Enólogo de uma casa, de uma vida.  Em vias de extinção?

No desfiar constante de conversas com enólogos, noto que a questão da liberdade criativa é o primeiro argumento dado para justificar o facto de apenas serem consultores ou de se tornarem enólogos/produtores. A ambição de ter o próprio vinho é compreensível e legítima, mas neste caminho da enologia parece-me que por vezes existe o medo do compromisso.

 

O advento dos enólogos consultores, sobretudo popularizado durante os anos 90 e primeira década de 2000, contribuiu decisivamente para a popularidade dos enólogos. O francês Michel Rolland deu aso à expressão “flying winemaker”, a ponto de ter assumido a consultoria de vinhos para mais de 150 produtores de quatro continentes. A uma escala diferente, muitos outros enólogos têm seguido esse tipo de trajeto, um pouco por todo o mundo.
Tal como Rolland, boa parte dos enólogos consultores acabam por se tornar produtores do próprio vinho. Quando isso acontece, o mais comum é o número de consultorias diminuir e há até casos mais radicais, em que o enólogo abandona a totalidade das consultorias para vestir por inteiro a pele de produtor. Sem amarras, tantas vezes até sem rede, com os consequentes níveis de adrenalina lá em cima.


A partir do momento em que o enólogo consultor torna-se também produtor, a manutenção das consultorias passa a ter desafios suplementares. Por um lado, como manter disponibilidade de tempo para acorrer presencialmente e em tempo útil os clientes; por outro, dependendo da relação de proximidade e de confiança mútua, como convencer o produtor/cliente que o enólogo/produtor continua a ser um aliado e não um concorrente direto num mercado que, todos sabemos, é bastante competitivo.
Muitos dos enólogos que enveredaram pelo caminho da produção própria mas mantiveram consultorias decidiram construir equipas, o que lhes permitiu dar resposta às diferentes dimensões da atividade. Outros ainda aconselharam os produtores/clientes a investir na fixação de jovens profissionais que garantam o dia-a-dia e um acompanhamento de maior proximidade. Afinal, a mera enologia por telefone parece ter sido chão que já deu mais uvas.


O número crescente de marcas e de novos projetos de vinhos aumentou, naturalmente, a procura por enólogos. Quem investe sem conhecimento sólido do que é o vinho ou sem uma filosofia definida acerca do tipo de vinho que pretende obter frequentemente prefere contratar um nome sonante da enologia para nele depositar essa missão, o que nem sempre resulta. Há ainda o reverso da medalha, aqueles que exigem do enólogo a componente técnica que lhes permita almejar o estilo de vinho que lhes vai na cabeça.
Ser enólogo é saber conviver constantemente com uma diversidade de realidades. Deve também ser um exercício permanente de honestidade intelectual, em que ambição, sonho e realidade não se anulam, complementam-se.
Tal como um adolescente que dá uns pontapés na bola e se imagina o próximo Ronaldo ou um jovem aspirante a jornalista que entra na universidade com o sonho de ser pivot do telejornal, é normal um enólogo imaginar-se o próximo Rolland. Os fogachos de popularidade das redes sociais e o mediatismo mais perene da imprensa tradicional podem parecer palcos demasiado sedutores para se conseguir resistir. Mas, os muitos enólogos que mantêm os pés no chão, apesar da maior ou menor exposição pública, merecem um elogio também público.

Liberdade e compromisso

Respeito particularmente o trabalho dos enólogos que recusam aplicar as receitas de sempre, independentemente da realidade com que sejam confrontados. O enólogo que procura materializar o perfil de vinhos ambicionado pelo produtor, que interpreta as especificidades dos terroirs e não as de um caderno de encargos estará a ser mais exigente consigo e, inevitavelmente, mais criativo com o mercado consumidor. O vinho, seja ele qual for, deverá ter a impressão digital do produtor, não a do enólogo. Ao anular um qualquer cunho pessoal vincado na posição de consultor, o enólogo estará a fazer brilhar o vinho. Com isso não anula a criatividade, pelo contrário, obriga-se a tê-la. Permanentemente.
Ao longo dos anos, no desfiar constante de conversas com enólogos, noto que a questão da liberdade criativa é o primeiro argumento dado para justificar o facto de apenas serem consultores ou de se tornarem enólogos/produtores. A ambição de ter o próprio vinho é compreensível e legítima, mas neste caminho da enologia parece-me que por vezes existe o medo do compromisso.


De facto, os enólogos que fazem todo um percurso profissional nos quadros de uma empresa parecem estar a tornar-se numa espécie em vias de extinção. Essa será uma das reflexões que a indústria do vinho terá que fazer, nalguns casos com urgência.
Para lá do conhecimento técnico e da competência profissional, o enólogo é o intérprete de uma realidade, que vai desconstruir ou respeitar ao máximo, mas que no final dará origem a uma criação nova, um novo vinho. Esquartejar permanentemente a liberdade de criação de um enólogo será um convite ao desalento, sobretudo numa fase tão empolgante, em que todos os dias somos confrontados com novas formas de fazer. Dar espaço, por exemplo em linhas mais experimentalistas de vinhos, de produções mais limitadas, poderá ser uma forma inteligente de aumentar o compromisso do enólogo para com o produtor, fazendo com que sinta o projeto como também a sua casa, onde os ensaios e as ideias não se rasgam nas mesas da administração.
As empresas de vinhos fortificados convivem com esta realidade de um modo ainda mais ingrato. Os enólogos de hoje ultimam os vinhos que as gerações anteriores lhes deixaram e têm por missão garantir que os vindouros terão stocks ainda melhores. Assim sendo, como atrair os criativos que tudo querem experimentar para esta espécie de espírito de missão de uma vida?
A solução poderá valer um milhão de dólares e é, seguramente, das maiores dores de cabeça com que algumas casas de Vinho do Porto e de Vinho Madeira, por exemplo, se confrontam na atualidade. A ideia perigosamente instalada, de que qualquer enólogo fará um bom fortificado porque basta juntar aguardente e experimentar alguns lotes de vinhos velhos, parece ter-se instalado na mente dos profissionais mais jovens. E é pena, porque um grande enólogo de vinhos fortificados demora bons anos até conseguir afirmar-se enquanto tal sendo, acima de tudo, um master blender privilegiado.


Poderão os fortificados portugueses conferir o glamour que parece estar a faltar inspirando-se no impulso que as destilarias escocesas conferem aos seus master blenders?
Ser o enólogo de uma casa, por toda uma vida, não é um atestado de minoridade. Muito menos deverá ser lido como um ato de preguiça ou de pouca ambição. Dedicar uma vida profissional a um compromisso é, tantas vezes, o mais corajoso ato que um enólogo poderá ter. Claro, se o deixarem sentir a empresa como uma verdadeira casa.
 

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