Hill of Grace, realeza australiana

A Wine Detective investiga a magia das vinhas velhas sob a forma de uma vinha de Shiraz.

 

Se colocarmos a alguém o desafio de nomear um filme de Ridley Scott estrelado por Russell Crowe, as hipóteses recaem sobre “Gladiador”, o épico drama histórico em que Crowe grita: “Não estão entretidos?” Scott também dirigiu o ator em “Um Ano Perfeito”, onde interpretou um banqueiro londrino que herdou uma vinha na Provence. Não é o primeiro contacto profissional de Crowe com vinhos. Em 2020, fez a narração inebriante de “A Vintage Graced By The Luminous Moon” sobre uma vinha real. O vídeo – um grande golpe publicitário para o produtor Henschke – celebrou o lançamento da colheita de 2015 do Hill of Grace, a vinha de Shiraz mais famosa da Austrália.


Com o seu tom inconfundível, profundo e grave, a voz de Crowe forneceu a seriedade necessária. E, deixem-me dizer-vos, os fãs do Hill of Grace ficaram entretidos! Desde logo, a especularem sobre a forma como Henschke conseguiu garantir os serviços da estrela de Hollywood, sem mencionar o quanto custou. Por cerca de 600 libras a garrafa, o vinho Hill of Grace é caro, mas o valor da produção de um ano inteiro deve empalidecer ao lado do património líquido estimado de 120 milhões de dólares de Crowe. Podemos ser levados a pensar que é um dever patriótico apoiar um ícone australiano, mas então estaríamos a cair numa armadilha comum. Nascido na Nova Zelândia, Crowe não é realmente um cidadão australiano. Quanto à motivação de Henschke, ficaria surpresa se as vendas de Hill of Grace precisassem de uma ajuda.


Por vezes, as coisas não giram em torno de dinheiro. Sãos, completamente terra a terra, Stephen e Prue Henschke estão entre as pessoas mais simpáticas que alguém poderia esperar conhecer; dado que Crowe também gosta de vinhos, “não foi muito difícil convencê-lo”, de acordo com Justine, filha de Stephen e Prue Henschke. Assim, parece que se gerou simplesmente um encontro de corações e mentes. E isso reflete-se no vídeo. É um hino à vinha Hill of Grace e a seis gerações de Henschke que, entoa Crowe, “são guardiões da sua fama crescente” (ainda é possível ver o filme no Youtube).


No dia 4 de maio, a família Henschke lançou, em conjunto, pela primeira vez, todos os quatro vinhos Shiraz ‘single vineyard’ da colheita de 2017 de Eden Valley. Um pouco antes, encontrei-me com Stephen e Prue no Zoom para a minha prévia prova anual de Hill of Grace, desta vez ao lado dos Shiraz Mount Edelstone, The Wheelwright e Hill of Roses. A sequência oferece uma janela fascinante sobre a colheita, o terroir e a idade da vinha; daí a decisão de lançá-los juntos quando, disse Stephen, “vemos quase a mais pura expressão da casta e enormes diferenças entre os locais em 2017”. Graças à fase de maturação particularmente longa e suave, as uvas atingiram o máximo desenvolvimento de sabor e, afirmaram em coro Prue e Stephen, retiveram grande vitalidade – uma impressão digital daquele ano.

Impressões digitais

Comparando as últimas três vindimas – todas excecionais, dizem os Henschkes – encontrei mais em comum entre 2015 e 2017 (2016 foi o ano mais quente). Poderíamos dizer que 2017 (fresco e expressivo) e 2016 (muscular, mais concentrado) representam as duas pontas do espectro, mas, como diz Crowe, “cada colheita é única e, no entanto, a mesma”. E destaca uma consistência ligada à qualidade intrínseca e ao caráter de vinhas granjeadas em modo biodinâmico e cuidadosamente tratadas. De acordo com Prue, a gestão da temperatura do solo da vinha tem sido uma influência fundamental na qualidade e expressão do Shiraz da Henschke. Explicou que o stress térmico afeta negativamente a síntese de aromas/precursores de aromas e antocianinas (o composto da uva que determina a cor dos bagas e a estrutura dos taninos). Deixada nua, a temperatura do solo pode chegar a 50 graus centígrados, além de esgotar os fungos micorrízicos que libertam minerais e nutrientes para a absorção das plantas e reabastecer o solo. A aclamada viticultora usa composto biodinâmico e palha para ajudar a manter a temperatura do solo em torno de 25 graus centígrados.


Quanto à expressão do terroir, Prue acredita que o tipo de solo tem a maior influência no perfil de especiarias de cada vinha de Shiraz. A areia grossa da vinha Wheelwright, assente sobre blocos de argila, gnaisse e fragmentos de xisto, produz a expressão mais delicada. O perfil de pimenta pungente e folha de louro de Mount Edelstone reflete a profunda textura arenosa da vinha sobre argila vermelha pedregosa. Por último, o solo franco arenoso e a areia soprada pelo vento sobre argila com pequenas rochas e carbonato de cálcio de Hill of Grace (uma parcela da qual produz Hill of Roses) revela cinco especiarias mais exóticas.


A elevação de Eden Valley é outra razão que contribui para o perfil picante e perfumado do seu Shiraz (e a frescura em comparação com Barossa Valley, mais abaixo). Para Stephen, a elevação e exposição influenciam o corpo e o perfil dos frutos das diferentes vinhas de Shiraz. Eden Valley - uma sub-região de Barossa - nasce no sul onde, a 500m acima do nível do mar, a vinha Wheelwright tende para frutas vermelhas de corpo médio. Dez quilómetros o norte, a 400m, mas com exposição leste (o que reduz a exposição ao sol à tarde), o Mount Edelstone mostra frutas vermelhas e pretas; com gloriosos aromas de ervas secas, pimenta e salvia, o 2017 é o arquetípico Mount Edelstone. Porém, cinco quilómetros a norte de Mount Edelstone, Hill of Grace, também a 400m, tem a exposição mais quente, a oeste, e produz um Shiraz relativamente concentrado, com frutas azuis e pretas.


A idade da vinha também contribui para a concentração dos vinhos Hill of Grace. A vinha foi plantada pela primeira vez em 1860. É fascinante provar os vinhos ao lado das cepas, porque vêm de enxertos originais de Hill of Grace, que Stephen e Prue plantaram em 1989. O casal notou como os frutos do seu 'bebé' estão a crescer em sabor e textura ano após ano. Prue, que esteve envolvida num projeto de vinhas velhas em Barossa, notou que as vinhas mais velhas geralmente produzem vinhos com taninos notavelmente melhores e maior complexidade. Talvez, especula, porque com maior armazenamento de carbohidratos nos seus troncos, as videiras ficam menos stressadas. Com o tempo, os Henschkes acreditam que Hill of Roses chegará à ‘idade adulta’ tornar-se-á uma parte do lote de Hill of Grace. Por enquanto, este descendente de Hill of Grace – o jovem pretendente – está a tentar recuperar o atraso. Afinal, Hill of Grace (e não Russell Crowe) é a verdadeira realeza australiana.
 

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