Manuel Engrácia Antunes, um percurso exemplar

Recordo como se tivesse sido ontem: conheci-o na primeira semana de setembro de 1992. Fez-me uma entrevista de emprego e terminou mais ou menos com isto: “muito bem, se eu não disser mais nada, esteja aqui na segunda-feira às nove”. Não me voltou a dizer nada e, por isso, na tal segunda-feira eu apareci. E trabalho nos vinhos desde essa data.

O Tenente-Coronel Manuel Engrácia Antunes era o presidente da CVR dos Vinhos Verdes e da ANDOVI, acabada de fundar, a associação que ainda hoje agrupa as CVR’s de todo o país. Tinha já uma carreira sólida como dirigente de outras associações do setor agrícola.

O mundo era outro e o dos vinhos era muito diferente. Não havia VITIS, as CVR’s da época não eram as de hoje, o IVV vinha da Junta Nacional do Vinho e estava em mudança, ainda tinha belas instalações em todo o país. Não havia ASAE, era o IVV que fiscalizava. Também não havia a profusão de fundos para a promoção, ainda não tinha sido feito o estudo Porter nem havia Viniportugal. Tinha acabado de ser fundada a associação G7, que agrupava as principais empresas do país e que foi precursora, precisamente, da promoção agrupada.

Do convívio que tive com o Tenente-Coronel Engrácia Antunes, recordo com saudade e espero ter aprendido alguma coisa com ele ou, pelo menos, alguns traços.

A sua visão estratégica. Percebeu imediatamente que era preciso transformar a CVRVV (que vinha do Estado Movo como um organismo de coordenação económica tipicamente público) numa entidade privada, flexível e vocacionada para a Região, o que fez com uma profunda reestruturação com apoio de consultores internacionais e um forte investimento na informatização do processo de certificação. Percebeu que a promoção era essencial e deu os primeiros passos naquilo que hoje é o competente departamento de marketing que aquela casa tem. Percebeu que cada CVR não iria longe sozinha e, por isso, fundou a ANDOVI, de que foi o primeiro presidente e pela qual correu o país a impulsionar a modernização dos processos de certificação que, à data, eram embrionários e muito informais e a reclamar maior autonomia das regiões.

A sua disponibilidade para ir à luta. Longe da Índia Portuguesa, onde a sua carreira militar o levou e cuja missão em combate desempenhou com brilho e muito sacrifício, era um lutador incansável em reuniões que mantínhamos com o Governo, com o IVV e com as Direcções Regionais de Agricultura. Ladeado pelos colegas Álvaro Marques de Figueiredo (histórico e admirável presidente da CVR Dão) e Fernando Bianchi de Aguiar (felizmente ainda connosco e à data presidente do IVP), foram muitas as reuniões em que não saíamos até atingir os objectivos que tinham sido definidos e preparados em reuniões prévias com memorandos escritos. A mesma disponibilidade de serviço à comunidade que teve quando, no pós 25 de Abril, contribuiu para que o país se desenvolvesse gradualmente como uma democracia e não caísse na tentação totalitária.

Era um homem de valores. Entendia que as normas de certificação dos vinhos devim ser cumpridas, absolutamente indiferente a pressões e menos ainda a incentivos. Deparou-se uma vez com uma situação muito difícil com um operador de grande relevo. Fez o que tinha de fazer (porventura, poucos fariam e ainda menos nessa época de informalidade) e seguiu o seu caminho. O outro personagem afastou-se.

Apesar de ter uma voz e atitude de comando muito claras, uns olhos expressivos, tinha uma profunda humanidade e respeito pelo seu semelhante, que são hoje testemunhados pela saudade que deixa em pessoas de todos os níveis hierárquicos que com ele trabalharam.

Fiz com ele milhares de quilómetros pelo país, conduzidos pelo Sr. Agostinho (sim, à data a CVRVV tinha motorista) e recordo, no meio do trabalho, dezenas de episódios de boa disposição que eram desconcertantes. Não gostava de velocidades e, por isso, quando o motorista se aproximava dos 120kms/h, o Tenente-Coronel começava a mexer-se no assento como se procurasse alguma coisa caída e exclamava “ó Senhor Agostinho, este carro tem aqui uns barulhos, é preciso ver isto”. O motorista percebia e abrandava. Um dia, íamos com um colega da informática no carro, que não lhe conhecia este hábito. Como sempre, o Sr. Agostinho acelerou e o Tenente-Coronel lá repetiu, com o habitual ar de quem procura alguma coisa “ó Senhor Agostinho, este carro tem aqui uns barulhos, é preciso ver isto”. Ato contínuo, o colega da informática começa a mexer-se para um lado e para o outro à procura do tal barulho, sem nada encontrar. Esteve nisto um par de kms. O Tenente-Coronel olha para mim, sem sorrir mas com ar divertido, enquanto o Sr. Agostinho diz ao meu colega: “ó Dr., deixe estar que eu sei o que é”. E abrandou.

O momento da partida deste Homem que tanto deixou no setor dos vinhos é o certo para assumirmos como nossos alguns dos seus valores, pois todos eles são atuais.

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