Douro. Falta cumprir a revolução?

Gostaria de me sentar à mesa com produtores e enólogos do Douro sem que a conversa tombasse para as questões de sempre, para os debates informais sobre tudo o que está mal ou menos bem mas que ninguém parece ter nem coragem nem vontade de assumir como desígnios reais e prolíficos.

 

Tal como todos temos uma opinião sobre vinho, todos temos também uma opinião sobre o Douro. É mesmo muito rara a vez em que, durante uma conversa com um produtor ou um enólogo ligado à região, não seja confrontado com um varrer de ideias quanto ao passado, ao presente e ao futuro de uma denominação de origem que somente possui pouco mais de 30 anos de historial regular de produção de vinhos DOC. Precisamente por isso, talvez sejamos demasiado exigentes com o Douro. Mas as coisas são como são e, acredite o leitor, nestas conversas sou quase sempre mais ouvinte do que animador.


A mais antiga região demarcada e regulamentada de produção de vinhos do mundo tem vivido a esmagadora maioria da história tendo por locomotiva o Vinho do Porto. O advento dos vinhos DOC só verdadeiramente ficou massificado durante os anos 90 do século passado, pelo que nesse capítulo a região vive ainda uma primeira infância, na medida em que o tempo no vinho é bem mais lento que o relógio dos nossos dias. Porque vivemos a mil à hora, e talvez até porque o Douro suscita uma espécie de paixão assolapada, esbarramos com frequência em muros que nos impedem de avançar ao ritmo que desejávamos. Mas, o verdadeiro problema serão esses muros ou seremos nós, que estamos a querer ir depressa demais?
A garantia de uma sustentabilidade de longo prazo – ambiental, social e económica – é o desígnio geral. Haverá certamente vários caminhos possíveis, mas todos serão tortuosos, motivando uma condução prudente, a exemplo do que acontece com a maioria das estradas que entrecortam a paisagem duriense. 


Não consigo ter opiniões 100% formadas sobre alguns dos temas mais quentes. O fim da Casa do Douro é de aplaudir ou um erro estratégico? A permanência de uma política que subsidia parte da produção é um convite à letargia ou uma absoluta necessidade numa das regiões mais pobres da Europa? Destilar uvas para aguardente que integre Vinho do Porto é melhor ou pior que vender Portos a 3,00€ ou DOC´s a 1,50€ nos supermercados? Permitir que quem não detém vinhas na região, que simplesmente as alugue para fazer vinho, é ou não pernicioso? Manter um Douro com três sub-regiões e não o delimitar à escala de villages é protelar uma inevitabilidade? Os mais de 44.000 hectares de vinhas plantadas no Douro, quase 23% da área total de vinhedos do país, são exagerados? Um organismo de tutela público, como o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, deveria ser extinto para dar lugar a uma Comissão Vitivinícola Regional? O pequeno viticultor tem hipótese de viver da terra ou está condenada a entregá-la? Qual o potencial real e que modelos deverão seguir a indústria do enoturismo na região?


O desfiar de questões prolongar-se-ia com facilidade pelos próximos parágrafos. Aliás, bastam 15 minutos de conversa informal com pessoas do Douro ou que trabalham no Douro para resvalar-se para uma infinitude de questões ou um chorrilho de queixumes. 
Estaremos todos a ser demasiado exigentes ou é mesmo premente provocar algo?

Manter a expetativa ou provocar as mudanças?

É unânime considerarmos o Douro atual substancialmente distinto do conhecido até às décadas anteriores à de 90 do século passado. A geração de ouro que lhe conferiu uma nova patine despoletou em meados e finais desses 90, tendo ficado de um certo modo representada no coletivo Douro Boys, assim assumido em 2003.


Como uma rajada de vento fresco e impossível de conter, uma geração de jovens enólogos e produtores revolucionou maneiras de pensar e formas de fazer, contribuindo decisivamente para colocar os vinhos DOC da região no “top mind” das revistas e dos líderes de opinião dos mercados internacionais mais evoluídos – EUA, Canadá, Reino Unido. O efeito de contágio propagou-se à velocidade de uma flecha, um novo espírito estendeu-se a todos na região e inspirou formatos similares noutras zonas do país.
Cristiano van Zeller, Dirk Niepoort, Francisco (“Xito”) Olazabal, Francisco Ferreira, João Álvares Ribeiro e Tomás Roquette são os Douro Boys. Mas neste processo de um novo Douro importa acrescentar nomes – e certamente falharei alguns – como João Brito e Cunha, João Roseira, Jorge Moreira, Jorge Serôdio Borges, Luis Soares Duarte, Luísa Amorim, Olga Martins, Sandra Tavares da Silva (… ), que igualmente contribuíram para uma outra visão duriense, dentro e fora do país. A generalidade viu os respetivos projetos afirmarem-se, tornaram-se protagonistas por mérito próprio, vozes ouvidas e respeitadas no Pinhão, em Londres ou em Nova Iorque. Falta-lhes, no entanto, cumprir o que resta da revolução que iniciaram.


É necessário um debate aberto mas sério, com conclusões efetivas e atos concretos, que extravase uma notícia nos jornais, umas trocas de piropos nas redes sociais, uma carta de intenções ou a criação de mais uma associação para a qual ninguém terá tempo. Não seria má ideia que estes nomes reunissem à séria e convidassem gerações anteriores e posteriores de protagonistas para escreverem, em conjunto, o tal Douro sustentável que querem deixar às novas gerações. Charles Symington, Carlos Agrellos, David Guimaraens, Pedro Silva Rei ou Tiago Alves de Sousa, apenas para citar alguns, certamente juntar-se-iam à convocatória, independentemente dos pontos de vista díspares que tenham sobre determinados dossiês. Acima de tudo, todos estariam a ser artífices de um lóbi pela positiva junto das diferentes esferas de poder – governamental, setorial, regional, local.


Novamente propulsores da mudança complementariam um ciclo, ficariam na história como aqueles que não se acomodaram. As regiões, tal como as sociedades, serão sempre muito o reflexo das pessoas. É a vontade de mudar, por vezes até o direito à indignação, que despoleta as grandes alterações.


Os nossos filhos, os nossos netos, aqueles que ainda conhecerão este mundo, vão continuar a provar os grandes vinhos DOC Douro de uma das mais frágeis regiões europeias? Algum dia vão saber destrinçar um medíocre vinho aguardentado de um notável Vinho do Porto?


Gostaria de me sentar à mesa com produtores e enólogos do Douro sem que a conversa tombasse para as questões de sempre, para os debates informais sobre tudo o que está mal ou menos bem mas que ninguém parece ter nem coragem nem vontade de assumir como desígnios reais e prolíficos. Gostaria de me sentar à mesa com produtores e enólogos do Douro e falar, apenas e só, do vinho pelo vinho. Se para isso acontecer for necessário cumprir-se uma revolução, por que não?

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