Quase todos os governantes do mundo desfrutam dos serviços de provadores treinados que examinam a sanidade das suas comidas, antes de as levarem à boca. É cautela tão importante quanto a segurança que os protege de agressões físicas, sequestros e tentativas de assassinato. Afinal, a comida pode estar envenenada ou estragada.
O Serviço Secreto dos Estados Unidos, monitorizando dia e noite o autocrata Vladimir Putin, descobriu que o governante russo, nas refeições públicas ou privadas, só começa a comer depois de uma perícia minuciosa dos seus alimentos. Nada mais compreensível. Putin conquistou a reputação de ser craque em venenos. Conhece como poucos os efeitos maléficos dessas substâncias. Já enfrentou várias acusações de envenenamento de opositores.
Um dos primeiros casos nos quais foi envolvido ocorreu em 2004, no atentado contra a vida de Viktor Yushchenko, pela razão das inclinações pró-ocidentais da vítima. O político ucraniano, ex-presidente e ex-primeiro-ministro do seu país, sobreviveu à TCDD, substância sólida, cristalina, incolor, sem cheiro quando pura e altamente tóxica. Aparentemente, um agente russo introduziu-a na comida de Yushchenko. Conclusão: Putin não é flor que se cheire.
Entretanto, foram os tiranos históricos que transformam esse cuidado alimentar em obsessão. “Quem tem telhados de vidro, tem medo das pedras alheias”, diz o provérbio. Fidel Castro, ditador de Cuba, e Saddam Hussein, do Iraque, assim como Hugo Chávez, presidente da Venezuela, tiveram provadores de comida. Nem sequer chegaram a escondê-lo. Fidel Castro é um bom exemplo. Esteve algumas vezes no Brasil, sempre acompanhado do “assessor”.
Numa delas, visitou Luiz Inácio Lula da Silva, seu amigo do peito, na época apenas líder sindicalista, presidente do PT (Partido dos Trabalhadores) e postulante ao governo do país. O anfitrião ofereceu-lhe um jantar particular em casa e encarregou a mulher, Marisa, de preparar a comida. O provador do ditador cubano testou cada prato que iria à mesa. Um deles era o bife rolê recheado com toucinho. Fidel colocou-o inteiro na boca, deixando de retirar o palito que prendia o cilindro de carne bovina e o mantinha como um rocambole. Então, engasgou-se acidentalmente com aquela pequena haste de madeira. Como tossia muito, Lula deu-lhe uns tapas nas costas. Fidel cuspiu o palito e livrou-se do transtorno. Dias depois, comentou bem-humorado a cena, numa reunião do PT: “Quase matei o Fidel, algo que nem o Serviço Secreto dos Estados Unidos conseguiu. Iam achar que eu era agente secreto norte-americano, como diziam quando comecei a carreira de sindicalista”.
Saddam Hussein desfrutou por muito tempo dos serviços do provador Djedju. Mas, de tanto conviver com o patrão, o fiel servidor soube de coisas que não devia. Qusay Hussein, filho do ditador iraquiano, matou-o com choques elétricos na cabeça por não lhe revelar que o pai mantinha um romance secreto com Balkiis, mulher de um executivo na Iraqi Airways. Acontece que Saddam considerava imprescindível o serviço de Djedju. Enfurecido com o assassinato do provador, mandou prender o filho, pronunciando a frase implacável: “Se um olho me incomodar, arrancá-lo-ei”.
Outro que temia um envenenamento à mesa era o presidente Hugo Chávez, da Venezuela. Em visita ao Brasil, chegou à Granja do Torto, em Brasília, uma das residências mantidas pelo governo, escoltado pelo seu provador de comida. O já presidente Lula achou o cuidado exagerado e teria feito esta observação: “Nesta casa não é preciso”. O sucessor de Chávez no governo venezuelano, Nicolás Maduro, repete atualmente a mesma neurose.
Um livro editado em 2018 pela londrina Gilgamesh Publishing mostra que os provadores de comida foram muito valorizados pelos déspotas mais paranóicos do mundo. Intitula-se “Dictators' Dinners - A Bad Taste Guide to Entertaining Tyrants” (“Jantares Dos Ditadores - Um Guia de Mau Gosto Para os Tiranos Divertidos”, em tradução livre). As autoras são Victoria Clark e Melissa Scott. A obra conta histórias incríveis.
