Já sinto um certo vazio. Mas, os espíritos livres como Domingos Soares Franco não merecem lamúrias; pelo contrário, merecem que lhe agradeçamos por tudo o que fez pelos vinhos portugueses.
Recebi o convite para participar na apresentação dos derradeiros vinhos da autoria de Domingos Soares Franco pelas mãos do próprio e à moda antiga: em carta manuscrita, com um texto de sentimento que certamente não terá sido escrito de ânimo leve, à margem da mais recente cerimónia de anúncio e entrega de prémios “Os Melhores do Ano” pela Revista de Vinhos, na Alfândega do Porto. Nesse instante comprometi-me com a presença, no dia 20 de março de 2025.
Quis a tempestade de véspera que os planos iniciais, previstos para os vetustos armazéns da Casa-Museu da José Maria da Fonseca (JMF), não se pudessem concretizar. Por isso, a apresentação oficial dos derradeiros vinhos da autoria de Domingos decorreu na adega de barricas do bem mais recente Centro de Vinificação Fernando Soares Franco, o que não deixa de ser curioso, uma vez que falamos dos mais ensaístas enólogos de uma geração.
A trilogia final, Quadraginta (40 anos, em latim), é composta por uma surpreendente combinação das castas Riesling, Alvarinho (a casta branca preferida de Domingos) e Arinto, que resultam num vinho branco de meditação. O tinto alia Touriga Francesa (a casta tinta predileta do enólogo), Touriga Nacional e Castelão, conheceu pisa a pé e estágio de 15 meses em barricas de carvalho francês, sendo um exemplar de potência, exatidão e margem de evolução. E, claro, não poderia faltar o Moscatel de Setúbal, um 1998 que combina a utilização de aguardentes de Armagnac e Cognac, com a singularidade que Domingos e a JMF nos habituaram.
Com o devido respeito, os vinhos são neste caso o facto acessório. O que verdadeiramente é relevante é o ponto final que o enólogo decidiu fazer na carreira, pelo que importa recuperar as palavras, na primeira pessoa, de finais de 2024, quando o entrevistei para uma recente reportagem desta publicação: “O meu pai tinha-me dito para me reformar, quando tivesse idade para isso, com cabeça e quando a porta grande se abrir. Memorizei-o. Um dia, o meu filho Francisco disse-me que a partir daí poderia reformar-me quando quisesse. Nessa mesma noite, preenchi os papéis no computador. Lembrei-me das palavras do meu pai e carreguei no Enter”.
Domingos não o saberá, e provavelmente nem se terá apercebido, mas dessa última vez que o entrevistei emocionei-me. Quando recuperou episódios e frases que se levam para a vida, do pai Fernando e do tio António, relembrei ensinamentos que não me recordo de ter tido do meu pai e a cumplicidade de momentos que tive com dois tios, todos igualmente já não aqui. A vida é mesmo assim, um turbilhão de ganhos e de perdas, cuja obrigação de todos nós, pais, sempre e a todo o custo, é a de deixar boas memórias aos filhos.
Nascido em 16 de maio de 1956, em Lisboa, Domingos Soares Franco tem por primeiras memórias da JMF estar agarrado às pernas do tio na sala de provas. Ainda que testes psicotécnicos lhe tivessem recomendado arquitetura, sempre soube que só a agricultura o faria feliz.
Muito pouco sabia do assunto quando tentou cursar Agronomia em Lisboa. Os dias quentes da Revolução de Abril barraram-lhe essa possibilidade, simplesmente por ter o apelido de família. Viajou até França para conhecer as universidades de Bordéus, Montpellier e Dijon, mas a língua era um entrave. Desanimado e algo perdido, como é normal acontecer num jovem que acalenta sonhos mas não os consegue cumprir, um momento inesperado trocou-lhe as voltas.
Em agosto de 1975, a família recebia o sócio norte-americano da JMF, que Domingos carinhosamente considera ter sido um segundo pai. À mesa lançou-lhe o desafio de ir estudar Enologia para Davis, a famosa universidade californiana, e em outubro desse mesmo ano partiu de malas e bagagens para os Estados Unidos.
