayiv e parte de Kherson estão por ali. Os invernos são mais suaves por comparação com o resto do País, os outonos são quentes e moderadamente húmidos, o que facilita a maturação plena da generalidade das uvas. E, claro, a Transcarpátia (Zakarpattya).


Procuro e volto a pesquisar acerca dos vinhos ucranianos, como se isso pudesse irritar Putin. 
Dou por mim a ler que a casta Telti Kuruk será das variedades autóctones mais aplaudidas, por resultar em brancos volumosos mas de acidez presente, de aromas a flores brancas. Sukholimansky é também uva branca aclamada, pelo perfil aromático e capacidade de agrado para um consumo descontraído. A Aliberne de Odessa é uma casta tinta que origina vinhos tintos ricos em cor e em especiarias, frequentemente apresentada como casta identitária do País no mundo.
A indústria contemporânea do vinho na Ucrânia estava a dar os primeiros passos pelo mundo e, como um bebé que começa a caminhar, reclama ter um Shabo Cabernet Grand Reserve no museu La Cité du Vin em Bordéus ou um Kara Kermen listado no estrela Michelin londrino, Hide.


Quando finalmente conseguir provar um vinho ucraniano, espero vivermos dias menos sombrios. Tenho também esperança de ter mais para contar acerca dos vinhos ucranianos, numa perspetiva de presente e de futuro, num contexto de liberdade e de paz. Quero ver o bebé que dava os primeiros passos tornar-se criança irrequieta e jovem irreverente, adulto responsável e avô afetuoso.
Quero acreditar, por mim e pelos meus filhos, que a história dos vinhos ucranianos não se fará somente de vestígios de prensas e de ânforas de tempos idos, mas de vinhos autênticos, que expressem o pensamento livre de quem os trabalhou, de início ao fim. 
O vinho também pode ser uma arma e trazermos um vinho ucraniano para a nossa mesa pode até não passar de um tiro no porta-aviões de Putin, mas certamente será mais um grito de revolta pelos dias de cólera que a todos nós está a fazer viver. Enquanto a besta mantiver a bestialidade, sejamos ucranianos – no pensamento, nos atos e até em pequenos gestos.
 

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