O Douro redescobriu o Alicante Bouschet

Será que o Douro está a redescobrir o potencial do Alicante Bouschet fora das vinhas velhas? Será que o Douro, definitivamente, partiu à descoberta do efetivo potencial de variedades além do trio-maravilha Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz?

 

O nome Bouschet consta da generalidade dos manuais de viticultura franceses. Louis-Marie Bouschet (1784-1876) ficou célebre ao ter criado a casta Petit Bouschet, resultado do cruzamento entre Aramon e Teinturier do Cher. O filho Henri Bouschet (1815-1881) seguiu-lhe as pisadas. No sul de França, no Domaine de la Calmette, relativamente próximo de Montpellier, decidiu cruzar Petit Bouschet e Grenache e assim nasceu a casta Alicante Bouschet, algures em 1855.
Henri especializou-se na criação laboratorial de castas vitis vinífera que aportassem cor carregada e bom tanino aos vinhos e que, igualmente, suportassem sem grandes agruras verões quentes, por vezes até bem secos, qual adivinho das cada vez mais exigentes condições de viticultura em zonas como o sul de França e toda a bacia mediterrânica ou de influência direta do Mediterrâneo.


Convém contextualizar a época. A Europa ressacava dos tempos malditos da praga da filoxera, pelo que a disseminação desta nova variedade por denominações super premium da França – Bordéus, Borgonha e Vale do Loire – aconteceu com naturalidade, até porque os elevados rendimentos e a facilidade no tratamento convidavam a grandes produções. Bom, na verdade, nem só na Europa.
Nos EUA, nos anos da “Prohibition”, os viticultores californianos de Central Valley perceberam a incrível capacidade de coloração de mostos que o Alicante Bouschet proporciona, mesmo numa segunda e terceira prensagens. A película espessa permitia-lhe ainda suportar a dureza do transporte até Nova Iorque, onde decorriam leilões de compra de uvas, pelo que a popularidade não tardou.


Em meados do século XX, a área plantada com Alicante Bouschet na França atingia os quase 25.000 hectares, com predominância em Cognac, Languedoc e Provence. Todavia foi perdendo terreno, estimando-se que nos dias de hoje haja menos de 4.000 hectares desta uva em solo francês.
Ao longos das décadas, a Península Ibérica tem sido o território da resistência. Em Espanha, plantada em mais de 26.000 hectares, consta do top 5 das tintas mais difundidas e a tendência é de aumento de plantações. Em Portugal, o carinho é de tal ordem que chega a ser considerada uma casta nacional.


É provável que as primeiras plantas tenham sido difundidas no Douro, o que ajuda a explicar a presença em muitas vinhas velhas. A verdade é que se assume porta-estandarte no Alentejo, onde o registo documental passa, obrigatoriamente, pela Herdade do Mouchão. A vinha da Dourada, de 1894, terá sido a primeira área onde os Reynolds a plantaram.

O Alicante destrona a Barroca? 

Um dos vinhos mais emblemáticos de todo o Alentejo, precisamente o Mouchão, é elaborado com Alicante Bouschet, a que habitualmente acresce a Trincadeira. Outros vinhos que fizeram história na região, como os Quinta do Carmo de outrora e alguns dos atuais Dona Maria, têm uma alma muito própria.
Os vinhos estremes ou maioritariamente de Alicante Bouschet, quando jovens, têm uma cor púrpura impenetrável. O fruto é silvestre, são comuns os aromas de azeitona e as características vegetais poderão ser mais ou menos evidentes, consoante a vinificação com ou sem engaço. O tanino é altivo, a estrutura é portentosa, mas este lado mais musculado pode ficar perfeitamente enquadrado com recurso a madeiras competentes e estágios generosos em garrafa. A notável propensão para o envelhecimento complementa o leque de atributos.


Se o Alentejo se afirmou como uma espécie de berço-natural, silenciosamente o Douro está a recuperar o Alicante Bouschet, plantando-o com muita mais frequência a solo, retirando-o da (boa) sombra das vinhas velhas.
A Symington Family Estates, o maior proprietário privado de vinhas no Douro, há muito encarou-a como casta de futuro na região. Não por acaso, os Porto Vintage de 2019, acabadinhos de apresentar à imprensa, já dão mostras dessa aposta. Por exemplo, o Quinta do Vesúvio Porto Vintage 2019, muito bem conseguido, resulta de um lote de Touriga Nacional (35%), Touriga Franca (33%), Alicante Bouschet (18%), Vinhas Velhas (8%) e Tinta Amarela (6%).
Charles Symington, um dos mais notáveis enólogos da sua geração, destaca as virtudes do Alicante Bouschet – capacidade de resistência ao calor, amadurecimento mais precoce (o que facilita o ritmo de apanha das diferentes castas no ponto certo de maturação), boa cor e estrutura. “O Alicante Bouschet poderá ser um bom contraponto à Touriga Franca nos anos que ela não se comporta tão bem, há uma qualidade elevada nos vinhos”, observa.


Tratando-se de uma casta produtiva – quatro toneladas por hectare é um bom rendimento na realidade do Douro, mas o Alicante até poderá produzir mais – , Charles Symington entende também que poderá ser uma boa alternativa à inconstante Tinta Barroca. 
“Sinto que a Tinta Barroca está a ter problemas de desidratação e sobrematuração nos anos mais quentes, em que nunca chega a estar no ponto correto de maturação, repentinamente fica em passa”, observa.
Em conversa com Márcio Nóbrega, responsável de viticultura da Sogevinus Fine Wines, procurei o ângulo do viticólogo.


Confirma que a Tinta Barroca não se dá bem com os picos de calor cada vez mais frequentes no Douro, sobretudo se acontecerem em junho, ainda antes de estar completa a fase de pintor. Apesar da boa produtividade e do bom teor alcoólico, nos anos muito quentes é bastante suscetível aos episódios de escaldão. Quanto às virtudes do Alicante Bouschet…
“É uma casta bem adaptada a zonas quentes, que mostra boa produção e tem aceitação enológica. Mostra concentração de cor, teor alcoólico e acidez favorável. Para o viticultor é uma casta produtiva e regular, que está adaptada ao Douro, que resiste bem às temperaturas elevadas e que não é crítica em doenças e pragas”. Por outras palavras, “é uma casta para ficar no Douro, sim”, acredita Márcio Nóbrega.


Da presença nas vinhas velhas, sobretudo as do Baixo Corgo, aos holofotes das parcelas a solo, o clima cada vez mais austero e a procura por castas que mantenham regularidade e qualidade, no campo e na adega, são premissas que parecem encaixar que nem uma luva no Alicante Bouschet contextualizado no Douro. O Sousão, variedade que também tem sido cada vez mais plantada no Douro e que partilha alguns pontos com o Alicante (na cor, estrutura e capacidade longeva), é muito mais exigente, sobretudo porque não se adapta particularmente bem nas cotas mais baixas e em zonas de vinha muito expostas.
Será que o Douro está a redescobrir o potencial do Alicante Bouschet fora das vinhas velhas? Será que o Douro, definitivamente, partiu à descoberta do efetivo potencial de variedades além do trio-maravilha Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz? Parece-me que sim e, acima de tudo, parece-me uma inevitabilidade.

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