Adolf Hitler, Führer da Alemanha Nazi entre 1934 até 1945, que não comia carne e desmentia o mito de que os vegetarianos tendem a ser menos agressivos, dispunha de uma equipa de 15 provadoras. Não passavam de meninas recrutadas a partir de 1942, exclusivamente para testar os seus alimentos durante a Segunda Guerra Mundial. Permaneciam no quartel-general, a Toca do Lobo, perto de Rastenburg (atual Kętrzyn), agora território da Polónia. Hitler estava convencido de que os britânicos do primeiro-ministro Winston Churchill planejavam envenená-lo. Esperava 45 minutos antes de dar a primeira garfada ou colherada no prato que tinha à frente. Já que as meninas sobreviviam e mostravam inalterada a expressão facial, começava a comer. “Temíamos que fosse a última refeição”, confessou uma delas, Margot Wölk, em dezembro de 2012, aos 95 anos de idade. Também relatou detalhes da tensão das companheiras. Durante quase sete décadas guardou tudo em segredo, inclusive do marido. Sentia vergonha do passado e receava discriminação por haver prestado serviços ao nazismo.
A lenda diz que as suas colegas foram mortas em Rastenburg, quando as tropas soviéticas invadiram o quartel-general do Führer, em janeiro de 1945, o que é duvidoso, pois a Toca do Lobo foi abandonada em novembro de 1944, com a aproximação do Exército Vermelho. Margot afirmou que escapou para Berlim pouco tempo antes da chegada dos russos. Daí ter driblado a morte.
O ditador Josef Stalin, no poder da extinta União Soviética entre meados da década de 1920 até 1953, contava com uma brigada de provadores que se revezavam por segurança. Sobravam-lhe motivos. Apesar de haver transformado um país agrário em superpotência e de repelir a invasão militar nazi, Stalin construiu campos de trabalhos forçados e matou pelo menos 20 milhões de pessoas, número que pode ter chegado ao dobro.
Era um colecionador de inimigos. Portanto, necessitava proteger a vida nos jantares monumentais que promovia em Moscovo. Alguns duravam horas – iam das 23h às 5h da manhã, por exemplo – e incluíam competições de bebedeira, cantorias e danças. O ditador soviético era bom de copo e mesa. Às vezes lambuzava o bigode espigado com receitas tradicionais da Geórgia, antiga república soviética, onde nasceu. Claro, entre um trago e outro.
Nicolae Ceausescu, da Romênia, outro ditador comunista, cujo governo foi derrubado na Revolução de 1989, constrangia os anfitriões estrangeiros que visitava por levar tudo o que ia comer, inclusive sumo de vegetais crus, aos quais atribuía poder rejuvenescedor. Bebia-os por palhinha, por precaução. Mesmo assim, nunca viajava sem o seu provador, um oficial de segurança de alto escalão, que era químico e transportava um mini-laboratório usado na análise dos alimentos.
Para as autoras de “Dictators' Dinners”, os déspotas ficam ainda mais obcecados com a pureza da própria comida à medida em que envelhecem. No final da vida, o ditador norte-coreano Kim Il-sung, da Coreia do Norte, no poder desde a fundação do país, em 1948, até a morte, em 1994, avô do atual ditador Kim Jong-un, exigia que os grãos do seu arroz quotidiano fossem examinados individualmente. Também queria que fossem aproveitados os melhores para si.
Kim Il-sung parece ter perdido em maluquice apenas para o lendário Rei Aerys II, que era realmente louco. Último membro da Casa Targaryen a sentar-se no Trono de Ferro e reinante de 262 a 283 d.C., esse soberano demente obrigou o provador de comida a mamar nos seios da ama de leite do príncipe herdeiro, antes do bebé faminto sugá-los chorando, pela demorada espera.
Existiram governantes que desconfiaram até dos provadores. O cardeal Richelieu (1585-1642), ministro de Luís XIII, rei da França, socorria-se dos seus gatos. Depois de sofrer o primeiro atentado, no qual o costumeiro chá de erva-cidreira foi substituído por uma poção malcheirosa – e por isso a rejeitou–, não levava nada à boca sem dar antes bocados aos felídeos de estimação. Esperava pela reação dos gatos e só depois começava a comer. O extremo cuidado, entretanto, não impediu que, caindo doente, ingerisse inadvertidamente uma beberagem suspeita e morresse no dia seguinte.
