Crises de identidade

A Wine Detective investiga o Cabernet Sauvignon australiano - mais identidade, menos crise.

 

Em junho, a Austrália apresentou uma reclamação na Organização Mundial do Comércio contra a China porque, o ano passado, o país que, de repente, tornou-se o seu maior mercado, impôs tarifas variáveis (de até 218%) sobre o vinho australiano. Mas, quando uma porta se fechou, outra se abriu. No mesmo mês, a Austrália concluiu um acordo de livre comércio com o Reino Unido para produtos agrícolas que, disse o governo do Reino Unido, “eliminará as tarifas sobre os produtos preferidos australianos, como os vinhos Jacob’s Creek e Hardys”.


O vinho é a maior exportação agrícola da Austrália para o Reino Unido, por isso, os produtores de vinho australianos devem estar a esfregar as mãos de contentamento. O negócio representa uma oportunidade fantástica para reforçar a posição do país enquanto número um nas vendas em volume no retalho do Reino Unido. A Austrália ultrapassou a França em 2004 e, em 2020, tinha quase o dobro da quota de mercado dos concorrentes mais próximos, França e Itália. Os produtores australianos certamente redobrarão agora os esforços para aumentar as vendas de vinhos premium no Reino Unido e no canal ‘ontrade’ (HORECA), onde a Austrália está atrás da França e da Itália, entre outros. Não tem sido fácil para a Austrália desafiar a hegemonia da França nos vinhos de categorias superiores - especialmente Bordéus e Borgonha - já que os vinhos australianos são predominantemente feitos de variedades francesas. Os vinhos franceses definiram as expectativas do consumidor e, por vezes inutilmente, formaram as aspirações dos produtores australianos.


As vinhas chegaram com a Primeira Frota de navios britânicos em 1788 e, enquanto a Grã-Bretanha guerreava com a França, a Austrália tornou-se “a vinha do John Bull” durante o século XIX. Os vinhos tinham rótulos bastante familiares - 'Claret', 'Burgundy', 'Hermitage,' 'Champagne', 'Hock' e, ouso dizer, 'Port' (independentemente, devo acrescentar, das castas, quanto mais da origem!) A partir de 1 de setembro de 2011, a utilização de tais indicações geográficas e expressões tradicionais nos rótulos dos vinhos da União Europeia foi proibida, na sequência da celebração de um acordo de comércio de vinho entre a UE e a Austrália. Demorou muito tempo para que os produtores australianos abandonassem os paradigmas do vinho do Velho Mundo em termos de conteúdo (bem como de rótulos).


Em 2004, visitei Coonawarra, possivelmente o coração do Cabernet Sauvignon da Austrália. Aquando da apresentação de uma prova vertical, Bruce Redman (Redman Wines) não escondeu as oscilações estilísticas do pêndulo da região. Visando um estilo clarete na década de 1980, este produtor de terceira geração disse que os produtores de Coonawarra estavam a colher cedo e a adicionar taninos. Com certeza, os Cabernet Sauvignon saberiam um pouco verdes e diluídos.
Num volte face durante a década de 1990 (e com a ascendência de Robert Parker), os produtores começaram a colher as uvas sobremaduras. A década seguinte viu um recuo para o meio termo que, ironicamente, coincidiu com a mudança de Bordéus para estilos mais maduros e centrados na fruta, cortesia das alterações climáticas. Colhida no chamado “ponto ideal de maturação”, a fruta era polida com carvalho até a um brilho fino. Esta última década viu o crescimento de vinhos elegantes e de corpo médio, muitas vezes com menos carvalho novo.


É um sinal de sofisticação que, hoje em dia, os claretes australianos “aspirantes” (sejam antigos ou novos) sejam raros, pois, dançando ao seu próprio ritmo, os produtores australianos de Cabernet Sauvignon ostentam orgulhosamente as cores regionais do país. Comemorando essa articulação da identidade australiana com as castas internacionais, a Wine Australia (órgão de marketing genérico da indústria do vinho australiano) cunhou o slogan 'Australian Wine Made our Way' e, em maio, apresentou confidentemente seis dos melhores Cabernet Sauvignon australianos de Coonawarra, Margaret River e Yarra Valley, ao lado de exemplares importantes de Stellenbosch, na África do Sul, Napa Valley, Toscana, Maipo, no Chile, e Bordéus.


Foi revigorante ouvir Mark Davidson, da Wine Australia, enfatizar que “esta não é uma competição, trata-se de provar os melhores exemplares regionais da Austrália”. No passado, estas provas comparativas pareciam ser menos sobre celebrar os pontos únicos e diferenciadores da Austrália do que comparar os vinhos australianos com os clássicos do Velho Mundo, para atestar se estariam à altura. A mudança radical é bem-vinda. Todas as seis nações trouxeram algo novo em termos de aroma, sabor, acidez e perfil de tanino do Cabernet Sauvignon - e os consumidores gostaram. Além disso, colocar dois Cabernet de cada região australiana serviu para destacar as diferenças entre regiões. À medida que os produtores australianos se familiarizaram com as suas vinhas, notei uma maior diversidade de estilos dentro de cada região, incluindo mais vinhas ou vinhos de parcela única. Por exemplo, o Wynn's de Coonawarra - o farol da região - fez vários Cabernet Sauvignon ‘single vineyard’ desde 2001.
A reforçar este caminho tomado pela Austrália sob o leme ‘Made our Way’, dois Cabernet Sauvignon australianos estiveram o ano passado entre os três primeiros vinhos australianos a serem lançados no La Place de Bordeaux. Evidentemente, há um apetite pelos excelentes Cabernet Sauvignon que não de Bordéus. A presença do Wynns John Riddoch Cabernet Sauvignon 2016 e do Cloudburst Cabernet Sauvignon 2017 de Margaret River na prestigiante plataforma de vinhos de qualidade da região francesa fez brilhar as credenciais de classe mundial do Cabernet Sauvignon australiano.


Enquanto escrevo, estou a meio caminho da prova de vinhos portugueses no Decanter World Wine Awards. Com mais de 250 uvas autóctones, Portugal foge à comparação direta com vinhos de outros países. Ainda assim, os produtores não estão imunes a seguir orientações estilísticas de outras regiões portuguesas, especialmente quando têm variedades em comum. Este ano, eu e o meu júri estamos entusiasmados por ver menos entradas de tintos “aspirantes a Douro” provenientes do Dão. Quando avaliei os vinhos portugueses pela primeira vez, há mais de 10 anos, reparei que, sendo ricos em tudo (fruta, extração da madeira e álcool), poderia ser difícil distinguir estas duas regiões do norte. Porém, esta crise de identidade portuguesa está a chegar ao fim.

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