Saiu do país com a sensação de uma viagem sem retorno. Percorreu os EUA, cursou em duas faculdades, esmerou-se nas notas e formou-se em Davis. Viveu e cumpriu o sonho americano por meia dúzia de anos até regressar em definitivo ao nosso país, em 1981.
De volta a casa, empreendeu com o irmão António uma necessária (r)evolução. Num país atrasado no tempo, ciente do que era feito além-fronteiras, varreu várias feiras internacionais, sobretudo na Alemanha, e adquiriu equipamentos que, até então, eram corpos desconhecidos nas adegas nacionais, incluindo aquela que terá sido a primeira prensa pneumática do país. Juntamente com o irmão, percebeu que o país era pequeno demais para crescer, pelo que as viagens feitas ao longo de mais de 40 anos equivalem, seguramente, a umas quantas voltas ao mundo. Mas, foi graças a esse espírito de missão internacional que a JMF tem a importância que lhe é reconhecida em mercados como o Norte da Europa, os EUA ou o Brasil.
O carisma e a boa disposição facilitaram-lhe amizades pelo mundo e ajudaram a própria JMF neste negócio do vinho, que é muito de contactos e de afetividade, só depois de números. A construção “daquela que era, na altura, a maior adega para fermentação do país”, o Centro de Vinificação selado com o nome do pai e inaugurado em 2000, tirou-lhe o sono. De inspiração australiana, seguiu um modelo arrojado mas que funcionou e que, volvidos mais de duas décadas, mantém-se plenamente funcional.
Novo mundista assumido, ensaiou múltiplas vezes, algumas até às escondidas da restante administração. Paulo Hortas, o enólogo cúmplice por 38 dos mais de 40 anos de carreira, percebia o arrojo de uns, contrapunha com ideias distintas, noutros. Sob o consulado enológico de Domingos Soares Franco, a JMF alcançou o primeiro vinho sem álcool de Portugal, preservou e foi lançando dos mais extraordinários moscatéis de Setúbal da história, conjugou blockbusters com vinhos topo de gama. A sexta geração da família, corporizada por António e Domingos Soares Franco, é das mais bem-sucedidas e ativas do historial familiar e empresarial, cabendo agora à sétima geração — curiosamente, sem nenhum enólogo — continuar a ousar com racionalidade.
O susto de saúde que enfrentou recentemente parece ultrapassado e o enólogo assumidamente bon vivant, “gajo porreiro” e “gajo extra-europeu” tornou-se uma referência da enologia portuguesa do séc. XX e primeira vintena deste séc. XXI.
Para a apresentação do último trio de obras convidou família e colaboradores mais próximos, imprensa e um grupo de enólogos amigos, que considera terem sido fundamentais na enologia contemporânea portuguesa: Anselmo Mendes, João Nicolau de Almeida, João Portugal Ramos, José Maria Soares Franco e Nuno Cancela de Abreu. Não houve lugar a grandes discursos, muito menos à tentação de puxar dos galões. Nada disso, Domingos Soares Franco não é puxa saco e tem a virtude, cada vez mais incomum entre pares, da sinceridade.
Fica agora com mais tempo para apreciar a sopa de ervilhas da família, para passeios pelas águas frias do Portinho da Arrábida, para mergulhos nas águas mais quentes que banham Porto Santo e, claro, para mais algumas viagens. Porém, é na Quinta de Camarate, em Azeitão, que gosta de respirar a maioria dos dias, até porque não se identifica citadino.
Eu, que me habituei nestes últimos 20 anos a tê-lo como conversador assíduo sobre vinhos, já sinto um certo vazio. Mas, os espíritos livres como Domingos Soares Franco não merecem lamúrias; pelo contrário, merecem que lhe agradeçamos por tudo o que fez pelos vinhos portugueses.
Obrigado, Domingos! Um abraço.