A moda de envenenar as pessoas à mesa esteve em alta moda na Renascença. Os provadores da época seriam comparados aos atuais escanções, pois também eram craques em vinho. Os banquetes renascentistas que mais lhes deram trabalho devem ter sido os dos Borgia. Essa família italiana de origem espanhola, cujos membros mais célebres foram Rodrigo, eleito papa com o nome de Alexandre VI, e os filhos César e Lucrécia, notabilizou-se pelo assassinato à mesa. O veneno de eleição era a cantarella ou acquetta di Perugia. Carregavam-na em pequenos frascos e anéis dotados de minúsculos recipientes. Alguns historiadores dizem que combinava arsénico, sais de cobre e fósforo; outros que misturava arsénico e vísceras de porco. Os ingredientes curtiam juntos por trinta dias. As vísceras apodreciam e recolhia-se o líquido para evaporar um pouco e concentrar o poder maléfico. O resultado era uma substância branca, com a aparência do açúcar, mortal em pequenas doses.
Pelo facto de ter sido usado demais, o veneno dos Borgia tornou-se facilmente reconhecível. Daí porque, como pretendessem envenenar o cardeal Franco Minetto, crítico da corrupção do pecado na cúpula da Igreja Católica, os cruéis Alexandre VI e César encomendaram a Leonardo da Vinci um sucedâneo imperceptível, mas também letal. O genial artista teria sido contratado para as funções de cartógrafo, geógrafo e engenheiro militar, após trabalhar vários anos, em Milão, para o duque Ludovico Sforza. Por razões óbvias, durou pouco no novo emprego.
Mesmo pesquisando dia e noite, Leonardo não dava conta da encomenda, até porque detestava venenos. Entretanto, faltando poucos dias para o banquete que os Borgia ofereceriam a Minetto, ele cruzou com um conhecido que viajara à América com o navegador genovês Cristóvão Colombo, onde encontrara em 1498, nas ilhas de Trinidad e Tobago, a solução para o seu problema: uma erva chamada ichigua.
Com as folhas que recebeu do amigo, Leonardo começou a experiência. Picou-as finamente e colocou-as a ferver. A combinação resultou num caldo concentrado. Sem coragem para testá-lo no ser humano, provou-o com a ponta da língua. Percebeu-o desprovido de qualquer aroma e sabor. O problema era saber em que quantidade usá-lo. Enquanto estudava o problema, o gato angorá de Lucrécia apareceu para tomar leite num prato deixado no chão. Leonardo não teve dúvida: dissolveu certa quantidade do concentrado no leite que o animal bebeu e foi embora. Na manhã seguinte, Lucrécia andava aos prantos. O gato de estimação desapareceu. Leonardo teve certeza de que o veneno funcionava. No dia do banquete, os Borgia mandaram servir a Minetto um prato de trutas cujo molho de endro escondia generosa porção do concentrado.
O provador do cardeal experimentou-o e autorizou o patrão a comer. Instantes depois, Minetto levantou da mesa com as mãos na garganta e morreu asfixiado. No meio da confusão, uma surpresa. O gato de Lucrécia reapareceu e, como todos haviam fugido, atacou os alimentos abandonados. Descobriu-se então que o cardeal morrera asfixiado por uma espinha de peixe atravessada na garganta.
Séculos antes, o romano Marco António, três vezes cônsul, em 44, 34 e 31 a.C., e aliado de Júlio César, não ficava atrás. Mantinha um permanente provador de comida, pois desconfiava de Cleópatra, a amante. Temia que ela o envenenasse quando não lhe fosse mais útil. Cleópatra sabia da preocupação e divertia-se com a neurose do parceiro. Certa vez, desafiou-o a beber vinho misturado com flores que envenenara sorrateiramente. Sem saber do perigo, Marco António segurou a taça e quase bebeu o conteúdo, porém Cleópatra o deteve. Então, chamou o provador de comida de Marco António que experimentou o vinho e caiu morto. A intenção foi mostrar que a melhor precaução de Marco António seria confiar nela. Alguns duvidam da veracidade desse relato. Outros repetem a máxima: ‘Se non è vero, è ben trovato’.